Reportagens

Agora é com os meritíssimos

Há muito em jogo na votação do STF sobre as Áreas de Preservação Permanente: interesses econômicos, o poder do Conama e a necessidade de uma nova lei ambiental.

Lorenzo Aldé ·
29 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

O destino da preservação ambiental no país está em jogo. E não é nas florestas, rios ou campos, mas nos Tribunais. Nesta quinta-feira, 1° de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai analisar a liminar concedida há um mês por seu presidente, Nelson Jobim, suspendendo o artigo 4° do Código Florestal (leia a decisão, em PDF). O texto vigorava desde 2001, definido em Medida Provisória assinada por Fernando Henrique Cardoso, e tratava dos casos excepcionais em que é possível alterar Áreas de Preservação Permanente (APPs).

Por causa da liminar, desde o dia 26 de julho o Ibama e os órgãos estaduais de Meio Ambiente não estão expedindo licenças para qualquer tipo de intervenção em APPs. Leia-se: mangues, dunas, nascentes, beiras de rio, encostas e topos de morro, entre outras áreas fundamentais à proteção da fauna e da flora. Eles seguem orientação da área jurídica do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que interpreta que, sem o artigo 4°, não existe mais base legal para liberar a exploração dessas áreas.

Criou-se então uma situação inusitada: em vez de defender as áreas protegidas, o MMA e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) afinaram seu discurso com o do setor industrial, engrossando a pressão para que a decisão jurídica seja derrubada e as APPs voltem a ser exploradas. 

A União entrou com recurso contra a liminar de Jobim, endossado pelos estados de São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, que alegam estar perdendo “bilhões” com a interrupção das licenças. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) veio a público manifestar sua preocupação, e ganhou o coro do consultor jurídico do MMA, Gustavo Trindade, que afirmou que a manutenção da liminar “pode paralisar a economia do país”. O Ministério das Minas e Energia botou lenha na fogueira, dizendo que as licitações para novas hidrelétricas estão em xeque e prevendo novos apagões no horizonte. Grandes obras estariam na berlinda, como a BR-163 (Cuiabá-Santarém) e o gasoduto Urucu-Porto Velho. Tudo porque, até para construir uma pinguela ou “abrir caminho para o gado beber água”, seria preciso mexer com APPs.

A histeria é exagerada? O jurista Paulo Bessa, colunista do O Eco, não tem dúvidas. Ele classifica as reações do empresariado de alarmismo e lança mão de uma pergunta provocadora: “Antes de 2001 não tinha hidrelétrica?”. Foi apenas naquele ano que Fernando Henrique lançou mão da MP 2166, que alterou o artigo 4° do Código Florestal definindo as regras para liberar a exploração das APPs (leia a íntegra da MP). Como a liminar de Jobim derrubou aquela MP, voltamos à situação jurídica pré-2001, quando grandes e pequenas obras eram tocadas normalmente.

Bessa também classifica como “xiitas” os deputados e empresários que argumentam que para regularizar a situação seria preciso criar milhares de novas leis, uma para cada caso específico de intervenção em APP. Ele defende que basta uma lei definindo as regras gerais, e aos órgãos ambientais caberia conceder licenças caso a caso, respeitando essas regras.

E é neste item que mora o x da questão. Na verdade, o MMA e o Conama se posicionaram frontalmente contrários à liminar do presidente do Supermo não porque são contra a preservação ou estão mancomunados com interesses econômicos. Mas porque a liminar põe em dúvida a legitimidade do próprio Conama, que há três anos vem discutindo o conteúdo de uma resolução que estabelece as regras de intervenção em APPs. O texto-base da resolução foi aprovado no dia 18 de maio, causando forte reação contrária entre ambientalistas. Foi justamente para impedir que o Conama votasse a resolução e seus destaques, na reunião marcada para os dias 27 e 28 de julho, que Nelson Jobim acatou, na véspera do evento, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo Ministério Público Federal.

