“Você não vai ter uma boa impressão”, avisou Arthur Soffiati, assim que entramos em sua Marajó, ano 87, e passamos a sacolejar pelas ruas sem trânsito de Campos dos Goytacazes.
O anúncio não deveria surpreender um visitante da capital. A cidade não é muito popular entre os cariocas. A três horas de carro do Rio, ao norte do estado, Campos faz fronteira com o Espírito Santo e é o berço do casal Garotinho. Fica à beira-mar mas não se destaca pelo turismo, que no estado concentra-se no litoral dos Lagos (Búzios, Cabo Frio) e da Costa Verde (Angra, Paraty), e na região Serrana (Petrópolis, Teresópolis). À distância, o pouco que se sabe de Campos é que é um importante pólo petroquímico e “terra do chuvisco”, tradicional doce português à base de ovos. Nada que garanta muito ibope. Quanto às figuras públicas recentes, além de Anthony e Rosinha a terra dos Goytacazes pariu outro personagem de caráter duvidoso: Eduardo Vianna, o “Caixa D’Água”, que por 19 anos foi o coronel da federação de futebol do estado. Para completar o estranhamento da metrópole, os campistas não falam chiado. Soam sibilantes como os mineiros e parecem desconfiados como eles.
Mas, vinda de quem vem, a advertência negativa surpreende sim. Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país, Soffiati é um carioca radicado em Campos há 35 anos. Chegou por acaso, depois de morar em lugares paradisíacos como a Ilha do Mel, no Paraná, acompanhando o pai militar. Hoje nem pensa em sair de lá.
“Assumi um compromisso com esta terra, mas relação é de amor e ódio”, explica. O ódio tem a motivação sabida — “Estou na pior região política do estado”. Já o amor guarda origens ambientais insuspeitas pela maioria. A aridez política da região contrasta com uma natureza de águas generosas. “Estão aqui os maiores rios do estado – Paraíba, Itabapoana e Macaé – e o sistema da Lagoa Feia, que ainda é a maior lagoa costeira de água doce do Brasil. O Norte-Noroeste fluminense é muito bonito, muito rico, com uma grande biodiversidade. A Baixada de Campos é a maior planície do estado, área de Mata Atlântica estacional, que sofre influência das chuvas e da seca”, enumera Soffiati, com a intimidade de quem se tornou mestre na história ambiental da região entre os séculos XVII e XX (pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Federal do Rio, IFCS/UFRJ, em 1996) e doutor nas “relações das sociedades humanas com os manguezais” dali (também pelo IFCS, em 2001).
Restingas e mangues, ecossistemas abundantes por lá, têm vaga nobre entre os vários interesses do historiador. Inclusive em sua casa. No quintal que separa a residência da construção que abriga seu escritório, Soffiati põe em prática seus planos de botânico amador. A árvore que plantou há mais tempo, em 1992, é um guapuruvu (Schizolobium parayba, foto), espécie-símbolo do Vale do Paraíba, que já bateu nos 15 metros de altura. Depois vieram mudas de outras regiões. Grumixama, jenipapo, açaí, urucum, ingá da Amazônia e as “exóticas” jambo e mangueira convivem em espaço bastante limitado. “Aqui vale tudo, é a mixórdia”, decreta.
Mas o mangue e a restinga ganharam exposição própria, em canteiros ao longo do muro lateral e em frente à casa. Lá tem pitangueira preta e pitangueira-de-Copacabana (Eugenia copacabanensis, em extinção por motivos óbvios). Tem ipê verde, menos conhecido que seus primos amarelo, roxo e branco, pois suas flores se confundem com as folhas. Tem pau-brasil, samambaia-açu e peroba-de-Campos, que com o uso e o definitivo aval de Tom Jobim em Águas de Março virou peroba-do-campo. Mas é de Campos mesmo. Campos dos Goytacazes.
Sua intenção é instituir na área um Centro Botânico Cultural, aberto à visitação pública. Mais um sonho a realizar, se tiver tempo, depois de aposentado. Daqui a três anos, pelas suas contas. Se hoje, aos 58 anos, deixasse de lecionar para o curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), lhe restariam como únicas obrigações a coluna dominical que assina no jornal Folha da Manhã, as atividades no Conselho Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo, o Dicionário de História do Meio Ambiente no Brasil, com 80 verbetes, encomendado para junho, e as inúmeras consultorias para as quais ele, como maior (ou única) autoridade no assunto, é chamado e não recusa. “O que mais faço na vida é diagnóstico de ecossistemas e sua história, e escrever projetos”, diz. De quebra, arruma tempo para, sob o pseudônimo de Edgar Vianna de Andrade, encarnar o crítico de cinema às terças-feiras também na Folha da Manhã.
