Já faz algum tempo que o vocabulário sobre aquecimento global pontua os discursos do primeiro-ministro inglês Tony Blair. O grau de importância dado ao tema é que varia conforme os ventos políticos. Em junho de 2004, durante a Conferência Internacional sobre Energias Renováveis (“Renewables”), Blair afirmou que as mudanças climáticas “são o segundo maior desafio que enfrentamos hoje“. O discurso terminou sem que Blair mencionasse qual era o primeiro grande desafio mundial. Mas nem precisava. A parceria com Bush ao invadir o Iraque deixara claro que a “guerra contra o terror” dominava sua agenda.
Um ano depois, no dia 7 de julho de 2005, o problema climático tinha mudado de categoria para Blair. Era o início da reunião do Grupo dos Oito (G-8) na Escócia e os temas propostos pelo Reino Unido para os países mais ricos do mundo foram a ajuda ao continente africano e o aquecimento global. Quatro bombas e 52 pessoas mortas em Londres na manhã daquele mesmo 7 de julho forçaram o premier a justificar suas prioridades. Horas depois dos atentados, Tony Blair expressou sua frustração: “É preocupante que atos como este ocorram no momento em que estamos reunidos para tentar resolver os problemas de longo prazo da humanidade, como o das mudanças climáticas”.
O terrorismo ofuscou o desenrolar da reunião na Escócia. Ali, Blair tentou impulsionar uma nova rodada de negociações com os Estado Unidos sobre os problemas do clima. Nenhum compromisso concreto foi obtido de George W. Bush, a não ser uma vaga disposição de transformar pesquisas em tecnologias limpas em seu ato mais contundente contra o aquecimento global (algo que ele diz não ter certeza existir).
Mesmo depois do esperado fracasso de um acordo com o presidente americano, as ONGs britânicas não criticaram Blair. Durante o último ano, em que o Reino Unido vem presidindo não só o G-8 mas também a União Européia, o premier efetivamente colocou as questões ambientais entre as prioridades. “Nós acreditamos que Blair está comprometido e genuinamente interessado nos problemas de aquecimento global”, diz Alison Wade, porta-voz do World WildLife Fund (WWF) do Reino Unido. Contudo, a avaliação da ONG sobre a reunião do G-8 não é positiva. “O problema climático requer medidas que cortem imediatamente a emissão de gás carbônico. Apenas o foco em avanço tecnológico, como quer Bush, não é suficiente”, critica Wade. Rushell Marsh, coordenador de políticas públicas da Green Aliance, uma das organizações mais atuantes nopol Reino Unido, concorda que a falta de resultados concretos frustrou, mas aponta um outro lado. “Se pensarmos que um tema ambiental se tornou central no debate dos principais líderes do mundo, podemos ver algum avanço”, diz.
De fato, olhando-se de uma perspectiva histórica parece surpreendente que o Reino Unido, cuja alcunha nos anos 70 era “o homem sujo da Europa”, ocupe agora a posição de líder nas discussões globais sobre meio ambiente. Nos anos 80, o governo Thatcher era tão duro de se convencer sobre a influência intercontinental da chuva ácida, quanto o de Bush hoje sobre o problema das mudanças climáticas. Albert Weale conta, em seu livro The new politics of pollution (Manchester University Press), que nas conferências para solucionar o problema da chuva ácida a delegação britânica resistiu até o último momento à clausula que obrigou todas as usinas de energia (a maioria, na época, ainda movida a carvão) a instalarem filtros para conter as emissões de enxofre.
A socióloga Susan Owens, professora em Cambridge e membro da Comissão Real sobre Poluição Ambiental, recorda que também nos anos 80 houve um longo debate na União Européia quanto à descarga de efluentes químicos no Mar do Norte. A partir dali, a política ambiental britânica passou a adotar o princípio de precaução.
Hoje, o Reino Unido pode se gabar de ser um dos poucos países a terem alcançado a meta de redução de emissões de carbono imposta pelo Protocolo de Kyoto. Além disso, os trabalhistas adotaram uma meta voluntária de cortar 20% dos gases de efeito estufa até 2010 e estudam meios de cumprir uma redução de 60% até 2050. O porta-voz sobre mudanças climáticas do Departamento de Meio Ambiente britânico, Tony McDougal, diz que o Reino Unido lidera as políticas contra as mudanças climáticas desde 2001, quando criou seu mercado interno de emissões, considerado um precursor do mercado europeu, que entrou em funcionamento este ano.
Mas os louros da redução dos poluentes não são exclusividade do Partido Trabalhista. Pelo contrário, a meta de Kyoto – cortar as emissões em 12,5% em relação aos níveis de 1990 – só foi alcançada com a decisão dos conservadores nos anos 80 de fechar todas as minas de carvão e introduzir o gás natural como principal matriz energética. Além disso, a mudança de perfil das atividades econômicas no Reino Unido na década passada contribuiu: o país perdeu muitas indústrias enquanto o setor de serviços cresceu.
Para o professor de Política Ambiental da Universidade de Anglia Oriental, Andrew Jordan, o problema do governo Blair é a falta de coragem para tomar medidas que afetem o dia-a-dia (para não dizer o bolso) das pessoas. Ele lembra que, se por um lado a poluição causada pelas indústrias está relativamente sob controle, aquela proveniente do setor de transportes (carros e aviões) continua em ascensão. O Novo Trabalhismo de Blair, diz Jordan, é receptivo à questão ambiental, mas está mais preocupado em atender as demandas da sociedade britânica quanto ao crescimento econômico e benefícios sociais. “Em 1997 [ano da primeira campanha de Blair] muitas promessas ambientais foram feitas, os trabalhistas realmente pareciam mais verdes que os conservadores, mas o que vimos foi uma grande semelhança na maneira como lidam com temas econômicos”, critica Jordan.
