Reportagens

Quórum zero

Criada em 2004, continua na estaca zero a Comissão que analisa a inclusão do Cerrado na lista de patrimônios nacionais. O lobby ruralista não a deixa avançar.

Carolina Mourão ·
8 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Há algo de podre na Comissão que avalia a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 115/95, que quer alterar o artigo 225 da Constituição, incluindo o Cerrado na lista de biomas considerados Patrimônio Nacional.

A Comissão foi criada na Câmara dos Deputados em março de 2004, depois do alarmante levantamento feito pela ong Conservação Internacional do Brasil, que concluiu que em 2030 só restarão os ínfimos 3% de cerrado que já são áreas protegidas. O estudo, feito entre os meses de setembro e novembro de 2003, foi amplamente divulgado. A abertura da Comissão representou uma resposta rápida do Congresso à indignação das entidades ligadas ao meio ambiente.

Segundo a Conservação Internacional (CI), a elevação de um ecossistema à condição de patrimônio nacional é importante e faz diferença. “Não é só um título. Existe um peso de alcance de mídia, para mobilização das pessoas”, diz Mário Barros, gerente do Programa do Cerrado da CI Brasil. O cerrado, segundo Barros, é visto pelo governo como área livre a ser ocupada. “O título é um importante instrumento e obrigaria o governo desenvolver políticas de proteção e regulamentação que não existem hoje, como aconteceu com a Mata Atlântica”, completa.

Ricardo Machado, diretor da ong, lembra que o cerrado perde hoje 2,6 campos de futebol por minuto de sua cobertura vegetal. “Essa taxa de desmatamento é dez vezes maior que a da Mata Atlântica, que é de um campo a cada quatro minutos”, compara. O objetivo da comissão é justamente elaborar um parecer para corrigir a Constituição o mais rápido possível, incluindo a caatinga e o cerrado na lista de ecossistemas considerados patrimônio nacional. “Existe imensa expectativa sobre esta comissão. Está demorando muito”, estranha Mário Barros. Mas a corrida contra o relógio não parece sensibilizar os deputados que formam a comissão.

A única reunião realizada foi a de instalação, ainda em março de 2004, que definiu a composição da mesa. Nas dez sessões seguintes, data limite para a apresentação de emendas, ninguém apareceu. Desde então tem sido assim. Das 240 sessões agendadas, nenhuma foi realizada. Não havia o número mínimo de deputados presentes.

A curiosa deficiência de quórum tem levado o presidente da comissão, deputado Ricarte de Freitas (PTB-MT), a pedir prorrogações sempre que vencem 20 sessões, prazo para a apresentação do parecer. Integrante da oficiosa bancada ruralista da Câmara, o deputado parece saber que o regimento interno da Casa não prevê limite para os adiamentos das reuniões, e abusa da prerrogativa enquanto apóia o avanço da soja em seu estado natal, o Mato Grosso.

Em 25 de maio de 2004, sem qualquer reunião realizada, ele pediu a primeira prorrogação para a apresentação do parecer. Depois fez isso outras 11 vezes seguidas, sem pudor: em 28 de junho, 23 de agosto, 28 de setembro, 04 de novembro, 10 de dezembro, 16 de março de 2005, 12 de abril, 18 de maio, 24 de junho e… ufa, no último dia 2 de agosto. Cada prorrogação significa 20 sessões não realizadas, o que resulta em um total de 220 encontros, mais os 40 iniciais, canceladas por falta de quórum.

Quando liguei para Freitas para perguntar se ele não estranhava esse excesso de ausências, o deputado disse estar “com medo” de não ter quórum novamente na terça-feira, dia 9, para quando está agendada nova reunião da Comissão. “Se continuar assim não vai dar”, reclama. Mas ainda resta alguma dúvida, com este histórico? “Vamos esperar. Se ninguém aparecer, aí vou ter que pedir para que esses deputados sejam trocados, ou alguma coisa assim”. E tenta dar valor a seu papel de presidente: “Olha, terça a gente vai deliberar uns requerimentos”. Provavelmente os mesmos que foram apresentados quando a comissão foi instalada, e que até hoje estão lá caducando.