Ser multiativo e multidisciplinar combina bem com o camaleônico Soffiati, que além de Edgar e Arthur assina Aristides, seu prenome de batismo e pelo qual é chamado nas ruas de Campos. Aristides Arthur usa Aristides como colunista e Arthur ao repassar a coluna para sua rede de e-mails. Variações de identidade exercidas com naturalidade por quem é filho e neto de Aristides Arthur e irmão de Aristides Augusto.
E “chamado nas ruas” não é modo de dizer. Num passeio até o centro para almoçar ele é cumprimentado por colegas de universidade e alunos. Quando entra no restaurante árabe freqüentado pela fina flor campista, é saudado por políticos locais, de vereador a ex-prefeito. “O Garotinho costuma vir aqui”, diz. Recebe tapas nas costas e tem conversa afável com um vereador, que é contra o projeto da Aracruz de plantar eucaliptos na região. “Vai tirar nossos empregos”, o homem fala. Soffiati concorda, combina de conversarem sobre isso, e, quando o vereador vai embora, me conta que ele é fazendeiro com antecedentes de agressão ambiental. Já se desentenderam sobre a exploração das águas da fazenda, mas não há ressentimentos. É assim que funciona. Agir diplomaticamente é o segredo para que o inimigo de hoje possa ser aliado amanhã. Soffiati colecionou inimizades em sua longa militância pelo ambiente campista, mas continua amigo de todos.
Numa terra considerada sem-lei, é intrigante que ele tenha conquistado tal imunidade. “Fui absorvido e absolvido pela cultura local”, experimenta explicar, saboreando as palavras. Da cultura local ele entende bem, e tem uma tese pronta para quem pergunta qual o motivo de Campos produzir uma classe política tão contestada. “Desde as origens já se explica a peculiaridade do ‘Homem de Campos’. Os índios Goytacazes eram um enclave cultural cercado de tupis por todos os lados. O isolamento geográfico e cultural da região deu a ela uma característica particular: aqui se formou uma gente com um individualismo maior, uma arrogância mesmo”. Um historiador ambiental não arriscaria dizer isso por dizer. Soffiati garante que há documentos antigos nos quais as autoridades já se queixavam da insubordinação dos campistas. Cita carta de 1785, em que Manoel Martins de Couto Reis alerta ao rei que o governo de Portugal precisa enquadrar o povo daquela terra, que não quer pagar impostos, não respeita leis, é debochado, corajoso, destemido.
Por isso, para Soffiati o período áureo de Campos foi a época dos Goytacazes. “Não que eles não afetassem o meio ambiente, não acredito nessa idéia de que os povos primitivos viviam em harmonia com a natureza. Até porque o conceito de harmonia é cartesiano, não existe harmonia. O que acontecia naquela época é que a relação entre território, recursos e população era favorável aos três. Território grande, recursos fartos e população pequena”, ensina. Warren Dean, em A ferro e fogo, levanta a hipótese de os índios terem destruído a floresta da planície. Mas Soffiati defende que não havia mata ali, os campos nativos eram feitos de herbáceas. “Estudos com pólen mais recentes demonstram isso. Mantive correspondência com Dean, mas não deve ter dado tempo de ele incorporar a informação no livro”. Ainda assim, Soffiati figura na lista de agradecimentos da clássica obra sobre a história da Mata Atlântica.
O fato é que a arrogância campista original virou traço cultural. “Garotinho traz essa arrogância. É a figura do coronel como os que você ainda encontra no Nordeste. Mas no estado do Rio, só tem aqui”, comenta, lembrando que o movimento de desfusão da Guanabara, pretendido pelo Rio atualmente, começou em Campos, em 1855. Naquele ano, o município tentou criar a província de Campos dos Goytacazes, que ia até o sul do Espírito Santo. “No ano passado, a Rosinha finalmente realizou o sonho campista, transformando a cidade em capital do estado ao vir despachar daqui no segundo turno das eleições municipais. Era questão de honra ganhar aquela eleição”, contou Soffiati, antes do escândalo da compra de votos e da sentença de inelegibilidade virem à tona.
