Reportagens

Admirável mundo novo

Parque com a maior concentração de cavernas do país recebe poucos visitantes. Mas quem vai pode explorar o misterioso ambiente subterrâneo e ver Mata Atlântica exuberante.

Andreia Fanzeres ·
25 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

Joilson Santana Barbosa, de 24 anos, caminhava pelo quintal da sua casa, em 2001, quando viu um buraquinho e quis saber o que tinha lá. Descobriu uma caverna, com até agora mais de 1.600 metros mapeados, registrados e freqüentados por pesquisadores que estudam cada pedacinho dela. Como ele, volta e meia outros moradores da região de Iporanga e Apiaí, a 330 quilômetros ao sul de São Paulo, esbarram em formações subterrâneas com alto valor para a ciência. Só Joaquim Justino dos Santos, o J.J, morador que conduziu os primeiros grupos de especialistas na região nos anos 60, já descobriu 27 cavernas em suas andanças. “Isso aqui é um queijo suíço”, resume o topógrafo Antônio Modesto Pereira, que administra a unidade de conservação que tem nada menos do que a maior concentração de cavernas do Brasil, o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar).

Criado em 1958, o parque tem atualmente mais de 250 grutas registradas no Cadastro Nacional de Cavernas, mantido pela Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE). Segundo Modesto, 30 delas estão abertas à visitação, sendo que 10 recebem turistas com intensidade. E, até hoje, novas são descobertas, como se o potencial da região não tivesse mesmo fim. As cavernas não são apenas numerosas no Petar. São belas e raras. Apresentam uma variedade imensa de tamanhos, níveis de dificuldade e ornamentação devido às rochas calcárias que as formam. Muitas são atravessadas por rios subterrâneos, inclusive com cachoeiras! Não é à toa que o parque virou símbolo do que há no país de mais ousado na área de espeleologia, ciência que estuda e explora tais ambientes, atraindo pessoas que literalmente se apaixonaram por lugares tão inóspitos.

“São escuros, frios, têm morcego”, diz Joilson, monitor ambiental do parque há seis anos, ao descrever a maneira como a maioria dos nativos enxerga as grutas. “Morador daqui não sabe responder como são as cavernas”. Essa resistência é puro mito, porque uma vez dentro das grutas do Petar um mundo à parte se descortina diante dos olhos. Mesmo para quem já entrou em cavernas, depois do Petar as referências sobre a riqueza de ambientes subterrâneos transformam-se radicalmente. E olha que, no meu caso, conheci apenas as partes abertas aos turistas de, ainda assim, poucas cavernas. “Isso é apenas a ponta do iceberg”, atesta Beroaldo Lyra, o Berô, pernambucano que trocou as belezas de seu estado pelas cavernas do Alto Ribeira desde 1987, quando passou a freqüentar mais a região e a realizar trabalhos de mapeamento e exploração de diversas grutas. “É um mundo fantástico”.

Outro planeta

Para começar, a história de que faz frio dentro das cavernas não é de todo verdade. No dia 20 de agosto, frio mesmo fazia do lado de fora. Dentro, a temperatura era constante, por volta de 18 graus. O importante é ter sempre um agasalho seco para quando sair do subterrâneo. A umidade do ar lá é altíssima, beira os 100%. Por isso, durante toda permanência na caverna sai aquela fumacinha da boca e do corpo. Além do mais, tudo que se pise ou toque é molhado. Mas as pedras não escorregam, basta ter cuidado.

O que não tem jeito é a escuridão. Passam-se duas, cinco, doze horas no breu total. Por isso, lanternas boas e à prova d’água são equipamento fundamental de segurança. Os guias e pesquisadores usam geralmente carbureteiras, que iluminam bem mais do que as lanternas à bateria. Mas não dispensam equipamento reserva. Se acaba a luz, é praticamente impossível dar qualquer passo, ainda mais porque os terrenos quase sempre são bastante acidentados. Também em razão disso o uso de capacetes é obrigatório e, como as lanternas, são alugadas ou fornecidas pelas próprias pousadas.

