Para um encontro que se dizia crucial para a sobrevivência do planeta, a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-11) teve em seu último dia, a sexta-feira (9/12), acontecimentos dignos de tal dramaticidade.
Delegados dos 189 países membros da Convenção do Clima – o fórum permanente da ONU que inclui até as nações que não ratificaram o Protocolo de Kyoto, como os Estados Unidos – vararam a madrugada gelada de Montreal negociando novos compromissos no combate ao aquecimento global e se aproximavam de um importante consenso. Mas em determinado momento a “vil superpotência” comandada pela dupla Bush-Cheney abandonou as negociações. Não estava disposta a assumir metas.
A retirada dos Estados Unidos fez o Palácio do Congresso, onde se realizava a conferência, amanhecer em polvorosa. Uma enorme quantidade de câmeras de TV, fotógrafos e jornalistas esperava a chegada da delegação americana. As missões do Canadá e Alemanha cancelaram suas coletivas de imprensa pois era inútil fazer um balanço da COP-11 sem saber se os americanos iriam chancelar os avanços obtidos nas negociações de poucas horas antes. A Convenção do Clima funciona apenas por consenso e bastaria a delegação americana levantar sua objeção para tudo ir por água abaixo.
“Vai ser uma pena se os americanos bloquearem”, dizia Luiz Alberto Figueiredo, chefe do Departamento do Meio Ambiente do Itamaraty, do lado de fora do plenário de ministros, esfregando os olhos de sono. Referia-se à decisão de que os países membros passariam a discutir no espaço da Convenção, e portanto fora do Protocolo de Kyoto, maneiras de apoiar nações em desenvolvimento a diminuírem suas emissões de gases que causam o efeito estufa.
A proposta, costurada principalmente pelo Brasil e seus pares do G-77 (grupo de economias emergentes), ainda é embrionária, mas permitiu que os países ricos aceitassem aprofundar suas metas para um novo período no Protocolo de Kyoto. Aprovou-se em Montreal que, a partir de maio do ano que vem, começam as discussões sobre o que vai acontecer depois de 2012, quando Kyoto expira.
No fim das contas, os Estados Unidos não arcaram com o ônus político de melar o trabalho de todos os outros. E a medida foi anunciada como chave do sucesso da COP-11.
Dois trilhos
“Brasil, México, África do Sul e China mostraram-se muito sensatos quanto à necessidade de assumir compromissos com o aquecimento global e permitiram a negociação caminhar”, observa Elliot Diringer, do Pew Center on Global Climate Change, importante centro de pesquisa sobre o clima. Ele argumenta que a abertura de um processo paralelo dentro da Convenção é essencial pois já se sabe que Kyoto, sozinho, não vai deter o aquecimento global.
A expressão “dois trilhos” foi recorrente nas propostas dos diplomatas brasileiros: a convivência de um caminho com metas definidas para os países desenvolvidos — o Protocolo de Kyoto — e outro com ações voluntárias das nações emergentes, acordado nesta Convenção.
Em sua passagem pela COP-11, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, defendeu esta segunda linha. Ela lembra que as ações dos países pobres fora do Protoclo de Kyoto estarão livres do sistema de créditos que carbono, que na verdade é apenas uma “compensação” para os países ricos continuarem poluindo. “Isso não será um vetor para a inércia dos países desenvolvidos”, afirmou.
Exatamente numa área cara à ministra Marina Silva, a proteção de florestas tropicais, o “trilho” das ações voluntárias conseguiu o maior avanço na COP-11. Como reportado pelo O Eco na semana passada, o Brasil, em parceria com Costa Rica e Papua Nova Guiné, aprovou na Convenção a criação de incentivos para a proteção de florestas nativas. O desmatamento de florestas é responsável por 25% das emissões mundiais. A partir de 2006, começará o debate sobre propostas de como países ricos poderão aportar recursos para a preservação de áreas florestais e espera-se que até 2008 o novo mecanismo já esteja em funcionamento.
Mas não foi pelos belos olhos do combate ao desmatamento que os países-membros chegaram a um consenso naquela longa madrugada do dia 9. No horizonte há um novo mercado em torno do combate ao aquecimento global. Ele tende a se localizar na China e na Índia, com a transferência de tecnologia e o investimento em energias renováveis. A intenção, explicou o ministro Figueiredo, do Itamaraty, é conseguir que países ricos passem a financiar programas de governo que tenham impacto positivo sobre o clima. Uma nova fase do Proálcool ou o programa do biodiesel também poderiam entrar nas negociações internacionais.
