Reportagens

Futuro incerto

Furnas e Odebrecht garantem que impactos de usinas previstas para o rio Madeira (RO) são mínimos, mas Ibama, pesquisadores e ONGs temem mais um desastre ambiental na Amazônia.

Andreia Fanzeres ·
5 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás

Desastres ambientais causados por empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, como a construção das usinas de Balbina (AM) e Tucuruí (PA), deixam sempre ambientalistas com um pé atrás quando é novamente hora de discutir esse assunto. O momento é crucial para o governo federal, que pressiona pela construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, e também para os setores mais preocupados com a conservação daquela região, que não se convenceram das explicações dadas pelo consórcio proponente Furnas e Odebrecht sobre os riscos ambientais dos empreendimentos.

A principal bandeira dos empreendedores é a de terem elaborado um projeto com o que consideram mínimos impactos ambientais. “Se quiséssemos construir uma só barragem para gerar os 6.540 MW de Santo Antônio e Jirau, seria economicamente viável e até mais barato, mas com impactos ambientais bem maiores. Então, optamos por fazer duas”, explica Sergio Leão, diretor de segurança, saúde e meio ambiente da Odebrecht. Nesse caso, seria preciso inundar 150 mil hectares. Mas pelo plano atual, uma área total de 30 mil hectares ficará debaixo d’água, sendo 25 mil hectares de florestas.

A usina de Santo Antônio está projetada para ser construída sobre a Ilha do Presídio, a 10 quilômetros da cidade de Porto Velho. Para gerar 3.150 MW de energia, ela deverá ter um reservatório de 271,3 quilômetros quadrados. Na prática, 61% dessa área são a própria calha do rio Madeira. E, portanto, 39% da área do lago inundariam o que hoje está em terra firme. Jirau, por sua vez, planejada a 136 quilômetros da capital rondoniense, tem capacidade para gerar 3.300 MW de energia e demanda um reservatório de 258 quilômetros quadrados, sendo 47% dele formado pela calha do Madeira e 53% por áreas a serem inundadas. Os reservatórios são relativamente estreitos e por isso vão alagar proporcionalmente mais áreas de mata ciliar. Como explica Leão, se fossem lagos maiores, que inundassem mais terras, o que ficaria submerso são os pastos que predominam na paisagem e estão separados do rio exatamente pelas finas faixas de mata ciliar.

Apesar do sacrifício dessas matas preservadas, o dano da inundação é considerado baixo pelos empreendedores, que creditam o feito à instalação de 44 turbinas bulbo em cada usina – máquinas que utilizam a velocidade do rio para gerar energia enquanto a água passa pelos equipamentos. “Esses não são reservatórios em que a água chega e pára, como em Tucuruí, quando ela leva de 6 a 8 meses entre sua entrada e sua saída do reservatório. Em Santo Antônio e Jirau, vai demorar só de dois a três dias. A velocidade vai reduzir um pouco, mas o fluxo será normal”, diz Leão.

Sedimentação

Se água os empreendedores sabem que não vai faltar, alguns acadêmicos, estudantes e a própria equipe técnica de licenciamento ambiental do Ibama colocam em dúvida o comportamento desse rio, que carrega nada menos do que metade dos sedimentos de toda bacia amazônica. “Uma das maiores preocupações do Ibama é entender o que vai acontecer com os sedimentos do Madeira, com a dinâmica do rio e com os próprios reservatórios depois dos barramentos”, diz Luiz Felippe Kunz Junior, diretor de licenciamento ambiental do órgão.

Pelos cálculos da equipe da Odebrecht, o Madeira transporta de cinco a dez milhões de toneladas de sedimentos por dia. Apesar disso, eles garantem que as turbinas trabalharão normalmente. “Já fizemos testes. A maior parte do sedimento é fino, é lama que se acumula nas margens, dá fertilidade às várzeas. Mas ela passa”, explica Leão. Segundo ele, as maiores quantidades de sedimento são transportadas quando o rio está na época de cheia. Nesses períodos, o excesso de água passará pelos vertedouros (canais por onde a água passa sem ser interceptada pelas turbinas). “As 44 máquinas trabalhando serão capazes de processar 22 dos 42 mil metros cúbicos por segundo de vazão do rio Madeira. O excedente sempre vai passar pelo vertedouro”, garante José Bonifácio Pinto Junior, diretor de contratos da Odebrecht.

