Reportagens

Corte na corrupção

A Operação Curupira desestruturou o contrabando de madeira ilegal no MT. Foram parar na prisão madeireiros e funcionários do Ibama e do governo estadual.

Carolina Elia ·
2 de junho de 2005 · 20 anos atrás

Às 9h30 da manhã, quatro agentes da Polícia Federal entraram calmamente no escritório regional do Ibama em Alta Floresta, no extremo norte do Mato Grosso e um dos mais bem equipados da região, e comunicaram a dois prestadores de serviço e um funcionário do órgão que eles estavam presos. Sem esboçar qualquer tipo de resistência, os acusados se deixaram algemar e seguiram com os policiais para a delegacia federal de Cuiabá. A cena se repetiu em diferentes sedes do Ibama espalhadas pelo Mato Grosso, incluindo a de Sinop, onde estava o gerente-executivo do Ibama no estado, Hugo José Scheuer Werle. Ele também saiu de lá preso.

Em Brasília, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao lado do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, avisou: “Em qualquer momento e em qualquer lugar do país poderá acontecer novas prisões”. Era a deixa de que a Operação Curupira estava apenas começando. Poucas horas depois, o próprio secretário de Meio Ambiente do Mato Grosso, Moacir Pires, foi preso junto com outros seis funcionários da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fema). No fim da tarde foi a vez de Antônio Carlos Hummel, diretor de Florestas do Ibama.

Neste 2 de junho, a Polícia Federal deflagrou a maior operação de sua história contra a máfia do desmatamento na Amazônia. A justiça decretou a prisão de pelo menos 42 empresários e 47 servidores do Ibama, suspeitos de envolvimento com um esquema de fraude e corrupção instalado há 14 anos no Ibama de Mato Grosso. Funcionários públicos emitiam autorizações falsas para a exploração e transporte de madeira. O delegado Tardelli Cerqueira Boaventura, da PF de Mato Grosso, que chefia a Operação, informou ao repórter Matheus Leitão que até as 16h desta quinta-feira já haviam sido presas 85 pessoas. “Não podemos revelar o número de mandados de prisão que ainda falta cumprir porque os acusados poderiam fugir”, disse Boaventura.

Hummel caiu na rede por acidente ou por obra e graça da máfia dos madeireiros ilegais, acredita Tasso Azevedo, diretor de Florestas do ministério do Meio Ambiente. “Eles ficam procurando coisas para atingir, com ações na Justiça, as pessoas que mais os combatem”, disse, lembrando que o dirigente do Ibama tem sido um feroz adversário do desmatamento ilegal e da corrupção dentro do órgão. “Ele demitiu 14 funcionários em Rondônia, cancelou planos de manejo aprovados irregularmente no Pará e combateu a corrupção no Mato Grosso”. A própria Polícia Federal e a Procuradoria do Ibama deixaram claro que suas investigações não tinha levantado nada contra ele. A ministra Marina Silva também defendeu sua honestidade e competência no trabalho. Mas havia o mandado e ele foi cumprido por volta das 18 horas, quando Hummel se entregou na sede da Polícia Federal em Brasília, de onde foi transferido para Cuiabá, capital do Mato Grosso.

Seu mandado de prisão o acusava de omissão em relação à ordem judicial para suspender planos de manejo que estavam sendo tocados irregularmente dentro de Terras Indígenas no Mato Grosso. Hummel até cumpriu a ordem, mas depois a Funai mandou outros dados relativos a demarcação por geo-referenciamento das áreas indígenas que incluíram outros planos de manejo. Hummel os suspendeu há 20 dias, mas a Justiça não viu. “Esse tipo de coisa é chato porque desvia a atenção da prisão do pessoal realmente envolvido com a corrupção”, diz Azevedo. “Além do mais, deixa todo mundo nervoso”. De fato, dois assessores diretos de Hummel pediram demissão logo depois de saberem da existência de uma mandado de prisão contra o chefe. Não queriam se expor ao mesmo problema. Foram convencidos a ficar.

