Reportagens

O homem que viu o buraco – com Mario Molina

Mario Molina levou o Nobel de química pela descoberta do efeito dos CFCs na camada de ozônio. Hoje, ajuda grandes cidades a diagnosticarem e combaterem a poluição do ar.

João Teixeira da Costa · Aline Ribeiro ·
17 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Mario Molina está entre os maiores cientistas que já visitaram o Brasil. Afinal, o químico mexicano recebeu o Prêmio Nobel em 1995, uma credencial e tanto. E que fique registrado que o motivo do prêmio não foi a pesquisa em algum canto esotérico da ciência. Molina o conquistou pela descoberta, em parceria com o americano Sherry Rowland, do efeito dos CFCs sobre a camada de ozônio. Foi essa descoberta que levou ao Protocolo de Montreal, acordo internacional para eliminar a produção desses gases. É um exemplo que mostra que uma mobilização internacional baseada na ciência pode levar a resultados espetaculares.

Molina poderia ter se aposentado, gozando da merecida fama de herói ambientalista. Mas não foi o caso. A lição que ele tirou foi que seu status de cientista condecorado lhe dá a capacidade e a obrigação de trabalhar para melhorar o mundo. E foi essa a razão que o levou de volta ao México, para atacar o histórico problema da poluição do ar da sua capital. Foi também pelo mesmo motivo que ele esteve recentemente em São Paulo, para falar em uma conferência do Ar Limpo para a América Latina. O Eco entrevistou Molina na véspera da conferência.

Quando começou o seu interesse por meio ambiente?

Molina – Eu só comecei a me interessar por questões ambientais depois de terminar meu doutorado, em Berkeley, em química fundamental. Físico-química, as propriedades das reações químicas do ponto de vista molecular. Também trabalhava com lasers químicos. Mas para o meu trabalho pós-doutoral resolvi mudar de área. Trabalhando com o meu colega Sherry Rowland, que também era um físico-químico, resolvemos aprender mais sobre a atmosfera, aplicando o nosso conhecimento de química a algo mais próximo da sociedade. Nós escolhemos um problema, de maneira a adquirir conhecimento neste campo. E o problema era entender o que acontecia com esse compostos industriais que estavam se acumulando no ambiente, os CFCs e assim por diante.

Era um campo novo?

Molina – Sim, era um novo campo de pesquisa, e não era explicitamente ambiental. Nós queríamos descobrir quais processos naturais destruíriam esses compostos industriais que não eram de origem natural. E certamente a questão ligada a essa era, quais são as conseqüências para o meio ambiente? Na época se acreditava que não havia nenhum efeito nocivo. Esses compostos industriais extremamante estáveis, os CFCs, eram muito úteis. Eles tinham substituído gases de refrigeração tóxicos, e também eram usados como propelentes para latas de spray. Eles eram tão estáveis que circulavam ao redor do globo terrestre. Era possível medir quantidades muito pequenas, até mesmo no hemisfério Sul, apesar da maior parte das emissões vir do hemisfério Norte.

E o que descobriram?

Molina – Nós não sabíamos, no começo, qual seria a resposta. Concluímos que esses compostos cruzariam toda a estratosfera e ultrapassariam a camada de ozônio, pois nada – como a chuva ou outros processos de oxidação – os destruía. Somente acima da camada de ozônio eles encontrariam radiação solar de ondas curtas que os destruiria. Essa era a reposta, mas a pergunta importante era: e daí? E daí que os produtos da decomposição destruiriam quantidades significativas de ozônio. A camada de ozônio, é claro, filtra a radiação ultravioleta em grande altitudes. Mas há um fator de amplificação muito eficiente, de modo que pequenas quantidades de CFCs, ou melhor, de produtos da sua decomposição, destroem grandes quantidades de ozônio. Foi essencialmente essa a nossa conclusão, certamente uma idéia nova naquele tempo.

Qual foi a reação na academia?

Molina – Os especialistas em processos atmosféricos que tinham algum conhecimento de química aceitaram a idéia bastante rápido. Claro, fazendo perguntas e refinando as idéias. Mas foi a comunidade científica mais ampla que questionou os resultados, principalmente por ignorância. Cientistas normalmente são céticos e, portanto, essa reação foi natural. Alguns até achavam que o que nós queríamos era criar notícia, mas é claro que não era essa a idéia.

Mas vocês recorreram à imprensa?