A bancada ruralista, estrategicamente enxertada na composição da comissão, parece garantir a ausência de um número suficiente de deputados para impedir a formação de maioria absoluta, necessária para dar andamento às reuniões. Do total de 32 deputados que formam a comissão, é preciso ter metade mais um para dar início aos trabalhos. Daria 17 deputados, número que não é difícil obstruir, indefinidamente.

A tropa de choque da soja na comissão é democrática: vai do PFL ao PT. Além da presidência, os ruralistas têm também a relatora, a petista goiana Neyde Aparecida, que finge lutar a favor do meio ambiente. Na base de apoio, estão os irmãos Caiado, Ronaldo (PFL-GO) e Sérgio (PP-GO), Moacir Micheletto (PMDB-PR), velho aliado do desmatamento, que há quatro anos apresentou projeto para mudar o código florestal, e Luiz Bittencourt (PMDB-GO), relator da MP que liberou a comercialização da soja transgênica em novembro de 2003. Essas são as grandes estrelas.

Como coadjuvantes, estão escalados os ruralistas ou simpatizantes Vilmar Rocha (PFL-GO), Pedro Canedo (PP-GO), Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO), João Campos (PSDB-GO), Romel Anízio (PP-MG), Jaime Martins (PTB-MG), Fernando Diniz (PMDB-MG), Antônio Carlos Biffi (PT-MS), Celcita Pinheiro (PFL-MT), Eliseu Resende (PFL-MG), Raimundo Santos (PL-PA), Maurício Rabelo (PL-TO), Júnior Betão (PL-AC), Ronaldo Dimas (PSDB-TO). Apesar do peso evidente que esta bancada representa na comissão, Ricarte de Freitas descarta a possibilidade de lobby. “Não faz sentido essa hipótese. Se os ruralistas tivessem algum interesse tratariam de tentar uma conciliação, e não emperrar os trabalhos”, alega.

A assessoria do deputado Moacir Micheletto admitiu suas 240 faltas. “Não vai ninguém, por que ele ficaria? Ele assina e vai embora”, diz um assessor, que aproveita para culpar Lula e a crise do mensalão pelas ausências. A assessoria do deputado Ronaldo Caiado alegou desinformação. O deputado Luís Bittencourt falou. Disse que há um acúmulo de trabalhos na Casa e que por isso não dá para comparecer. “Eu participo de nove comissões, não dá para estar em todas”. Foi quando eu tive de lembrá-lo que nem ele nem ninguém nunca apareceu desde a instalação da comissão: “Ah, é? Então, aí já é o interesse do presidente”, e passou a bola para quem nega tudo. Assim o ciclo se fecha na mentira combinada.

Enquanto a bancada ruralista da comissão sabota o parecer e adia a proteção do cerrado, a taxa de desmatamento atinge 3 milhões de hectares por ano. Dos 204 milhões de hectares originais de cerrado, 57% já foram completamente destruídos pela expansão da pecuária de gado de corte e pelo avanço do algodão e da soja. O restante das áreas remanescentes está bastante alterado, podendo não mais servir à conservação da biodiversidade. “Esta proteção é para agora ou nunca mais”, ressalta Ricardo Machado, da CI.

A relatora da comissão, Neyde Aparecida, responsável pela elaboração do parecer da PEC, diz que pretende resolver a situação de outra maneira. “Vou ligar para as entidades ligadas ao meio ambiente para pedir que pressionem os deputados. É o único jeito. Estou combinando isso com o presidente”. Sugeri que a deputada fizesse melhor. Basta dar uma olhada no artigo 52, parágrafo 6°, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Sua aplicação resolveria o problema. Segundo o Regimento, vencido o prazo de 20 sessões, como já aconteceu tantas vezes, qualquer deputado pode pedir que a votação do parecer seja feita em plenário, sem que ele tenha de passar pelo crivo da comissão. “Existe mesmo essa possibilidade”, confirma. “E por que a senhora ainda não fez isso?”.

Ex-prefeita de Aparecida de Goiânia, Neyde tem seus motivos: nutre estreitos laços com os ruralistas. “Sobre esta possibilidade do plenário, me liga semana que vem”, escapa. Há que se ressalvar que Neyde está ocupadíssima, tentando explicar a origem do dinheiro que financiou sua campanha em 2002 e dos 200 mil dólares que um ex-motorista contou ter levado para candidatos do PT goiano no ano passado. Sobre estes assuntos, não fala. Alega estar em uma eterna reunião.

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