Até o momento, além das prisões, a Polícia também apreendeu oito carros de luxo, uma aeronave e valores em espécie nas residências dos envolvidos. Apenas na casa do servidor do Ibama Sebastião Crisóstomo Barbosa, com salário de 800 reais mensais, foram apreendidos 140 mil reais em dinheiro vivo. O chefe de reportagem de O Eco, Lorenzo Aldé, falou com Éryca Aparecida Santana, assessora de imprensa do Ibama em Cuiabá. Pasma, ela explicou que às 8 horas da manhã os funcionários do órgão na capital mato-grossense foram informados por Elielson Ayres de Souza – procurador federal do Ibama no Rio de Janeiro e responsável pela investigação – de que o Ibama de Mato Grosso estava sob intervenção e de que o gerente-executivo e os chefes de divisão da unidade haviam sido exonerados. Elielson também comunicou que tinha sido nomeado como interventor do órgão no estado. Segundo Éryca, os interventores para as chefias de divisão são do Rio de Janeiro e de Brasília.
De manhã, a repórter Andreia Fanzeres conversou por telefone com Moacir Pires, presidente da Fema e Secretário de Meio Ambiente do Mato Grosso, sobre o envolvimento de funcionários da fundação no escândalo. Ele afirmou que não sabia de nada e que não tinha sido intimado ou procurado pela polícia. “Não sei que servidores da Fema foram acusados de corrupção”, garantiu. À tarde, foi preso.


A quadrilha que foi desmantelada era composta por madeireiros e despachantes especializados na extração e transporte ilegal de madeira, e contava com a colaboração de servidores públicos do Ibama e da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fema). Os madeireiros e despachantes criaram pelo menos 431 empresas fantasmas para obter Autorizações para o Transporte de Produtos Florestais (ATPFs) ilegalmente. Esse documento é fabricado pela Casa da Moeda, mas é controlado pelo Ibama e autoriza a extração e transporte de madeira. Servidores públicos da instituição aceitavam suborno para emitir a autorização de transporte para estoques de madeiras cortadas ilegalmente e para aliviar a fiscalização do produto. Autorizações já preenchidas passaram por uma espécie de lavagem química para serem novamente utilizadas. Segundo a Polícia Federal, cada autorização em branco custava 2 mil reais. O volume de madeira transportado pelos integrantes da quadrilha, avaliado em R$ 890 milhões, daria para encher 66 mil caminhões, que enfileirados atingiriam a distância entre Salvador/BA e Curitiba/PR.

A investigação se acelerou em setembro de 2004 a pedido do presidente do Ibama, Marcus Barros, e teve como foco a gerência do órgão, em Cuiabá, e os escritórios regionais de Sinop, Pontes e Lacerda, Cáceres, Alta Floresta, Aripuanã e Juara. Ao todo, 480 policiais foram mobilizados para cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão nos estados de Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amazonas, Paraná e Santa Catarina. Mas na verdade ela começou em 2003, pelas mãos de Hummel e do então diretor de fiscalização do Ibama, Marcelo Marchesini. Eles abriram vários inquéritos administrativos para examinar a distribuição irregular de ATPFs e concessão de planos de manejo. No fim do ano passado, Barros, a pedido da ministra Marina Silva, mandou a procuradoria do Ibama consolidar todas as investigações em uma só e coordenar o trabalho com Polícia Federal e Ministério Público.

O trabalho jurídico ficou pronto dia 25 de maio e a cúpula do ministério do Meio Ambiente foi ao ministério da Justiça para uma reunião sobre o assunto. Nela, combinou-se a expedição dos mandados de prisão e a data e a hora em que as várias ações da operação seriam deflagradas. “As coisas aconteceram exatamente como planejamos”, disse um dos participantes do encontro.