Molina – Sim, pois estávamos preocupados. Achávamos que o problema precisava ser resolvido e a única maneira de fazê-lo seria trazendo-o à atenção da sociedade e dos governos. O melhor caminho seria através da imprensa, conscientizando as pessoas do problema.

Funcionou?

Molina – No começo não funcionou. O assunto era muito estranho, esotérico, pois nós estávamos falando de gases invisíveis, os CFCs, que estavam afetando uma camada invisível, a de ozônio, que nos protege de raios invisíveis, os ultravioleta. As pessoas pensavam, “oh, isso não tem nenhum sentido prático, não deve ser importante.” Mas depois de algum tempo alguns jornalistas começaram a captar a idéia e começamos a ter algum efeito. E os governos começaram a prestar atenção.

“É UM FENÔMENO ESPETACULAR, POIS NAS ALTITUDES ONDE O OZÔNIO É MAIS ABUNDANTE, NA ESTRATOSFERA, NOS MESES DA PRIMAVERA UMA PARTE DA CAMADA SOBRE A ANTÁRTIDA DESAPARECIA COMPLETAMENTE.”

Houve resistência da indústria química?

Molina – Sim. Mas nós conseguimos logo no começo que Estados Unidos e Canadá proibissem o uso desses compostos nas latas de spray. Isso foi no começo, mas havia oposição da indústria química, que alegava que nada havia sido provado. Demorou bastante tempo, mas enquanto isso nós trabalhamos com a comunidade científica para estabelecer uma base melhor. Fizemos medições, expedições aéreas, e conseguimos fortalecer bastante a base científica. Nós também conseguimos estabelecer uma conexão com o aparecimento daquilo que veio a ser chamado o “buraco do ozônio” sobre a Antártida. É um fenômeno espetacular, pois nas altitudes onde o ozônio é mais abundante, na estratosfera, nos meses da primavera uma parte da camada sobre a Antártida desaparecia completamente. Mais de 99% do ozônio sumia. Inicialmente uma fração da comunidade científica acreditou que fosse um fenômeno natural. Era tão espetacular que achavam que não podia ter nada a ver com os CFCs. Mas experimentos subseqüentes estabeleceram muito claramente que eram de fato os CFCs que estavam causando isso.

A descoberta do buraco facilitou a ação?

Molina – Sim, ela teve um papel importante por que foi um sinal muito grande e ficou mais fácil estabelecer a ciência sem ambiguidades. A redução do ozônio também era mensurável em outras latitudes, a tendência já havia sido estabelecida, mas o buraco deixou ainda mais claro que o problema era de origem humana. E que estava realmente afetando o meio ambiente. Tivemos muita paciência e perseverança para que as coisas acontecessem. Por outro lado, a sociedade respondeu relativamente rápido quando as conclusões científicas foram aceitas. Foi impressionante que um acordo internacional tenha sido negociado, com as Nações Unidas.

Quais as lições para o caso da mudança climática?

Molina – Há similaridades, e diferenças importantes. Talvez a principal lição seja que existe um precedente, que esses problemas podem ser resolvidos, que a sociedade pode se unir e fazer algo a respeito de problemas globais. O outro precedente é que a comunidade científica pode ter uma atuação importante, se ela estiver organizada corretamente, se houver um consenso internacional, com um grupo organizado. Nesta parte tem havido sucesso na questão da mudança climática, com a formação do IPCC – Painel Intergovernamental de Mudança Climática [http://www.ipcc.ch] – que tem tido grande influência sobre as decisões de política pública.

Mas incapaz de produzir grandes mudanças, certo?

Molina – É claro que uma importante diferença é que nos CFCs nós estávamos falando sobre um pequeno número de grandes indústrias, indústrias químicas, e quando elas entraram em acordo conosco o problema ficou praticamente resolvido. O caso da mudança climática envolve o uso de energia, que é tão pervasivo na nossa sociedade e que envolve um número muito maior de atividades. Essa é uma das dificuldades. Há uma outra analogia e talvez uma diferença. O problema dos CFCs também foi resolvido através da criação de incentivos para que as indústrias desenvolvessem substitutos. Nós não tivemos que abrir mão da refrigeração, do ar condicionado ou das latas de spray. Talvez os substitutos custem um pouco mais, mas foi um pequeno custo para a sociedade absorver. No início havia preocupação quanto aos empregos que seriam perdidos, ao prejuízo para a economia. Nada disso aconteceu. A transição foi muito eficiente.

