Reportagens

Rasgando a fantasia

Dois anos depois de criada, comissão da Câmara que analisa a promoção do Cerrado a patrimônio nacional não saiu da estaca zero. Os ruralistas não têm pressa.

Carolina Mourão ·
22 de março de 2006 · 18 anos atrás

Agora em março, completa dois anos de criação a Comissão da Câmara dos Deputados que analisa a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Cerrado. O saldo dos trabalhos? Zero.

A comissão foi criada em 2004 para calar a boca dos críticos diante da apatia dos parlamentares depois que um relatório mostrou que o Cerrado não resistiria por mais de 30 anos a este ritmo de devastação. No entanto, a PEC que propõe o reconhecimento do Cerrado como patrimônio nacional caiu nas mãos dos ruralistas. Resultado: a Comissão não realizou sequer uma reunião desde foi instalada. Até agora soma a impressionante marca de 280 reuniões canceladas ou adiadas por falta de quórum.

Faltam apenas cinco sessões regimentais para acabar o prazo de entrega do relatório. Mas, como não houve discussão, o mais provável é que a Comissão seja reinstaurada para voltar a fingir que trabalha.

Em agosto do ano passado, ao ser questionado sobre a sucessão de adiamentos e cancelamentos de reuniões, o presidente da Comissão, Ricarte de Freitas (PTB), deputado ruralista mato-grossense, disse que a composição seria trocada caso a situação permanecesse daquele jeito. “De lá pra cá, nada aconteceu”, atesta José Maria, funcionário da Casa encarregado da parte administrativa da Comissão.

Até então, excluindo as 40 sessões iniciais, 220 encontros corridos haviam sido ignorados pelos deputados. Continuando o cálculo, em 30 de setembro de 2005 mais 20 sessões sem quórum foram adiadas até 16 de novembro. No dia seguinte, estourado mais este prazo, Ricarte de Freitas entrou com novo pedido de adiamento de mais 20 sessões, até 1° de março de 2006. Acostumado a abusar da prerrogativa dos adiamentos, o deputado rasgou o Regimento Interno e resolveu pedir de uma só vez, em 2 de março, o adiamento de mais 40 sessões. “Foi sugestão do responsável, o Zé Maria, da Comissão. Se não é regimental, a culpa é dele”, respondeu o gabinete de Ricarte. “Não é regimental, mas os deputados estavam pressionando e reclamando que adiar de 20 em 20 era cansativo. É uma situação fora do comum”, alega José Maria.

Cadê o PV?

Depois de tomar conhecimento do caso por meio de O Eco, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) enviou em 30 de novembro de 2005 o requerimento 3475/2005 à Presidência da Câmara pedindo que a votação fosse levada diretamente ao plenário, sem a necessária aprovação da comissão, dadas as inúmeras perdas de prazo para a votação da PEC. Existe uma norma da Câmara que permite isso. “O caso está agora no gabinete do presidente. Só falta agora ele conversar com algumas lideranças para que a PEC seja colocada na pauta”, informa a assessoria de Gabeira. O deputado promete: “Vou falar esta semana com as lideranças, combinar com o presidente para que essa história seja resolvida com urgência no plenário”.

Nem adianta se dar ao trabalho. Clarisse Rocha, do gabinete da Presidência, diz que consultou Aldo Rebelo (PCdoB-SP) sobre a possibilidade. “Ele não vai usar desta prerrogativa. Mesmo que o Regimento Interno permita isso, ele não quer retirar a autoridade de uma comissão para trazer essa votação ao plenário. É complicado porque fica parecendo que o presidente não é um democrata”, comentou. Para Aldo Rebelo, o assunto deve continuar na comissão. “O Partido Verde é que deve buscar reforços e colocar alguém lá dentro”, afirma o presidente da Câmara.

De fato, não é fácil entender por que o único partido dito ambientalista do país não integra a comissão. “Me estranha muito o PV não ter manifestado a intenção de participar. Ainda há duas vagas disponíveis”, diz a assessora de Aldo Rebelo. Gabeira explica: “O PV tem poucos representantes. Não foi a ausência do PV que fez a coisa desandar. Mesmo ocupando essas duas vagas vamos lutar contra a maioria. O ideal mesmo é levar a discussão para o plenário”, insiste, garantindo, no entanto, que vai pleitear pelas duas vagas.

Enquanto Gabeira busca uma brecha para mexer a massa, Débora, assessora do gabinete de Neyde Aparecida (PT-GO), relatora do PEC, escancara a ferida: “A comissão realmente não andou, amarrou mesmo”. Com o relatório final pronto nas mãos, a deputada não quis adiantar nada. “Não dá para dizer que é oficial porque não há a opinião da Comissão. É mais um documento prévio. Eu estou pegando um avião e preciso desligar agora o celular, tá? Depois a gente se fala”, foi-se Neyde. Poucos minutos antes, ela deixara escapar que ainda estava se levantando da cama. Assunto incômodo, compreende-se.

Pressionada, a assessoria do deputado Ricarte de Freitas informou que a Secretaria Geral da Mesa encaminhou nesta terça-feira ofício para que a Presidência tome conhecimento do problema de quórum na comissão. A partir daí, caberia ao presidente da Casa tomar a iniciativa de indicar nomes para substituir os componentes da comissão.

João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, disse que está agendada para o dia 4 de abril a instalação do Conselho Nacional do Cerrado (Conacer) na Câmara, o que deve forçar o andamento da PEC 115. “O Conacer é a nossa resposta. Já estamos trabalhando para colocar na pauta de votação a PEC o mais rápido possível”.

Devidamente chacoalhados, espera-se que os deputados agora peguem no tranco. Afinal, da política à prática será outro longo caminho.

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