Segundo as investigações, o gerente-executivo do Ibama em Mato Grosso, Hugo José Scheuer Werle, é suspeito de aumentar seu patrimônio em R$ 426 mil durante os últimos dois anos em que esteve à frente do cargo. Os envolvidos devem ser indiciados pelos crimes de corrupção ativa e passiva, inserção de dados falsos em sistema de informações, prevaricação, advocacia administrativa, falsidade ideológica, autorização indevida de desmate, extravio de documento público, formação de quadrilha e estelionato contra a administração pública.

“Desde o início do mês de maio havia rumores de que a PF iria deflagrar uma grande operação contra o desmatamento”, disse Ademarins Coelho Garros, funcionário do Ibama há 16 anos, ao repórter Manoel Francisco Brito. Ele foi transferido há pouco tempo do Rio de Janeiro para a sede do Ibama em Alta Floresta para ajudar no combate ao desmatamento. Desde que a equipe chegou ao estado, distribuiu 5 milhões em multas por retirada de madeira ilegal. Só a empresa Maderuna Indústria e Comércio,de São Paulo, foi multada em 3 milhões. Quatro dias depois,os funcionários ainda faziam corte raso na floresta com um trator. O pessoal do Ibama lacrou o veículo. Durante a operação Curupira foram interditadas as madeireiras Sulmap, Ancacil e Madeplacas, e cumprido mandado de busca em outra madeireira, a Americanwood.


“O governo está na ofensiva à corrupção e ao desmatamento ilegal”, disse a ministra Marina Silva ao comentar a Operação Curupira. “O governo não teme as investigações, nem que tenha que cortar a própria carne”, afirmou. O governo federal anunciou um convênio permanente do Ibama com a Polícia Federal para a apuração de denúncias na Amazônia, batizado de Operação Arribação. O Ibama do Mato Grosso estará sob intervenção por 60 dias e o fornecimento de novas ATPFs está suspenso por 30 dias. Todos os servidores que operavam sistemas de controle foram descredenciados e nenhum dos servidores que atuavam no setor terão acesso aos Sistemas de Fluxo de Produtos e Subprodutos da Floresta (Sismad), Integrado de Controle e Monitoramento dos Recursos Florestais (Sisprof) e Integrado de Cadastro e Fiscalização (Sicaf).

Também foi ajuizada uma ação civil pública contra a Fundação Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (Fema), acusada de autorizar desmatamentos acima da cota permitida em regiões de floresta amazônica. Segundo o Ibama, dados do sistema DETER (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), revelaram que só este ano já foram desmatados 2.900 km2 de floresta no Mato Grosso. O equivalente a metade da área ocupada pelo Distrito Federal. O secretário de comunicação do governo do Mato Grosso, José Carlos Dias, disse que o governo não vai se pronunciar sobre a Operação Curupira e que ainda não recebeu o conteúdo da ação civil pública movida contra a Fema.

Pessoa próxima às cúpulas do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama diz que do ponto de vista dos dois órgãos, as operações representam uma espécie de depuração das indicações de petistas feitas pelo ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, no início do governo Lula, para a sua área ambiental. Boa parte das pessoas já presas, ou com mandados de prisão contra elas, são há tempo suspeitas de serem corruptas ou foram indicações partidárias do início do governo.

Há gente também que pontificava na área ambiental do governo à época de Fernando Henrique Cardoso, como Randolf Zachow, funcionário do Ibama preso no Paraná. Ele era o agente brasileiro na CITES, órgão da ONU que combate o tráfico mundial de animais silvestres e de produtos florestais. Em 2000, Zachow escreveu carta ao U.S. Forest Service americano dizendo que era para liberar carregamento de mogno irregular apreendido pelas autoridades dos Estados Unidos. Os americanos mandaram uma carta de volta ao Brasil dizendo-se intrigados com a liberação e o caso, pelas mãos do Greenpeace, chegou até o Palácio do Planalto. Fernando Henrique demitiu-o do cargo na CITES imediatamente.

Veja a lista parcial dos presos na Operação Curupira.

* Esta reportagem foi escrita com informações apuradas por Andreia Fanzeres, Carolina Mourão, Matheus Leitão, Lorenzo Aldé e Manoel Francisco Brito.

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