A ação aceita por Jobim alega que a MP de Fernando Henrique é inconstitucional porque permite aos órgãos ambientais licenciar a exploração de APPs, e isso “somente poderá ocorrer por meio de lei formal” (artigo 225 da Constituição). Esta interpretação não apenas derruba a MP como esvazia a competência do Conama para decidir sobre o assunto. Na esteira da decisão, as demais resoluções do Conselho, que atualmente têm força de lei, poderiam ser questionadas. Afinal, como lembrou Paulo Bessa em coluna recente aqui no O Eco, não se trata de um órgão do Poder Legislativo.

Claudio Langone, secretário-executivo do Conama, enxerga na crise motivações políticas deliberadas para tirar poderes do Conselho. “Existe um movimento conservador forte no Congresso querendo enfraquecer o Conama”, diz ele. Isto porque “nenhum Conselho em nível nacional é tão forte quanto o Conama”.

Ele afirma que ficou surpreso com a atitude do Ministério Público de questionar a Resolução das APPs, até porque representantes do MP vinham participando das reuniões de discussão sobre as novas normas, e “nunca levantaram a inconstitucionalidade das propostas”. Aliás, nunca questionaram a própria MP de 2001, que inspirou a criação dos órgãos ambientais na maioria dos estados.

Em abril deste ano, houve um encontro apenas para debater os aspectos jurídicos da resolução, e “a única voz dissonante foi a do Paulo Bessa”. Mesmo assim, por causa das pressões dos ambientalistas, o Conama já tinha decidido fazer audiências públicas para debater a Resolução. E a reunião dos dias 27 e 28, ao contrário do que alega a liminar expedida por Nelson Jobim, não iria votar o texto, apenas discuti-lo. “A gente não ia votar, e o Ministério Público sabia disso”, diz Langone. Para ele, a intenção da ação de inconstitucionalidade é impedir o Conama de seguir a discussão.

Sobre a Resolução, ele lembra que o conteúdo, criticado por ser flexível demais, é apenas um texto-base, que ainda podem ser suprimidos alguns artigos e 102 emendas serão votadas. O resultado final, garante Langone, será mais restritivo. De qualquer forma, há casos em que as Áreas de Preservação Permanente devem ser relativizadas. Como em regiões alagadiças. O Pantanal, por exemplo, é “uma grande APP”. “Toda aquela estrutura de ecoturismo em Bonito não seria possível se a intervenção fosse proibida. E no entanto desenvolveu a região e preservou o meio ambiente”, argumenta.

E se a liminar de Jobim for confirmada?

Para Paulo Bessa, o governo pode lançar imediatamente uma Medida Provisória, para liberar as obras pendentes enquanto prepara um Projeto de Lei sobre o assunto, para ser votado no Congresso. “Coisa que já deveria ter feito há muito tempo. O Conama não quer que o país seja regido por leis. Prefere que um órgão burocrático local, de quinta categoria, decida sobre a preservação ambiental”, critica.

É justamente nos homens das leis que reside a ameaça, para Claudio Langone. Com este Congresso que está aí, deixar as decisões ambientais nas mãos do Legislativo é uma temeridade. “Temos posição muito rígida para evitar que essa questão vá para o Congresso. Os deputados querem mudar até a porcentagem de reserva legal na Amazônia. Imagine como os grupos econômicos vão pressionar. Isso não acontece no Conama, onde 90% das resoluções passam por consenso, com muito mais negociação e flexibilidade”, defende.

Já se os magistrados decidirem suspender a liminar, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) vai para a gaveta, a indústria respira aliviada e o Conama recupera o direito de abrir a rodada de cinco audiências públicas (uma em cada região do país) para discutir as normas das APPs. Para Paulo Bessa, isso significará “a desmoralização do Supremo”.

O resultado: quinta-feira, 1° de setembro, no plenário do Supremo Tribunal Federal.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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