Num cenário humano tão inóspito, não há dúvida de que ele se safa bem. Ameaças de morte, conta nos dedos de uma mão. Processos na Justiça, foram oito. Os ofendidos: três prefeitos de Campos, um de São Francisco do Itabapoana, uma juíza e um procurador. O ex-governador Garotinho também o processou, quando era candidato a prefeito. Soffiati revelara que um aliado dele usava crianças para aplicar agrotóxicos em uma plantação de tomate. Já o artigo “O custo ambiental da dupla Garotinho”, por enquanto a única contribuição de Soffiati aqui no O Eco, não gerou, até o momento, contestação judicial.
Uma curiosidade histórica é que o jovem Anthony Garotinho foi aluno de Arthur Soffiati, no Liceu de Artes e Ofícios, tradicional escola secundária. Foram apenas dois meses, em substituição a outra professora. Tempo suficiente para um duro diagnóstico de personalidade. “Ele era uma liderança maligna na turma. Fazia a cabeça dos outros”, conta o professor.
O oitavo processo contrário veio da companhia estadual de água e esgoto, a Cedae, por calúnia, injúria e difamação. Também é uma boa história. No final dos anos 80, a cidade preparou pomposa festa para comemorar a inauguração da segunda maior estação de tratamento de água da América Latina, recebendo a ilustre visita do secretário estadual do Interior. A alta sociedade se apinhando, a TV registrando o evento, até que Soffiati surge no recinto com garrafinhas cheias de água coletada nas torneiras da cidade. Visivelmente imprestável. Estragou a festa.
Censura, sofreu só uma vez. Foi em meados dos anos 90, quando criou, na página das colunas sociais da Folha da Manhã, uma seção chamada “Soffialight”, em que fazia troça com a elite da cidade. “Soffialight era um anti-colunista social, num sarcasmo ao número que ele julgava excessivo neste mesmo caderno. A bem da verdade, eu compartilhava de seu julgamento, o que me fez enfrentar todas as tentativas de cessar a iniciativa, nesta planície de excessivas vaidades em que vivemos. Num meu período de férias, com o Soffialight pegando pesado em muitos socialites e empresários do município, meu pai optou por abrir mão da colaboração de Soffiati”, conta Aluysio Abreu Cardoso Barbosa, que então era editor geral e convidara Soffiati para escrever no caderno cultural, mas não pôde ir contra a decisão do pai, Aluysio Cardoso Barbosa, dono do jornal. Convidado a opinar sobre o historiador ambiental que freqüenta suas folhas aos domingos, Aluysio filho faz questão de completar seu depoimento dizendo que o considera “como um irmão”.
Carinho semelhante lhe devotam as responsáveis pelo Ibama local. Rosa Maria Wekid Castello Branco, chefe do órgão em Campos, foi aluna de Soffiati ainda no colégio, e atribui a ele sua formação ambiental. “Ele me ajudou a direcionar o que eu iria fazer, despertou a tendência para ciências, mas sempre enfatizando a relação da história com a natureza”, conta. E derrete-se em elogios: “Ele tem uma maneira firme de falar, sabe o que está dizendo, tem um jeito que desmonta as pessoas. Há uma sabedoria nata no que diz, no olhar, na sensibilidade aflorada que tem. É uma referência no Brasil inteiro, e na região Norte-Noroeste é a referência número um. É uma pena não ter assumido nenhum cargo político, mas isso é uma opção pessoal”.
Maria de Lourdes Coleho Anunciação, chefe substituta do Ibama, não faz por menos. “Soffiati tem um carisma especial, é ativista mas ao mesmo tempo é muito respeitado pelo histórico, pelo conhecimento. É um guru pra todos nós. É maravilhoso ouvi-lo, numa palestra dele você fica encantada. Ele briga contra as agressões ambientais, mas com ética e classe”.
Os depoimentos de Rosa Maria e Maria de Lourdes são legítimos, mas um pouco suspeitos. Elas foram companheiras de Soffiati em sua longa militância à frente da principal ong ambientalista da região.
Era 1977 quando Renato Pinto Venâncio e Ronaldo Miranda Motta, alunos de Soffiati no Liceu de Artes e Ofícios, o procuraram para ajudá-los a criar uma ong de defesa da Mata Atlântica. Eram menores de idade e precisavam da adesão de adultos. Sua primeira resposta foi não. Achava que era fogo de palha juvenil. Acabou convencido e participou, em 13 de dezembro daquele ano, da fundação do Centro Norte-Fluminense para a Conservação da Natureza, o CNFCN, do qual seria presidente entre 1979 e 1991.
