Até parece mentira, mas a região metropolitana do Rio de Janeiro guarda uma das maiores e mais bem preservadas áreas de restinga fora de unidades de conservação em todo o estado. E há uma explicação bem simples pela proeza: o acesso à área é limitado porque ali é área militar. Para civil entrar, só por motivos de pesquisa ou alguma outra justificativa devidamente autorizada. Caso contrário, pra colocar os olhos sobre aquele lugar, só mesmo de avião. Se por um lado essas restrições foram responsáveis pela manutenção da natureza intacta, por outro dificultaram o desenvolvimento científico sobre a biodiversidade local. Nesta terça-feira, isso começou a mudar. Pela primeira vez foi lançado um livro sobre a restinga da Marambaia.
“História Natural da Marambaia”, editado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), traz artigos variados que contemplam assuntos relativos à fauna, flora, clima, arqueologia, geografia, entre outros temas, assinados por 23 pesquisadores. “Básico para quem quer começar a conhecer a restinga”, diz o ecólogo Luis Fernando Tavares de Menezes, um dos autores e organizadores do livro. Novidades não faltam, como o levantamento detalhado de 40 espécies de orquídeas, 615 tipos de plantas vasculares, sendo 41 ameaçadas de extinção, insetos do grupo das lavadeiras, com 17 espécies identificadas, além de um inventário minucioso de 16 tipos de morcegos.
Segundo avaliação da botânica Ariane Luna Peixoto, que também assina e organiza a publicação, uma das partes mais interessantes é o conjunto de nove mapas feitos a partir de dados coletados em campo e programas de georreferenciamento. “Juntamos dados tão variados como botânica e geologia para produzirmos mapas de diversas formas para mostrarmos as áreas de maior riqueza na Marambaia”, aponta.
Depois de um simpósio realizado em 2001 com pesquisadores e alunos da UFRRJ que há cerca de oito anos têm pesquisas na restinga de Marambaia, Menezes, Ariane e a ecóloga Dorothy Sue Dunn de Araújo, a terceira organizadora do livro, decidiram compilar estudos sobre a região para divulgá-los ao público em geral. O esforço valeu a pena, mas Ariane lembra que ainda há muito que fazer. “São muitos dados importantes, mas o livro não é completo”, admite. “Não temos textos sobre grandes mamíferos e outros invertebrados, sem falar nos anfíbios e em plantas como as leguminosas, que são fundamentais para a conservação”.
Beleza ímpar
Um dos aspectos que chamam mais atenção na restinga é a sua forma. Ela tem pouco mais de 40 quilômetros com dunas, mata atlântica, mangues, lagoas e morros de até 640 metros na sua extremidade sul, conhecida como Ilha da Marambaia. Ao longo da restinga, uma fina faixa de areia que separa o mar aberto da Baía de Sepetiba, algumas porções têm apenas 19 metros de largura.
É nessa região extremamente frágil que se concentra uma rica biodiversidade, com diversas espécies de plantas e animais ameaçados de extinção ou que não ocorrem em nenhum outro lugar do Rio de Janeiro. Esse é o caso do lagartinho-branco-da-praia (Liolaemus lutzae), da borboleta Paridis ascanius e da rã Leptodactylus marambaie.
Esse paraíso está em permanente mutação. Como alguns trechos da restinga da Marambaia são realmente muito estreitos, durante as marés altas a água do oceano costuma atravessar por completo o cordão de areia, juntando-se às da Baía de Sepetiba. O impacto das ondas provoca erosão na restinga e a transferência de sedimentos da parte central para suas extremidades. Para os pesquisadores, fica evidente a tendência de rompimento da faixa de areia e a conseqüente mudança na dinâmica das correntes dentro da baía com o passar do tempo, com prejuízos às frágeis áreas de manguezais em Sepetiba. É por isso que a manutenção de espécies vegetais sobre a areia pode ajudar a retardar o processo erosivo.
Por todos esses motivos, a presença de moradores ou visitantes, por mais que sejam poucos, ainda preocupa os pesquisadores. Especialmente porque na região da Ilha da Marambaia vivem comunidades quilombolas. Segundo a procuradora-geral da Fundação Cultural Palmares (FCP), Ana Maria Lima de Oliveira, as 156 famílias da Marambaia têm a posse de suas terras, mas a situação fundiária não está totalmente regularizada. “O Incra e a fundação aguardam a finalização do processo de regularização das áreas para que os quilombolas recebam titulação definitiva ou cessão de uso”. Por enquanto, a Marinha, que controla a região, dá apoio aos moradores como transporte e escolas, mas proíbe a construção de novas casas dentro da ilha. “É uma questão conflituosa e tememos porque não sabemos se essas pessoas vão poder vender suas casas no futuro para terceiros, o que poderia estimular a especulação imobiliária na Marambaia”, ressalta Menezes.
O ecólogo diz que existe uma clara preocupação dos militares em manter a área preservada, tanto que alguns exercícios pararam há anos de utilizar munição. No entanto, apesar da presença da Marinha, do Exército e da Aeronáutica impedindo a retirada ilegal de areia, a ocupação e a especulação imobiliária na Marambaia, as instalações militares causam algum impacto à área, ainda que pequeno, na avaliação de Menezes. “Temos que conciliar a presença dos militares com a criação de uma unidade de conservação no local. Esse deve ser o nosso próximo passo”, diz. “Não sabemos o que eles acham disso, mas entendemos que é uma necessidade”.
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