O universo totalmente inesperado e impressionante das cavernas do Petar existe graças à abundância de espeleotemas (esculturas feitas por depósitos de minerais) que ornamentam as cavidades. E às próprias dimensões das cavernas que, ao menos as partes abertas ao público, são gigantescas. Tetos de 30, 50 metros de altura, estalactites e estalagmites (depósitos de calcário que crescem do teto para o chão e do chão para o teto, respectivamente), colunas, cortinas e formações até curiosas como a cabeça de um cavalo (foto), a pata de um elefante, além de imagens de um ratinho na parede, o formato de uma bailarina e de um seio num ponto da caverna apelidado de Fafá de Belém. Todas essas e muitas outras formações são encontradas com facilidade na Caverna de Santana, a mais procurada pelos turistas. Trata-se da segunda maior caverna do estado de São Paulo e a 24ª do país, com 5.040 metros mapeados, segundo listagem da Rede EspeleoBrasil.

Santana é como um parque de diversões. Tem salões de tudo quanto é tipo de dificuldade e beleza. Aliás, um dos mais bonitos e inacessíveis foi batizado de “Taqueopa”, numa referência à expressão que primeiro veio à cabeça de seus descobridores: pu “taquelpa” riu. Os turistas, no entanto, podem apenas circular por 800 metros adentro, sempre acompanhados de monitores ambientais locais habilitados pelo parque.

Para marinheiros de primeira viagem é mais do que o suficiente. Um passeio pela caverna demora cerca de 1h30, sem pressa. E sem necessariamente ter que se arrastar, se molhar ou sentir claustrofobia – um dos maiores receios de quem nunca entrou em cavernas. Na Santana, a menos que o visitante queira experimentar se meter em condutos estreitos (mas sempre com a orientação do guia), ele sentirá a sensação de aperto, literalmente.

Em grupos bem pequenos a experiência sensorial é ainda melhor. Desligue as lanternas, sente-se, faça silêncio. Dependendo do ponto dentro da caverna, o que se escuta é o gotejamento, que há milhares de anos forma tudo que encanta lá dentro. Até para as pessoas que têm boas noções de localização, perde-se a orientação nas grutas como num passe de mágica. É difícil saber se estamos retornando para o ponto de entrada, se é dia ou noite. Em áreas mais apertadas, a respiração sofre também. E, por vezes, o odor sinaliza alta concentração de gás carbônico, o que assusta um pouco.

A tentativa de descobrir o caminho certo, sob as vistas dos guias, coloca o visitante na condição de explorador, e o faz sentir exatamente como é complicado escolher entre uma passagem e outra. Algumas delas são verdadeiros labirintos e tomar a decisão de entrar em algumas requer concentração, avaliação e coragem.

É um mundo completamente à parte, com formações brilhantes, coloridas, harmônicas, que dependem do tipo de rocha onde se insere a gruta, da velocidade do gotejamento, do ritmo de cristalização, do próprio passado da caverna. Justamente em virtude dessas variáveis, é difícil saber a idade de determinada escultura ou mesmo da caverna. Uns dizem que são necessários entre 30 a 100 anos para que um centímetro de depósito, feito gota a gota, se forme. Outros acreditam que dentro desse período cresça apenas um milímetro. Seja como for, quando se tem esse dado na cabeça e uma coluna de calcário de mais de 40 metros diante dos olhos, você sente o quão insignificante é o seu tempo de vida na escala geológica.

Mata exuberante

Sair das cavernas do Petar também é uma experiência única. O visitante deixa para trás um ambiente onde a vida é rara, pois são pouquíssimas as espécies que sobrevivem na ausência total de luz – como alguns aracnídeos, peixes, e, claro, os morcegos -, e entra em uma das áreas de Mata Atlântica mais preservadas do país, o vale do rio Ribeira de Iguape, único da região que ainda não foi represado. Ali, a floresta é protegida pelos 36 mil hectares do Petar, contíguos ou bem próximos aos parques estaduais de Jacupiranga, Intervales, Carlos Botelho e Ilha Comprida. São os últimos remanescentes da floresta atlântica do estado de São Paulo.

Depois de horas dentro das cavernas, parece que as folhas são mais verdes no Petar. Há figueiras centenárias próximas às trilhas que dão acesso às cachoeiras e grutas. Só nos primeiros metros de caminhada saindo da Caverna do Couto, por exemplo, contei pelo menos seis tipos diferentes de cogumelos no chão. Sem qualquer esforço de lentes, vi duas espécies de pica-paus, arapongas que cantavam por toda parte, tiês-sangue, saíras e tantas outras aves que mal soube identificar. Isso sem falar na abundância de borboletas e demais insetos que cercavam as árvores carregadas de flores, além da flagrante presença de liquens róseos nos caules de algumas árvores, bioindicadores da qualidade do ar.