E no caso do aquecimento global?

Molina – A relação da mudança climática com o crescimento econômico é muito mais íntima e os substitutos – as energias alternativas –mais difíceis de se conseguir. É claro que nós já sabemos bastante a respeito, mas não o suficiente. Há um outro precedente importante: a participação dos países em desenvolvimento. Quando eles foram avisados que talvez tivessem que evitar o uso dos CFCs eles disseram, bem, não fomos nós que poluímos o planeta, foram os países desenvolvidos. Porque então teremos que fazer algo que é contra o nosso progresso e seus benefícios? Assim chegou-se a um acordo, porque todos seriam afetados, os países em desenvolvimento talvez ainda mais.

“ESSE PRECEDENTE TAMBÉM INFLUENCIOU O TRATAMENTO DA QUESTÃO DA MUDANÇA CLIMÁTICA.”

Que acordo era esse?

Molina – O acordo previa transferência de recursos, um fundo multilateral foi criado para facilitar essa transferência, de maneira a ajudar os países em desenvolvimento na transição para as novas tecnologias. Não era uma grande quantidade de dinheiro, mas foi o suficiente para fazer com que os países em desenvolvimento assinassem o protocolo de Montreal, concordando em eliminar a sua produção de CFC e usar substitutos, com um prazo maior de transição. Esse precedente também influenciou o tratamento da questão da mudança climática, pois há fundos – o Global Environmental Facility, por exemplo – e no protocolo de Kyoto há o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Há maneiras das sociedades mais ricas trabalharem em conjunto com os países em desenvolvimento para resolver esses problemas. Do contrário eles não teriam incentivos suficientes para mudar, pois é o seu desenvolvimento econômico que está em jogo. Enfim, o problema do aquecimento global é enorme. A queima de combustíveis fósseis é uma atividade tão importante em nossa sociedade que é muito difícil mudar essa tecnologia, essa cultura de combustíveis baratos como o óleo e o carvão. Tanto o petróleo quanto o carvão são altamente nocivos sob o ponto de vista da mudança climática, por causa das emissões de dióxido de carbono e metano.

Precisamos de um evento como o buraco na camada de ozônio?

Molina – Eu espero que não. Espero que não cheguemos a esse estágio. Nós já estamos vendo efeitos muito importantes da mudança climática. Não apenas na temperatura média global em ascensão, um indicador confiável de que estamos fazendo algo com o planeta, mas também no ciclo hidrológico, com mais inundações e mais chuvas, com extremos acontecendo com maior freqüência. Nós também estamos vendo que a freqüência de furacões tropicais está aumentando. Geleiras estão derretendo. Tomados em conjunto, esses sinais provam claramente que o clima está mudando, e já estão causando muitos estragos – as inundações e os estragos causados pelos furacões nas áreas costeiras já trazem custos altos para as sociedades. E as secas têm sido, talvez, ainda mais significativas, apesar de não acontecerem da noite para o dia e portanto não receberem tanta atenção da mídia. Em muitas regiões do planeta, como por exemplo o norte do México ou determinadas áreas dos Estados Unidos, essas secas têm tido grande impacto na economia. É difícil prever onde e quando, mas as mudanças estão acontecendo.

O filme de Al Gore indica uma mudança na atitude americana?

Molina – Eu não sei se o filme de Al Gore An Inconvenient Truth representa uma virada, mas há um movimento crescente, e certamente uma boa parte da população está consciente do problema. Infelizmente é muito improvável que a administração Bush reverta a sua posição, mas há uma grande mudança ocorrendo nos governos estaduais. A Califórnia e os estados do nordeste estão partindo para a ação. Eu sou membro de um grupo – National Commission on Energy Policy, ou Comissão Nacional de Política Energética – um grupo bipartidário, de democratas e republicanos, de 15 ou 20 pessoas. Nós publicamos um relatório que teve grande influência no Senado, e vários projetos de lei serão introduzidos. A pressão está aumentando, e medidas estão sendo consideradas em conexão com mudança climática.

Kyoto é o caminho, ou precisamos de medidas mais duras?