Essa vertente, ardorosamente defendida pelo Brasil em Montreal, gerou críticas de organizações não-governamentais. Dizia-se que o Brasil estava se alinhando com os EUA, cujas principais ações no combate ao clima são voluntárias, de transferência de tecnologia. Como o ainda insípido Acordo Ásia-Pacífico, entre os americanos e países como Austrália, Hong Kong e China.
Mas na véspera de acabar a reunião os ventos mudaram. Os Estados Unidos perceberam que as negociações paralelas poderiam fortalecer também a proposta de uma nova fase para o Protocolo de Kyoto. Por isso, abandonaram as negociações da Convenção. Para depois acatá-las meio a contragosto.
As ONGs comemoram o que consideram um caminho para envolver os Estados Unidos no combate ao aquecimento global. Philip Clapp, presidente da ONG National Environmental Trust, acredita que tão logo termine a administração Bush o governo americano poderá começar a agir na Convenção sem ter que negociar uma entrada em Kyoto. “Se estamos falando de um esforço global contra as mudanças climáticas, seria possível trazer os americanos desta maneira”, diz.
Kyoto não morreu
Não bastassem as tramas paralelas, muitos ajustes foram feitos para que a primeira fase de Kyoto funcione melhor. Regras para o mercado de carbono foram formalmente aprovadas e também as penalidades que serão aplicadas sobre os países que não cumprirem suas metas. “Kyoto está vivo e tinindo”, afirma Stavros Dimas, comissário de Meio Ambiente da União Européia.
Uma das grandes questões de Montreal, a viabilidade do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), ganhou novo alento. MDL é o chamado “crédito de carbono”, que permite aos países ricos investirem em nações emergentes a fim de compensar suas emissões domésticas. O comitê gestor do MDL garantiu que ao menos 500 projetos serão aprovados para o primeiro período de Kyoto (até 2012). Eles podem resultar em uma redução de 500 milhões de toneladas de carbono. “Eu estaria sendo injusto se dissesse que não melhorou. Estamos confiantes de que o MDL vai funcionar”, diz Andrei Marcu, o presidente da IETA (International Emissions Trading Association), que reúne diversas empresas envolvidas com o mercado de carbono.
Mas nem tudo são flores. Há quem ache que o novo mecanismo de investimento em países emergentes não seja economicamente atrativo. Um grande especialista brasileiro em mudanças climáticas, por exemplo, crê que pedir ajuda financeira aos países ricos é um projeto “natimorto”. Outro afirma “faltar uma perna” na proposta, e ela se chama “quem vai pagar”. Ele lembra que há anos a ajuda financeira internacional está estagnada em US$ 50 bilhões anuais, para não falar que os EUA a reduziram de 0,3% para 0,1% de seu PIB as doações.
Outro problema: serão necessárias grandes quantias para garantir a adaptação de países às perdas impostas pelas mudanças climáticas. Sabe-se, por exemplo, que a Europa precisou de US$ 4 bilhões para adaptar seu sistema de saúde a novas ondas de calor como as que vitimaram centenas de idosos em 2002. Mas a Europa é um continente rico. Como garantir recursos para os países pobres na Ásia e na África enfrentarem as transformações que vêm por aí?
O Banco Mundial estuda uma nova estratégia: em vez de ajuda financeira direta aos países ameaçados pelo aquecimento global, os ricos pagariam um seguro para cobrir eventuais perdas com desastres. Um projeto-piloto de US$ 100 milhões para agricultores de Mali já está sendo implantado. Mas Elliot Diringer, do Pew Center, avisa que a transferência desses recursos para os países pobres dependerá de seu compromisso em combater suas próprias emissões.
Neste sentido, diz Diringer, números de redução de desmatamento como os divulgados pelo Brasil em Montreal ajudam a mostrar o comprometimento dos países emergentes com a causa da mudança climática. Aliás, a adoção de metas por países em desenvolvimento, mesmo que voluntárias, deve se tornar um tema quente no debate sobre aquecimento global. O quê as economias em desenvolvimento se comprometerem daqui para a frente pode influenciar o tamanho das metas dos ricos na nova fase de Kyoto.
São os tais “dois trilhos”. Que, apesar de paralelos, pode ser que um dia se encontrem.
* Gustavo Faleiros é jornalista e mestre em Política Ambiental no King’s College da Universidade de Londres. Esteve em Montreal acompanhando a Convenção de Mudanças Climáticas.
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