Reportagens

O fantasma do sertão

Década de 50. Expedição liderada pelo coronel Domingos se adianta à vingança dos fazendeiros e captura viva uma bela pantera negra jurada de morte no Piauí.

Carolina Mourão ·
15 de julho de 2005 · 19 anos atrás

O ano era 1958, garantido. Sei porque a Rural Willys do meu bisavô, Domingos Mourão, era zero, foi a primeira do Piauí fabricada no Brasil. Nos sertões do interior do estado, cabras, ovelhas, carneiros, bodes a até jumentos começaram a sumir sem explicação das soltas – imensas áreas de criação livres, onde os bichos ficavam soltos, no Norte do estado. Vizinhos, antes compadres, se intrigaram. Era roubo, de certo. Atrevimento sem perdão em tempo sem lei, de juras de morte. Então proprietários de terras se puseram acordados por noites inteiras, escondidos de rifles nas mãos, determinados a dar cabo no ladrão. Os fazendeiros iam tomando gosto pela raiva na espera sem fim das noites de tocaia. Outros, confiaram aos fiéis jagunços a tarefa, profissionais da vingança. Naquele mês de seca, havia bandos de 4, 6 delegados só para o ofício, mas ninguém viu nada. A isca estava ali, amarrada, sob mira constante. Mas simplesmente era subtraída pela noite, num vacilo de olhos, em mais uma baixa. O fenômeno levou os tocaias a amarrar um rosário no cano duplo das armas. “Era assim um fantasma, moça”.

Não. Era uma onça negra, raríssima pantera brasileira. Invisível na noite escura, não fitava nada além da presa. Por isso não se via o brilho dos olhos que a denunciasse. Quando ocorria um ataque, não se sabia dizer o que foi ou de onde vinha, e tudo estava acabado em poucos segundos. Sabido o fim do mistério, a ameaça permanecia. Foi quando a bicha foi jurada, “finada antes de morrer”, como conta o último Matias que testemunhou os fatos, da família Matias de rastreadores profissionais, contratados para a expedição que o coronel Domingos Mourão, então líder político do município de Pedro II, organizou para ir atrás da bicha. “Aquilo era para ele exercício de disciplina, um desafio de brios”, disse a nora do coronel, dona Iracema Mourão. Era cobiça também. Mourão se adiantou aos vingadores das fazendas sabendo que, já rara na época, a onça valia mais viva do que morta.

Pois bem. Mourão não podia falhar em hipótese alguma sob pena de perder autoridade e controle sobre os correligionários, que apostavam dinheiro, a casa ou a própria filha no resultado. As dificuldades logísticas da empreitada eram imensas, e a tarefa, um épico. O raio de ação da onça era desafiador. Pegava 4 estados. Segundo o último Matias, havia registros recentes dos ataques invisíveis desde a divisa do Pará com o Maranhão esbarrando na ponta do que hoje é Tocantins, em Angico, até a região do Tamboril entre o Piauí e o Ceará. Mas Joaquim Matias, caboclo galo do pescoço vermelho, sabia a direção a ser seguida. Levou o bando para a Cachoeira Grande, onde os homens se acomodaram no alto das árvores, e lá amarraram redes à espera da pantera. “Pelo rumo da fome, calculei que era ali”. Gente corajosa porque onça dorme no alto, é bicho suave e chega em silêncio.

Mas ela não subiria árvore alguma. Sentindo gente no seu encalço, se enfurnou em um buraco de calcário. Foi lá que a expedição de Mourão a encontrou. Foram mais 13 dias de tocaia, segundo relato de Vianinha, grande amigo da família Mourão, tempo que o grupo usou para fazer uma jaula de madeira, estrategicamente colocada à saída da toca. Paciente, o grupo estava resguardado. Levou farinha, carne seca e rapadura para um mês. O problema era a água. Economizavam nos cantis de couro. Mas a sede não era privilégio da expedição. A onça sucumbiu primeiro. E resolveu sair. Ou melhor, entrar na jaula. Não havia para onde escapar. “Era a própria. O fantasma do sertão”, confirmou Joaquim Matias. E explicou: “tinha uma cicatriz na pata, algum ferimento. A pisada era irregular”, assim era o rastro.

O desfecho foi uma ave-maria. Os cães, condicionados à caça, acuavam a onça para o fundo da jaula, mas se urinavam de medo do predador, encrespado. A empreitada havia sido concluída com sucesso, mas o desafio estava longe de acabar. O retorno da expedição foi complicadíssimo. A Rural Willys, do ano, foi enviada e engatou a jaula, para retornar lentamente a Pedro II. Bem alimentada, a pantera era um chumbo. As estradas, em péssimas condições não ajudavam, quando em alguns trechos era mesmo apenas piçarra de costelas. Havia grande risco dela se soltar com a trepidação.

A chegada da onça, muito aguardada, foi um evento sem precedentes no município. A multidão se aglutinou em frente ao casarão do coronel, na praça matriz que leva seu nome. Teve recepção de chefe de estado, com papel picado, apitos e aplausos. Muitos já contabilizavam o saldo das apostas. Os “bodes” como eram conhecidos os adversários políticos, aborrecidos com o prejuízo das apostas, se enfiaram nos botecos. Durante um mês ela foi atração na cidade. A jaula de madeira foi colocada em um quarto arejado na casa ao lado, esquina com o casarão. Era alimentada com boa carne, comprada com dinheiro apurado pela cobrança de 10 tostões – o equivalente hoje a 1 real – para quem quisesse vê-la pela janela, e não houve quem não a viu. Até o dia em que se soltou.

Foi uma carreira na madrugada. Os urros podiam ser ouvidos do outro quarteirão, a cidade inteira acordou. Não havia como prendê-la. Muito se discutiu a estratégia de emergência, mas nada poderia dar certo. O melhor seria deixá-la solta e arriscar o tempo de fazer outra jaula, e colocá-la na boca da porta, novamente engatilhada. Mas era muito arriscado. A peleja foi pelo telhado, laçada feito boi. Ficou amarrada com pesadas correntes até receber a nova jaula, desta vez de aço.

Depois foi comprada por um próspero comerciante de Teresina, filho de Pedro II, Valdemar Martins, e enviada a Fortaleza. Lá ficou até ser comprada por um zoológico da Bélgica. Pagou-se uma verdadeira fortuna pelo espécime, mutante genético da onça pintada. E nunca mais se ouviu falar do famigerado fantasma, do sertão do Piauí. Não se sabe se teve vida boa, ou vida ruim. Se morreu velha ou foi maltratada. Sei que na época era o melhor que se podia fazer, jurada de morte que estava. Se a morte era melhor, como saber? No mais, uma pequena rima feita pela Puruga, mulher sem letras, formada no ABC da memória, que andava pelas ruas a cantá-la sempre que alguém lhe pagava umazinha na cidade:

No Rio de Janeiro
Viva o Milton Brandão
Aqui em Pedro II viva a Puruga
E a onça do seu Mourão!

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