Já Albert Weale, autor de um estudo sobre a política ambiental britânica nos anos 80 e hoje professor de Ciências Políticas na Universidade Essex, observa que Blair cometeu um erro de estratégia no arranjo institucional de seu governo. Em 2001, os trabalhistas reorganizaram o seu Departamento de Meio Ambiente e a ele acoplaram todas as questões referentes à agricultura, criando assim o Departamento de Meio Ambiente, Segurança Alimentar e Assuntos Rurais (Defra, na sigla em inglês). “As questões ambientais deveriam estar sendo tratadas junto com transporte e energia. Agricultura é uma visão ultrapassada para nossas necessidades”, analisa.
A Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CDS), um órgão consultivo independente no governo, apontou em seu último balanço sobre sustentabilidade no Reino Unido que o governo Blair perdeu a oportunidade de criar instrumentos econômicos que mexeriam exatamente no comportamento dos setores de transporte e energia. Diferentemente do ocorrido em países como Alemanha e Holanda, os combustíveis e automóveis não receberam nenhuma taxa-ecológica no Reino Unido. Atualmente, o país tem as estradas mais congestionadas de toda a Europa e 50% da energia consumida é residencial. Por isso, a CDS tem expressado ceticismo sobre as metas futuras para a redução de emissões. Não se vê planos concretos, pondera o relatório.
Em um artigo no “The Observer”, o chefe da CDS, Jonathon Porritt, criticou a evidente contradição entre a liderança internacional de Blair no debate sobre mudanças climáticas e sua política interna. “O primeiro-ministro tem que enfrentar um problema em seu próprio quintal. E isso ele fará passando mais tempo com Alistair Darling [ministra de meio ambiente] do que com George Bush”.
Isso significa então que toda a urgência pedida por Blair no G-8 não passa de retórica vazia?
Não, garantem até mesmo os críticos do premier. “Eu acho que Blair realmente acredita nas coisas que fala e se compromete com elas. O único problema é que sua capacidade analítica para agir não é das melhores, como vimos no episódio do Iraque”, pontua Weale. Russell Marsh, da Green Alliance, dá mais crédito ao líder trabalhista: “Ele quer ser lembrado como o político que resolveu o problema do aquecimento global”. O primeiro-ministro é hoje quem mais demonstra interesse na segunda fase do Protocolo de Kyoto (pós-2012) e já negocia a aproximação de Índia e China, dois países em desenvolvimento cujo consumo de energia fóssil cresce vertiginosamente.
No plano interno, o último balanço da CDS motivou a elaboração de uma nova estratégia de desenvolvimento sustentável, e mais recursos destinados às políticas ambientais.
Os desafios não são pequenos. Tanto Jordan quanto Weale atentam para o fato de que o entusiasmo de Blair pelos painéis solares e turbinas de vento não soa muito bem aos ouvidos dos tradicionais moradores do interior britânico, nem para os amantes das belas paisagens e da observação de pássaros. O fôlego das energias renováveis conhecidas não é tão grande quanto se esperava. Por isso é cada vez mais freqüente, embora receoso, o comentário de que a única opção viável para reformar o setor energético são novos investimentos em energia nuclear. Mas a Comissão Real sobre Poluição Ambiental, responsável pela meta de 60% de redução nas emissões de carbono até 2050, já deu seu parecer: até que se tenha uma solução viável para o lixo nuclear, novas usinas não devem ser projetadas.
A situação dos transportes é igualmente delicada. Tony Blair já afirmou que quer incluir o setor de aviação na próxima fase de Kyoto, algo que certamente vai afetar os preços irrisórios que hoje os britânicos pagam por suas passagens para as ensolaradas costas de Portugal, Espanha e Grécia. Mas permanece o silêncio sobre impostos nos combustíveis para carros e caminhões. Logo após assumirem seu primeiro mandato, os trabalhistas criaram uma “taxa verde” que iria aumentar em 6% ao ano o preço do diesel. Em 2000, um bloqueio de caminhoneiros e agricultores nas principais rodovias inglesas fez com que nunca mais Blair falasse sobre tal política.
As ONGs ambientais têm um importante papel nessa história. Elas se tornaram a principal forma de pressão em um país que, diferentemente dos seus parceiros continentais, tem um Partido Verde inexpressivo. “Nossa dúvida é como vamos trazer mais pessoas para o movimento ambiental”, diz Russell Marsh, da Green Alliance. Pesquisas de opinião, como a British Social Attitude, mostram que as questões ambientais vêm ocupando posições importantes no ranking de preocupações dos britânicos. Mas como transformar isso em ação? “As pessoas se dizem preocupadas com o meio ambiente, mas quando se pergunta como elas ajudam a agravar o aquecimento global, não sabem responder. Acho que precisamos de mais enchentes e tormentas no Reino Unido para despertar a consciência pública”, critica o acadêmico Andrew Jordan, referindo-se aos seguidos anos em que tempestades descomunais têm atingido a Áustria, a Alemanha e a França.
* Gustavo Faleiros e jornalista formado pela PUC -SP e cursa mestrado em Politica Ambiental no King’s College da Universidade de Londres.
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