Reportagens

A Amazônia do alto

Há quem conte histórias pavorosas sobre quedas de avião na Amazônia, mas sobrevoar a maior floresta tropical do mundo não é mais tão arriscado. Graças a novas tecnologias e desmates.

Eric Macedo ·
8 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

Apesar de casos como o do Boeing 1907, a Amazônia deixou de ser o “Triângulo das Bermudas” tupiniquim que era até meados da década passada. Antes de inovações tecnológicas como o GPS e o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), a floresta parecia sempre disposta a esconder sob as copas das árvores destroços de aviões dos mais diferentes tipos. Hoje, a navegação moderna evita que os pequenos aviões, que formam o grosso do fluxo aéreo por ali, caiam tão assiduamente. E o controle por radar também não os deixa sumir com a freqüência que reza a lenda. Mas o mito continua, perpetuado nas histórias contadas por quem se acostumou a ver a floresta de cima.

É o caso de José Altino Machado, 64 anos, um dos fundadores da União Sindical de Garimpeiros da Amazônia Legal. Garimpeiro e aviador – comprou seus próprios aviões para escoar a produção e chegar até ela –, Altino passou 26 anos trabalhando na região, numa época em que só o garimpo contava com 880 aeronaves para transporte de minério. Hoje, elas não chegam a 300.

“A aviação é um elemento sem o qual a Amazônia não respira”, afirma, se referindo às grandes extensões de floresta pelas quais só se viaja por cima ou derrubando mata para construir estradas. Segundo ele, até meados da década de 90 havia 68 pilotos desaparecidos na floresta amazônica. O ex-garimpeiro conta a história de um conhecido, sobrevivente de uma queda na mata, que percorreu 60 dias a pé rio abaixo. Em outro caso, um piloto que levava um médico na carona quebrou as duas pernas num acidente. O acompanhante não se feriu e deixou o piloto o mais confortável possível antes de sair em busca de ajuda. Mas quando voltou duas semanas depois encontrou o companheiro morto, vítima de um ataque de onças.

Altino lembra ainda de outro piloto cujo motor entrou em pane em altitude muito elevada, acima das nuvens. Num ato que comoveu todos os aviadores que circulavam com os rádios ligados na data, ele ditou seu testamento aos que o ouviam. O avião demorou quinze minutos para atingir o solo, na serra do Cachimbo, mesmo lugar em que caiu o avião da Gol. “Pelo resto do dia, houve silêncio total no rádio de todos os aviões da região”, conta. O corpo do homem só foi encontrado dois anos depois por caçadores que excursionavam na área.

Isso foi em 1988, quando ainda não existia o Sivam, que monitora por radar toda a região. O acompanhamento da área pelo sistema coordenado pela Força Aérea Brasileira faz com que seja muito mais difícil que aviões caiam e permaneçam perdidos no meio da floresta. O que não quer dizer que não haja fatalidades em acidentes aéreos: de 2001 a 2005, foram 123 vítimas em 136 acidentes nos estados da Amazônia Legal, quase a metade do número total de mortos no Brasil no mesmo período, 261. Ainda assim, nenhum acidente tão grave como o que matou 157 pessoas em 29 de setembro deste ano. Os dados são do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes da Aeronáutica.

Segundo dados do Sivam, uma média de 1,4 mil aeronaves sobrevoam a Amazônia diariamente, incluindo aquelas que estão apenas de passagem, que não posaram ou decolaram na região. Delas, 85% são de pequeno e médio porte (carregam até cerca de 50 passageiros, no máximo), como o jato Legacy que colidiu com o avião da Gol. E apenas 15% são monstros capazes de carregar mais de uma centena de passageiros.

Devastação à vista

Apesar do movimento nos céus amazônicos, os garimpos não são mais a razão principal para se sobrevoar a floresta.“Hoje, não chega a 10% do que era”, conta Altino. O preço do combustível, por exemplo, se tornou proibitivo – a gasolina chega a custar quatro reais; segundo ele, um preço absurdo. Os pilotos também passaram a ser convidados a trabalharem para o tráfico de drogas, que paga quantias de encher os olhos por vôos que carreguem a mercadoria ilegal.

O ex-garimpeiro acha que a diminuição nesse número de aviões estimula o desmatamento para construção de estradas. Ele diz que atualmente sobrevoa muitas regiões que nas décadas de 1970 e 1980 eram cobertas de verde. “Alguns percursos, como o do Xingu para Tapajós, que era um dos mais inóspitos, hoje é feito quase que todo por cima de fazendas”, diz. O próprio Boeing 1907 caiu a 30 quilômetros de uma propriedade.

O aumento da presença humana na floresta pode ser um dos fatores que impede que os aviões desapareceram na mata densa. Ou, pelo menos, sejam encontrados mais facilmente. Segundo dados do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), 19,25% da Amazônia correspondem a uma área em que a pressão humana já está consolidada. Além disso, 27,34% são áreas com pressão humana incipiente, ou seja, lugares em que há gente mais ou menos em intervalos de 20 quilômetros. A região no Mato Grosso em que caiu o avião da Gol é desse último tipo. Para Paulo Barreto, um dos autores do estudo que deu origem a esses números, a localização ou o resgate de um avião será mais fácil quando ele cair em regiões como essas – que, somadas, já chegam a quase metade da floresta.

Experiência

Os pilotos que atuavam no garimpo, diz Altino, eram muito experientes, o suficiente para pousarem e decolarem de pistas extremamente precárias, recortadas na mata. O piloto do Greenpeace, Fernando Bezerra, cuja experiência de vôo na Amazônia também foi colhida trabalhando para garimpeiros, contou à reportagem de O Eco, no ano passado, que é mais difícil encontrar o rumo certo quando tudo em volta é puro verde. “Para ir de um garimpo ao outro, esperava-se a chegada de outro piloto que tivesse estado onde você ia, para te dizer o rumo em que se devia colocar a proa do avião e o tempo que levava para chegar até lá”, revelou. “Aí você fazia os descontos do vento e rezava para achar a pista”.

Hoje, não é diferente voar na Amazônia ou em qualquer outro ponto do Brasil. No céu, as regras são as mesmas em todo lugar, principalmente quando se usa a mesma tecnologia. Segundo Carlos Ferreira, um dos diretores do Aeroclube de Manaus, a formação de pilotos por lá segue o mesmo programa do resto do país. O curso forma uma média de 40 pessoas por ano na parte teórica. Dessas, diz Ferreira, 80% a 90% estão interessadas em seguir carreira profissional como pilotos. Os demais são fazendeiros que querem pilotar seus próprios aviões.

Altino acredita que, por isso mesmo, a discussão sobre a responsabilidade do controle aéreo no choque entre o Boeing 1907 e o Legacy não faz sentido. “Em qualquer lugar do mundo, dois aviões em direções contrárias não podem estar na mesma altitude. A primeira regra que se aprende no aeroclube é que de Sul para Norte, a altitude é par, do Norte para o Sul, impar. Não importa o que manda o controle aéreo, eu nunca viajaria pela contramão”. Para Altino, tudo culpa da modernidade. “Depois que apareceu o GPS, os pilotos ficaram confiantes demais na tecnologia”, diz, saudoso, o aviador.

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