Molina – Nós precisamos de alguma coisa. Kyoto foi muito bom como primeiro passo. Os Estados Unidos jamais concordarão com Kyoto por causa de alguns detalhes, detalhes que eles poderiam ter negociado, mas preferiram se afastar. Terá que ser algo diferente, mas com os mesmos objetivos, isto é, reduzir a emissão de gases do efeito estufa, estabilizar sua concentração na atmosfera, e assim por diante. Discussões serão necessárias mas pode-se dizer que sim, algo mais forte terá que ser buscado. A esperança é que a tecnologia continue avançando, de maneira que possamos ter mais opções. E outras coisas estão acontecendo, por causa da disponibilidade limitada de petróleo. Os preços do petróleo estão subindo tanto que as fontes alternativas de energia estão ganhando força.

A energia nuclear deve estar entre essas alternativas?

Molina – O assunto é controverso, mas até a energia nuclear terá que desempenhar um papel. O que nós recomendamos na Comissão não foi o aumento dos aspectos comerciais da energia nuclear, e sim mais investimento do governo americano no desenvovimento de tecnologias. Não é popular, mas o governo tem que investir para resolver os problemas como o do armazenamento de lixo nuclear, e o que fazer para inibir a proliferação. Novas tecnologias podem ajudar a lidar com essas questões, para que possamos ter acesso a todas as opções de que a sociedade precisa. Será a única maneira de ter um impacto sobre a questão do clima.

“NO NORTE DA ÍNDIA E NA CHINA OS SATÉLITES INDICAM AR MUITO SUJO SOBRE ÁREAS BASTANTE EXTENSAS.”

Qual é a conexão entre poluição do ar nas grandes cidades e mudança climática?

Molina – Há importantes conexões entre as duas questões. Uma simples é que na medida em que as temperaturas sobem os processos de poluição do ar nos centros urbanos se tornam mais rápidos e mais extremos. Mas uma outra conexão importante é que os compostos que são normalmente associados à poluição do ar, smog, e assim por diante, afetam o clima em escala regional e às vezes mais longe. Os particulados, que são muito importantes em termos dos efeitos da poluição do ar sobre a saúde humana, também afetam o clima. Alguns desses efeitos amortecem a mudança climática, enquanto outros a alimentam, particularmente aqueles envolvendo partículas de negro de fumo, emitidas por motores diesel mais velhos. A fuligem é emitida por motores diesel e também por queima de vegetação e assim por diante. E têm importantes efeitos sobre o clima pela maneira como afetam as nuvens.

Dá para ver essa sujeira no ar?

Molina – Já é possível ver em fotos de satélite um fenômeno bastante espetacular, as chamadas nuvens marrons. Isso vem da Ásia. No norte da Índia e na China os satélites indicam ar muito sujo sobre áreas bastante extensas. Esse ar se move pelo hemisfério Norte, atingindo os Estado Unidos dentro de uma semana. A poluição do continente americano também alcança a Europa, em aproximadamente uma semana. Os efeitos da poluição, portanto, estão se tornando muito claros em larga escala, pelo menos no hemisfério norte. Além disso, a outra conexão importante é que a queima de combustíveis fósseis, o uso ineficiente e poluidor de energia, está na origem dos dois problemas. Assim, na medida em que consigamos melhorar a eficiência energética – nos transportes, por exemplo, que são um setor importante que contribui para os dois problemas – na medida em que aumentarmos a sua eficiência e usemos combustíveis limpos e tecnologias que limitem emissões, tudo isso ajudará a resolver os dois problemas, poluição do ar e mudança climática.

Quando começou o seu envolvimento com poluição do ar no México?

Molina – No MIT [Massachusetts Institute of Technology, onde Molina foi professor], eu fiz parte de um grupo de professores que decidiu lidar com problemas que dependiam do trabalho conjunto de gente de várias disciplinas, uma abordagem interdisciplinar. Então nós pensamos, bem, o problema das grandes cidades no mundo em desenvolvimento é claramente um problema complexo. Escolhemos a Cidade do México, em parte por causa da minha familiaridade com ela. Meu grupo focou na poluição do ar primeiro, vendo claramente a necessidade que havia de uma abordagem interdisciplinar. Analisando não só a química atmosférica, minha especialidade, mas também as questões sociais, econômicas e políticas, porque nós queríamos ter um impacto real – um impacto sobre a maneira como as coisas funcionavam, sobre a sociedade, governo e, no final, sobre a qualidade do ar.

Isso foi quando?

