Reportagens

Diário de Bonito

Um dos principais destinos do ecoturismo no Brasil, o lugar justifica a fama. A variedade de passeios é imensa e o contato com a natureza, inesquecível.

Matheus Leitão ·
9 de junho de 2005 · 20 anos atrás

No acostamento da estrada surgiu um corpo, à primeira vista sem ferimentos. Deitado de bruços, com aproximadamente 8 anos de idade, ainda estava com os olhos abertos, mas não respirava mais. O rosto encostado de lado no asfalto, que começava a esquentar, e uma pequena poça de sangue não deixavam dúvidas: ele havia sido atropelado minutos antes naquela manhã de maio.

O tamanduá-bandeira sobreviveu a seu principal predador natural, a onça-pintada, durante toda a vida, mas não à violência das estradas brasileiras. O animal, ameaçado de extinção, pesava cerca de 20 quilos. Como todos os adultos de sua espécie, alimentava-se de 35 mil insetos por dia.

A imagem foi chocante, mas não conseguiu apagar a beleza dos passeios em Bonito, a capital do ecoturismo do Brasil. Um município paradisíaco, rico em cachoeiras, cavernas e rios de água cristalina, localizado ao sul do Pantanal, na região sudoeste do estado. Distante 300 quilômetros de Campo Grande, Bonito tem mais de 40 passeios ecológicos de encantar.

O primeiro desafio foi colocar um capacete e descer por uma fenda de mais de 100 metros de profundidade nas formações rochosas da região. O lugar é conhecido por Gruta Azul. Sem nenhum tipo de apoio para as mãos e com o terreno úmido e escorregadio, os guias altamente preparados mostram às crianças e aos mais velhos onde pisar e por onde seguir.

A descida, com cuidado para não se esborrachar no chão, demora 40 minutos, mas a chegada vale a pena. O que surge lá embaixo é um lago azul-turquesa, protegido por um teto de incontáveis estalactites, de brilhar os olhos. O lago foi descoberto pelos índios terenas em 1924 e tombado pelo Patrimônio Histórico em 1978. Em 1992, uma expedição franco-brasileira de mergulhadores encontrou em seu interior machadinhas e vasos, além do fóssil de uma preguiça gigante. A preguiça ainda está lá, mas não pode ser vista pelo público. Ela provavelmente viveu durante o período geológico do Pleistoceno, de 6 mil a 10 mil anos atrás.

Mergulhadores especializados em descidas perigosas chegaram a 82 metros de profundidade no lago há alguns anos. A parte submersa da gruta se afunilou, e eles não puderam desceram mais. Por isso até hoje não se sabe a profundidade da Gruta Azul. Mas eles foram privilegiados. O público não pode entrar na água, por causa da fragilidade daquele habitat. Só duas formas de vida foram encontradas no lago azul-turquesa: um camarão albino verificado apenas em outra gruta no continente africano e um verme comum em cavernas. Se o mergulho fosse aberto ao público, o pequeno camarão certamente não sobreviveria à química que cada um de nós carrega no corpo.

Depois da gruta, os mais famosos passeios de Bonito são os de flutuação nos rios de água cristalina. O calcário, tipo de rocha predominante na região, calcifica qualquer sujeira no leito do rio e faz com que as águas sigam extremamente claras em alguns cursos d’água.

Destacam-se as flutuações no Aquário Natural, no rio Baía Bonita, e nos rios da Prata e Sucuri. Os três passeios apresentam uma diversidade de fauna e flora subaquática espetacular, cada um com fama de ser melhor que o outro. A competição é saudável, e difícil mesmo é escolher qual dos rios seguir. Estive em dois, no Baía Bonita e no rio da Prata.

O primeiro demora duas horas e meia, e o mergulho é muito simples. Na verdade, não passamos de meros espectadores. Somos depositados na água com uma roupa de neopreme e colete salva-vidas para sermos levados pela correnteza por 900 metros. Sem poder afundar para não afetar o ecossistema. Cercado de mata ciliar, o visitante levado pelo rio passa por uma experiência incomparável. A força natural do lugar predomina, expressa no barulho dos animais e nos diversos tipos de peixe e plantas que se vê através da máscara de mergulho. Durante todo o tempo, respira-se pelo snorkel, uma espécie de canudo que compõe o mais simples equipamento de mergulho.