O potencial turístico do Petar é bem aproveitado devido à organização do parque em núcleos para visitação. São quatro: Santana, Ouro Grosso, Caboclos e Casa de Pedra, cada um com uma portaria e um conjunto de cavernas abertas ao público. Algumas das atrações guardam recordes, como a Casa de Pedra, que tem a maior boca de caverna do mundo, com 216 metros, ou o Abismo Juvenal, o mais profundo em rocha calcária do Brasil, com 241 metros, nos limites do parque – esse sim, só explorado por quem entende muito de cavernas.

Mas, por incrível que pareça, o parque pode incrementar ainda mais suas atrações. Há muitas trilhas, cachoeiras e rios na região. A maioria de água cristalina, como o Betari, que corta o parque (foto). Algumas pousadas organizam passeios de bóia-cross em suas corredeiras. Há diversas piscinas naturais, vistas das trilhas que dão acesso às cavernas, mas poucos investimentos para aproveitá-las também como parte do roteiro turístico do parque. Até 2007 deve ser concluído um estudo de capacidade de carga (ou visitação) para a Caverna Santana e a revisão do plano de manejo do parque.

Visitação

Apesar de tantos atrativos, nos últimos três anos a visitação caiu muito. O administrador do parque e alguns guias locais acreditam que devido à notícia de acidentes fatais nas cavernas as pessoas talvez tenham se desinteressado. Mas quem precisa freqüentar o parque mais para pesquisar do que para passear, tem outra tese. “A obrigatoriedade da entrada somente com guias desagradou alguns espeleólogos”, sugere Berô. A decisão é mesmo polêmica, porque alguns pesquisadores não querem submeter sua entrada nas cavernas à companhia dos monitores, pois frequentemente conhecem mais do que os guias.

Entretanto, o agrimensor e monitor ambiental Francisco de Assis Ferrenha Junior, o Chico, que participou dos trabalhos de demarcação do Petar, em 1986, argumenta a favor da proibição. “Há algum tempo um professor foi pego com a mochila cheia de estalactites”, conta. Ainda segundo ele, há relatos de outros problemas causados pela visitação desordenada, como a construção de fogueiras, o pernoite nas grutas, pessoas perdidas e os acidentes. Hoje, a administração do parque está preocupada com o uso das carbureteiras nas cavernas. Estuda-se até a proibição dessa forma de iluminação. Nas mais visitadas a fuligem que vem da chama tem se acumulado nos espeleotemas.

Mas a falta de infra-estrutura no entorno também contribui. Jurandir Aguiar dos Santos é exceção. Monitor que consegue conjugar conhecimento nativo da natureza e da cultura local com avançadas técnicas para exploração de cavernas, ele é um dos poucos que se mantêm apenas do turismo. Outros, como o próprio Joilson, que descobriu a gruta no quintal de casa, precisam diversificar a fonte de renda com bicos e artesanato com madeira. No bairro da Serra, mais próximo da entrada do núcleo Santana, não há restaurantes nem vida noturna, o que torna a permanência dos visitantes bem mais breve e não permite que, de fato, a população do entorno usufrua financeiramente dos bônus da conservação.

Ameaças

Os desafios de gestão vêm de dentro e de fora. Com 41 funcionários, Modesto diz que precisa de mais gente para tomar conta do Petar. Os preciosos recursos naturais mantêm palmiteiros e caçadores na região. Até o fim do ano, o administrador termina a regularização fundiária dos 15% restantes do parque, que ainda é moradia para 20 famílias. As serrarias e mineradores que atuavam dentro do Petar foram fechadas, mas no entorno a atividade continua. Além disso, uma fábrica de cimento do grupo Camargo Correa tira calcário a 10 quilômetros do parque há 25 anos, em Apiaí. A presença de sem terras também é um problema. Há dois anos e meio, 150 famílias estão acampadas numa fazenda de 7.800 hectares que tem importantes nascentes de rios que cruzam o Petar. O local foi destinado à reforma agrária, mas está na zona de amortecimento.

O parque está à espera de visitantes que, como em poucos lugares do país, podem descobrir o que significa entrar em ambientes ainda em excelente estado de conservação e pouco conhecidos. Ainda mais em plena região Sudeste. Basta se deixar surpreender.

Mais informações sobre cavernas e o Petar podem ser obtidas nos sites da Sociedade Brasileira de Espeleologia, Rede EspeleoBrasil e Caverna Petar.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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