Reportagens

Resistência alada

Várias aves freqüentam as margens dos poluídos rios de São Paulo. Já estão habituadas ao ambiente. No Pinheiros, novas árvores multiplicaram os passarinhos.

Karina Miotto ·
21 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

Na margem da água fétida, ela anda lentamente. Caminha com olhar atento e minucioso, à procura de alimento. A garça-branca-grande chama atenção pelo tamanho, enquanto luta pela vida em pleno rio Pinheiros, em São Paulo, que de tão poluído nem oxigênio tem. Mas ela não está sozinha.

Gaviões, urubus, sanhaços, biguás, irerês e caracarás são visitantes habituais do rio. Há também moradores fixos, como a corruíra, o tico-tico, o joão-de-barro, o bem-te-vi, o beija-flor, o sabiá-laranjeira e a cambacica.

No rio Tietê, também na capital e também poluidíssimo, a maioria das espécies é visitante. “Elas aparecem de passagem porque não têm muito onde pousar”, explica o professor Luiz Fernando de A. Figueiredo, primeiro secretário do Centro de Estudos Ornitológicos (CEO). Em suas margens, já foram vistos urubu, caracará, gavião-peneira e a garça-branca-grande.

Como podem existir aves à beira de rios sem água potável, cercados por rodovias marginais infestadas de barulho e poluição do ar? No Tietê, elas estão atrás de insetos e dejetos levados ou jogados no rio, como restos de animais mortos. No Pinheiros, encontram mais atrativos – e por isso aparecem em maior quantidade. Para entender o porquê, é preciso voltar no tempo, até dezembro de 1999. Esta foi a data da inauguração do Projeto Pomar, resultado de uma parceria entre a Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo e 17 grandes empresas, como Natura, Credicard, Microsoft, Volvo e Johnson&Johnson.

Frutas e ninhos

O Projeto Pomar plantou 400 mil mudas de 230 tipos de vegetais, entre gramíneas, arbustos e árvores (muitas frutíferas) de pequeno a médio porte ao longo de 22 km de rio (16 na margem direita e 6 na esquerda). Seis anos se passaram, período suficiente para o crescimento de muitas dessas mudas. De acordo com Alexandre Soares, biólogo do projeto, “antes do Pomar, observávamos cerca de 20 espécies perto do rio. Depois dele, já calculamos ter visto mais de 60”.

Na região que abrange o Pomar, não falta fruta para atrair a passarada – pitanga, araçá e goiaba são alguns exemplos. No momento, o projeto se encontra em fase de manutenção. Se outra parceria for fechada, aproximadamente 1,2 km a mais do rio Pinheiros vai ganhar uma nova cara. E, de quebra, novos visitantes e moradores. A receita é simples e garantida: árvores oferecem alimento, servem de refúgio e propiciam locais para as aves fazerem ninhos.
Enquanto o Pinheiros recebe diversas espécies, o Tietê só vai se tornar mais interessante em alguns anos, quando estiverem crescidas as mudas plantadas desde setembro, como parte de um projeto de paisagismo que integra a ampliação da calha do rio. O projeto, que termina este mês, prevê o plantio de cerca de 3 milhões de mudas de árvores, arbustos, flores e vedélias ao longo de 50 km do rio, somando as duas margens.

Outras duas razões explicam o aparecimento de aves nestes rios: a primeira é que ambos ficam próximos a áreas arborizadas da cidade. Perto do Pinheiros estão o Parque Burle Marx, a Cidade Universitária da USP, o Instituo Butantã e as represas Billings e Guarapiranga. Perto do Tietê, os parques ecológicos do Tietê e do Piqueri. As aves transitam entre céu e terra, têm liberdade de voar e por isso nada impede que saiam de um ponto arborizado para outro lugar, em busca de alimento.

A segunda razão é que essas espécies são resistentes a ambientes alterados. Como afirma o professor Luís Fábio Silveira, ornitólogo do departamento de Zoologia e do Museu de Zoologia da USP, “as aves do Tietê e do Pinheiros se adaptaram bem à confusão de São Paulo”. Mas será que elas são saudáveis?

Intoxicação

Estudos mostram que as águas do Pinheiros e do Tietê recebem esgoto doméstico e substâncias químicas, entre elas metais como cromo, níquel, zinco e mercúrio. De acordo com Nelson Menegon Júnior, técnico da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), toda a extensão do rio Pinheiros e o trecho do Tietê que fica dentro da região metropolitana de São Paulo fazem parte do que se costuma definir por “classe 4”, nível mais alto de concentração de poluentes. “Os rios que estão na classe 4 se encontram nas piores condições sanitárias e biológicas”, explica.

Os efeitos tóxicos de produtos químicos podem até matar as aves. Nos Estados Unidos, o falcão peregrino entrou em processo de extinção durante a década de 70 em conseqüência da utilização do pesticida DDT em larga escala. A criação em cativeiro ajudou a salvar o falcão, que também foi beneficiado pela proibição da substância no país pouco tempo depois.

No caso dos dois rios paulistanos ainda não existe nenhum estudo que responda a três questões: se as aves bebem daquela água, se são ou não prejudicadas e, se forem, até que ponto estão intoxicadas. Sem muitas informações científicas sobre isso, os especialistas apostam no instinto e acreditam que as aves passam longe do líquido contaminado. “Visivelmente, o bicho percebe o aspecto daquilo e já sente que a água não é boa”, afirma o professor Luís Fábio Silveira.

Além disso, as espécies que habitam as marginais são exatamente aquelas que se viram bem em locais modificados pelo homem. “Por serem mais tolerantes a ambientes diversos, não são tão afetadas pela poluição e pelas alterações do meio”. Isso explica o fato de levarem uma vida aparentemente normal, sem mudança de comportamento. “A quantidade de pássaros não diminuiu e este é um indicador de que estão bem adaptados”, afirma.

Luiz Fernando de A. Figueiredo, do CEO, concorda com Silveira. “Não existe relato de mortandade, a gente não vê isso acontecer. O rio não é o único lugar que tem água naquele espaço. As aves podem matar a sede ou tomar banho em pequenas poças, em buracos de troncos. Além disso, elas também têm instinto de não ir a lugares muito fundos, preferem os pontos mais rasos. As aves conhecem o ambiente em que vivem”, defende.

Isso serve, inclusive, para a garça-branca-grande, que lentamente toca as patas na água para abocanhar algum inseto. Se ele estiver contaminado, ainda que ela não se alimente daquela água, pode acabar com as substâncias no organismo. É muito provável que seja prejudicada, mas não existe estudo científico que comprove isso. O único sinal positivo desta relação é que a população das garças naquela região não está diminuindo.

Preservação

Alimento e adaptação ao meio não são os únicos fatores que farão com que essas espécies continuem a habitar ou visitar as margens dos rios. Conscientização ambiental da população também é fundamental. “A sociedade também tem que fazer a sua parte e assumir a sua parcela de responsabilidade”, diz Pedro F. Develey, coordenador do programa de áreas prioritárias da BirdLife International e co-autor do “Guia de Campo – Aves da Grande São Paulo”, da Aves e Fotos Editora.

Se hoje a Cidade Universitária da USP tem cerca de 150 espécies de aves é porque, logo que começou a ser implantada, por volta da década de 50, uma campanha conseguiu recolher centenas de estilingues de seus freqüentadores.

* Karina Miotto é jornalista em São Paulo, colunista de meio ambiente da revista Ragga, de Belo Horizonte, e autora do blog Eco-Repórter-Eco

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