Molina – Foi no final dos anos 90. Mas nós realmente começamos em 2000-2001, pois foi então que começamos a receber recursos do governo do México, da comissão ambiental que lida com a região da Cidade do México. Era necessário apoiar estudantes de diversas disciplinas, estudos urbanos, economia, trabalhando junto com cientistas, com meteorologistas e assim por diante. E foi uma abordagem de sucesso, pois nós aprendemos a nos comunicar uns com os outros. Nosso objetivo era entender o problema, criar modelos nos mais diversos níveis, desde os científicos até os econômicos e assim por diante.

E as soluções?

Molina – O problema real era fazer recomendações para o governo ao mesmo tempo que mantinhamos uma colaboração com o governo. Trazer os tomadores de decisão para o grupo, estabelecer junto com eles qual seria a melhor maneira de implementar algumas das recomendações. O governo do México tinha um programa chamado PROAIRE, por exemplo, que previa 60 ou 70 medidas. Era um número excessivo, e só algumas delas puderam ser implementadas. Nós simplificamos, resumimos. Agora nós precisamos renovar a frota, temos veículos antigos em excesso. Precisamos ter os mesmos padrões dos países desenvolvidos para veículos novos. Mas isso requer combustível com teores ultra baixos de enxofre. Os combustíveis usados na Cidade do México têm teores relativamente baixos – 300 ppm – mas não é o ultra-baixo, que requer um investimento adicional de alguns bilhões de dólares nas refinarias. Nós conseguimos, portanto, trabalhar com o governo. Eles agora estão comprometidos com estes objetivos. Mas nós temos que trabalhar duro para garantir que a frota se renove, e que não envelheça. Temos que trabalhar duro para que isso aconteça tanto com a frota de automóveis particulares, com um programa forte de inspeção e manutenção, quanto com os veículos a diesel, que são muito poluidores e no momento não sofrem controle nenhum.

É caro fazer transporte de massa em cidades como México ou São Paulo?

Molina – Sim, é caro, mas também é caro construir infraestrutura para os automóveis. Os cidadãos que usam automóveis têm que perceber que isso tem custo. Todos têm que participar do custo. Transporte público é de fato caro, mas o custo é bastante justificável. Na Cidade do México, por exemplo, existe um metrô que funciona, carregando milhões de pessoas. É importante. As tarifas pagas pelos usuários não cobrem os custos de uma manutenção adequada. E se a manutenção é deficiente e o sistema se degrada, o número de passageiros cai e mais pessoas compram automóveis. Não podemos permitir que isso aconteça. Existe alternativa ao metrô. E ela se chama BRT, ou Bus Rapid Transit [os nossos corredores de ônibus]. Porque você não precisa construir infraestrutura cara e pode usar as ruas já existentes. Há alguns experimentos no México, com o Metrobus, como o denominamos lá. Existe um período de aprendizagem, mas está funcionando muito bem. Talvez seja justificável expandir algumas linhas de metrô, mas de maneira geral esses sistemas BRT têm sido muito mais atraentes financeiramente. E quando são feitos corretamente, esses sistemas conseguem até atrair pessoas que possuem automóveis.

Devemos restringir o uso de carros?

Molina – Sim, porque na prática é a única coisa que funciona. Do contrário todos saem perdendo, pois a congestão torna-se tamanha que as cidades tornam-se muito ineficientes. Sim, alguém tem de pagar, mas não precisa ser uma medida regressiva, pois parte do dinheiro arrecadado pode retornar à sociedade, por exemplo nos sistemas de transporte público. E no final das contas até os proprietários de veículos ficarão melhor. Sabemos disso através do exemplo de cidades dos países desenvolvidos onde o transporte público é muito bom. Temos o exemplo. É puro populismo dizer “vamos tornar os carros acessíveis para todos”. É errado, mas é muito atraente para um político atrás de votos.

O carro é um símbolo poderoso

Molina – Sim, possuir um carro é um símbolo forte de liberdade pessoal. Mas você não precisa ir de carro para o trabalho todo dia. No México, como no Brasil e em outros países, a indústria automobilística é muito importante para a economia. Nós não estamos falando em limitar as vendas de automóveis, estamos falando em limitar seu uso.

“NÃO IMPORTA SE O DIESEL É BIO OU NÃO, TEM A VER COM AS CARACTERÍSTICAS DO MOTOR.”

Os biocombustíveis são o caminho para um transporte limpo?