O curioso é que a criação do CNFCN despertou simpatia da aristocracia local. Entre seus primeiros filiados estavam representantes da elite campista e da classe média conservadora. Mas a ong foi criada no oportuno momento de lutar contra as agressões aos recursos hídricos causadas justamente pelas fazendas de cana-de-açúcar e pecuária, e logo os fazendeiros repararam que ela não estava ali só para fazer bonito nas rodas sociais.
As lagoas Feia, do Campelo e de Cima, assim como os rios da região, eram vítimas do surto de drenagens levado a cabo pelo hoje extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS). O pretexto era “sanear” o ambiente para combater doenças, mas na prática a ação era estimulada pelos fazendeiros, que assim ganhavam uma chance de expandir suas terras. “Os limites das propriedades avançaram com o recuo das lagoas. De um lado era o governo drenando, do outro fazendeiros faziam valas e diques para conter a volta da água na cheia. Teve fazenda que cresceu de 70 para 300 alqueires. A lagoa Feia tinha 370 km2 em 1900, hoje está com 150 km2”, diz Soffiati.
A militância recorria tanto a expedientes legais quanto a manobras subversivas. Soffiati e sua trupe criaram o grupo Garra da Preguiça para realizar sabotagens do bem. Como quando, numa madrugada, foram arrancar a cerca que o próprio prefeito da cidade tinha usado para invadir a lagoa Feia. Levados para a delegacia, Soffiati esclareceu que eles não tinham invadido um espaço privado, e sim “desinvadido” o espaço público.
Além da defesa dos recursos hídricos, Soffiati não conta muito sobre os feitos da CNFCN. Mas Maria de Lourdes e Rosa Maria lhe dão todo crédito pela criação do Escritório Regional do Ibama em Campos e pela campanha contra a matança de tartarugas marítimas na região, que acabou rendendo para o Norte Fluminense uma sede do Projeto Tamar. Lembram também que Soffiati participou da elaboração da Lei Orgânica de vários municípios, na virada dos anos 90. Ele confirma que atuou “só nos capítulos de Cultura e Meio Ambiente”, e diz que não foram tantos municípios assim. “Os capítulos de Campos fiz inteiros. Depois algumas cidades quiseram se inspirar neles e eu ajudei. Foram só São João da Barra, Quissamã e Cardoso Moreira”.
Afastado da CNFCN há quase 15 anos, Soffiati deve voltar à militância em breve. Em abril, Rosa Maria e Maria de Lourdes foram eleitas para a diretoria da entidade, e não vão abrir mão da colaboração do amigo.
Por essas e outras ele não vê a hora de se aposentar. Queixa-se que não tem conseguido dedicar-se a procurar uma editora para seu livro O manguezal na história do Brasil, que está pronto. Pouco viaja, nunca saiu do Brasil a trabalho, mas mesmo no seu auto-exílio campista ganha elogios de quem é do ramo. Como Renato Pinto Venâncio, aquele seu aluno que fundou a CNFCN em 77, hoje diretor do Arquivo Público Mineiro, que reconhece em Soffiati um dos grandes nomes da História Ambiental no país. Acha que o ex-professor só não é mais reconhecido “por gastar muito tempo escrevendo para jornal”, e por ser um pioneiro numa área nova, na qual há pouca bibliografia para dialogar. Mas garante que “Soffiati é um dos nossos dois maiores especialistas em História Ambiental, junto com o Pádua”.
O Pádua em questão, José Augusto Pádua, colunista d’O Eco, também tira o chapéu para o colega. Lamenta seu isolamento acadêmico, mas considera que talvez isso seja uma vantagem. “Soffiati é um homem culto e está escrevendo cada vez melhor. Vive numa região problemática do ponto de vista ambiental, marcada pela monocultura. E Campos é o berço do ultraconservadorismo católico. Ele ter se enraizado é interessante, um aspecto diferencial. Talvez sua carreira acadêmica não tenha se projetado por causa disso, mas se cada micro-região tivesse um Soffiati, o Brasil seria bem melhor”. Campos dos Goytacazes, sem dúvida, fica bem melhor com ele.
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