Um barco de apoio acompanha todo o trajeto. Serve para amparar algum visitante mais cansado e para proteger os turistas de qualquer animal mais violento, como a sucuri, cobra capaz de comer um bezerro, uma capivara ou até mesmo um ser humano. Apesar desse cuidado, é preciso assinar um termo de responsabilidade em caso de “acidente”. “Por invalidez ou morte”, diz o texto. Mas não se assuste: trata-se apenas uma medida de segurança em um lugar onde a natureza praticamente não foi alterada e, por isso, não deve haver motivos para uma sucuri atacar um humano. Ainda mais com roupa de neoprema. Imagine a dificuldade para digerir. A cobra certamente iria preferir uma capivara.

Na segunda flutuação, no rio da Prata, tive o privilégio de fazer o primeiro mergulho do dia, por volta de 8 da manhã. Nessa hora, os bichos aparecem mais. Logo que me lancei na água, avistei um pintado, o maior peixe de água doce do mundo. Por ter hábitos noturnos, sua aparição foi inesperada. Começamos a descer o rio superpovoado por dourados, lambaris, cascudos, piraputangas e outras espécies. Um grande dourado veio em nossa direção com um lambari ainda vivo na boca lutando para fugir. O maior predador do rio não o deixou escapar. Um peixe cascudo, espécie de faxineiro do rio, grudado a um tronco submerso, também chamou a atenção. Mais à frente, vimos um jacaretinga. A espécie mansa de jacaré estava a três metros de distância, dentro da água. Me mantive imóvel até o guia do passeio, conhecido somente por Batata, se aproximar do animal, que pode chegar a 2,5 metros de comprimento. O jacaretinga se afastou, e o coração pôde voltar a bater mais devagar.

Nesse passeio, ao contrário do Aquário, não há um barco de apoio, mas pontos com deques onde podemos descansar. O percurso também é maior – quase dois quilômetros. A profundidade do Prata alterna-se constantemente, indo de meio metro a nove metros. Mesmo onde o rio é mais fundo, a água não se torna turva. Continua cristalina, com visibilidade de 100%. O mergulho me proporcionou a visão de uma nascente de água embaixo d’água. Isso mesmo. Apelidada de vulcão, a nascente levanta uma massa de areia que normalmente fica depositada apenas no fundo do rio. Para completar o show, uma lontra resolveu aparecer rapidamente para brincar com a gente.

Dá pena de sair da água. O sol naquele dia estava forte, o céu sem uma nuvem. E o rio da Prata estava inesquecível. Apenas a sucuri não deu as caras, apesar dos esforços de Batata em avistá-la durante todo o trajeto. “Também, seria muito privilégio para um mergulho apenas. Fazia tempo que não via a lontra”, disse o guia. “Agora O Eco terá de voltar aqui”.

Os dois passeios oferecem ainda trilhas por matas repletas de animais como a anta, o mutum e macaco prego. Há outros tipos de mergulho, como o Bonito Aventura, com mergulho livre por outros dois mil metros de rio. E passeios pelas cachoeiras, como na trilha ecológica Boca da Onça, maior queda d’água da região, ou o do rio do Peixe, com um almoço maravilhoso seguido de seis cachoeiras para relaxar.

Todos os passeios são realizados com guias, e o preço varia de R$ 20 a R$ 430. O preço mais salgado refere-se ao Abismo Anhumas, uma aventura cheia de adrenalina. O turista é convidado a entrar por uma pequena fissura no solo de Bonito e descer de rappel por 72 metros, o equivalente a um prédio de 30 andares. Quando pisa no chão de novo, está no interior de uma enorme caverna. Lá, pode mergulhar em um lago de águas cristalinas e, se tiver curso de mergulho, afundar 18 metros para ver maravilhas indescritíveis.

A lista de atividades turísticas em Bonito é imensa. Tem a descida de bote no rio Formoso, principal curso d’água da região, e o “bóia cross”, que leva o visitante por corredeiras agarrado a uma bóia. Este passeio parte do Hotel Cabanas, um dos mais interessantes de Bonito. Cada hóspede recebe a chave de uma cabana dentro da mata. “A idéia é levar o turista o mais perto possível da natureza”, explica o dono, Ricardo Constantino, 28 anos.

Uma relação quase completa dos passeios pode ser vista no Portal Bonito. Nesse site, o turista encontra links para as aventuras e para as formas de reserva – providencia muito importante na alta temporada.

Na hora de pegar a estrada, não se esqueça: preste atenção nas placas com desenhos de tamanduás e outros animais com os dizeres “Seja prudente. Posso atravessar”. São mais de vinte. “Já vimos animais atropelados muitas vezes. É triste. Os motoristas não tomam o cuidado necessário”, explica Eleri Paulino, um engenheiro florestal que trabalha em Bonito. Não é a imagem que se quer guardar como lembrança ao deixar aquele paraíso.

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