Molina – Não conheço a fundo a situação aqui no Brasil, mas o biodiesel tem um impacto positivo na questão da mudança climática. Mas no que diz repeito à qualidade do ar, às emissões, só na medida em que a mistura com o diesel comum reduz o teor de enxofre. Se precisa de diesel de ultra-baixo teor de enxofre, não adianta misturar 50/50, tem que ir muito além disso. Você tem que investir na tecnologia para reduzir o teor de enxofre. O biodiesel ou a mistura de biodiesel com diesel convencional em um caminhão com motor mais antigo ainda é bastante poluente. Não importa se o diesel é bio ou não, tem a ver com as características do motor.

São Paulo está no caminho certo?

Molina – Acredito que sim, no sentido que estão tomando as atitudes necessárias. Mas deixando claro que não conheço suficientemente a situação daqui, meu sentimento é que é preciso ser ainda mais agressivo. As medidas tomam muito tempo para ter efeito. E para desenhar programas mais agressivos é preciso ter uma visão do que queremos que a cidade seja, digamos, daqui a dez anos. É uma das maneiras que olharíamos no México: é possível ter ar limpo dentro de uma década se fizermos isso e aquilo. E isso é necessário para empurrar o governo.

Poucos olham dez anos a frente

Molina – É verdade. Mas é preciso olhar também para a situação atual. Sabemos que hoje estamos em uma situação inaceitável do ponto de vista da saúde pública. Medindo as concentrações de particulados podemos estimar a mortalidade adicional das pessoas vulneráveis, e podemos mostrar os efeitos no desenvolvimento dos pulmões das crianças. A maior parte das pessoas é sensível a isto. Eles não querem que seus filhos cresçam sem saúde. Então em parte trata-se de uma questão de comunicação com o público. As pessoas têm um sentido de responsabilidade, quando informadas.

Seu trabalho nos CFCs fez uma diferença enorme. Como você se sente?

Molina – É claro que é bastante recompensador, pois foi possível contribuir para uma solução para o problema. Por outro lado, aumenta a responsabilidade que temos como indivíduos e como cientistas. O que significa que devemos fazer tudo o que for possível para ajudar a resolver outros problemas, para melhorar a sociedade. Também induz à modéstia.

Como equilibrar atividades públicas e pesquisa?

Molina – Eu tenho me deslocado cada vez mais para as atividades de ciência aplicada e políticas públicas. Ainda tenho um grupo de pesqusia em San Diego fazendo ciência aplicada. Estamos estudando a química das partículas atmosféricas e encontramos alguns resultados interessantes e talvez importantes. Mas muitos dos que foram meus estudantes hoje são professores universitários e conduzem pesquisa muito boa. Portanto, sinto que posso fazer mais de volta ao México, atuando junto ao governo, e talvez colaborando no resto da América Latina e até mesmo nos Estados Unidos, onde eu também trabalho com mudança climática e questões de política pública. Sinto que tenho mais impacto nessas questões sociais que envolvem ciência.

Os mexicanos vêem a poluição do ar como o preço aceitável do progresso?

Molina – Sim, é um problema generalizado, especialmente nos países em desenvolvimento. Historicamente verificamos que os países só começam a se preocupar com o meio-ambiente quando atingem um certo nível de desenvolvimento. Mas do ponto de vista econômico é justificável prevenir que as situações cheguem ao ponto onde você tem cidades poluídas, ambiente poluído. Custa mais caro limpá-los. É só por causa de uma limitação do pensamento econômico normal que essas externalidades dos danos ao meio-ambiente não são incorporadas na economia. Se tudo isso fosse levado em consideração as pessoas estariam muito mais envolvidas na proteção do meio-ambiente. Muito do que se faz é derivado da ignorância, e talvez de um desequilíbrio entre visões de curto e longo prazo.

Você tem um exemplo disso?

Molina – Nós temos exemplos como a antiga União Soviética, que foi um desastre ambiental. Foi certamente um dos fatores da sua derrocada. Isso não pode ser ignorado. Fica cada vez mais evidente que com a população global que temos hoje em dia proteger o meio-ambiente não é mais um luxo, e sim uma necessidade. Algo que requer nossa colaboração, se quisermos ver padrões de vida em expansão no mundo todo. Mas não podemos fazê-lo sem mudanças profundas no nosso modo de agir, no uso de energia, na conservação da biodiversidade. Podemos fazer um estrago enorme, o que não se justifica nem do ponto de vista econômico.

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