Só que a passagem efetiva de todo esse material não acontece de uma hora para outra. De acordo com Leão, o reservatório vai reter de 15 a 20% dos sedimentos do rio no primeiro ano em que a barragem estiver construída. “Conforme forem passando os anos, essa porcentagem vai caindo, até que no 20º ano de funcionamento da usina a barragem retenha menos de 1% dos sedimentos do Madeira, alcançando um equilíbrio”. E também sua potência esperada.

Os peixes e as barragens

Pelo projeto, como a água vai fluir e as barragens não terão mais do que 15 metros de altura, em média, os empreendedores consideram que as mudanças no perfil do rio serão mínimas. Mas o Ibama questiona, por exemplo, o que pode acontecer com toneladas de mercúrio depositado no fundo do leito do Madeira, depois de praticamente uma década de garimpo intenso. Outra questão que o preocupa é o comportamento das diversas espécies de peixes que enfrentam as corredeiras na época da reprodução. “Ambos os reservatórios terão um sistema de transposição de peixes. Não é um tipo de escada, mas um canal que simula as condições naturais do rio, ou seja, as corredeiras”, esclarece Leão. Entretanto, ele admite que não se pode quantificar os peixes que efetivamente ultrapassarão as barragens. “O que nós podemos dizer é que eles devem subir. Se sobem as corredeiras, deverão subir pelos nossos canais porque o nível de dificuldade é o mesmo”.

Mas esta é uma questão ainda bastante controversa. Kunz reconhece que as conseqüências dessas barragens para as cerca de 450 espécies de peixes registradas no rio Madeira são um dos pontos cruciais para que o empreendimento obtenha licença ambiental do Ibama. Em entrevista para O Eco, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Phillip Fearnside, explicou que os grandes bagres que sobem o rio Madeira para se reproduzirem na cabeceira dos seus afluentes, no Peru e na Bolívia, vão ser bloqueados pelas barragens. Segundo ele, as passagens para peixes funcionam para espécies como salmão e carpas, mas não para as que habitam o Madeira. “Não é uma perda recuperável”.

Para Ana Euller, da WWF em Rio Branco, alguns riscos não mencionados pelos empreendedores merecem especial atenção. Ela questiona se há de fato estudos que detalhem as conseqüências das barragens para os peixes usinas acima, na Bolívia e no Peru. “É quase impossível garantir que não haverá riscos rio acima. Esse empreendimento explora os serviços ambientais de uma bacia trinacional. Provavelmente outros países também teriam direito aos royalties que Porto Velho vai receber”, reclama.

O aparente descaso nas conversações sobre as usinas do Madeira do governo brasileiro com o boliviano gerou faíscas diplomáticas que levaram o Itamaraty a agendar reuniões a porta fechadas com representantes do país vizinho a partir do mês de novembro. Mas os empreendedores descartam a possibilidade de haver alagamentos na Bolívia. Novamente, Fearnside discorda. Ele diz que os sedimentos vão se acumular ao ponto de formarem uma segunda barreira na entrada do lago de Jirau, aumentando a área submersa para dentro da Bolívia.

Polêmica hidrovia

Para Osvaldo Pittaluga, superintendente do Ibama em Rondônia, o maior problema da construção de usinas hidrelétricas no Madeira é a estabilização do rio para navegação – o que não acontece hoje à montante de Porto Velho graças a corredeiras como a de Santo Antônio e Teotônio. “Minha preocupação em relação à hidrovia é a consolidação da soja na Amazônia. Mas a hidrovia foi retirada do projeto depois de uma negociação entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério de Minas e Energia”, diz.

Como as linhas de transmissão entre Porto Velho e Cuiabá, a hidrovia no rio Madeira não participa do processo de licenciamento em questão porque seria necessário projetar mais duas barragens. “Se fizerem a terceira e a quarta barragem haverá um desastre no vale do rio Guaporé. Esse vale é uma das poucas áreas que estão intactas e são consideradas corredores ecológicos”, diz Pittaluga. Para Fearnside, a existência de eclusas em Santo Antônio e Jirau presume a construção de mais barragens. Mas Bonifácio, da Odebrecht, diz que não. Segundo ele, a construção de eclusas em hidrelétricas são exigências da engenharia e da própria Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Não há como fazer um projeto desse porte sem prever uma hidrovia. Se isso não constasse no projeto, iriam pedir que fosse incluído”, explica.

Impactos às áreas protegidas

Pelo projeto, nenhuma unidade de conservação federal ou terra indígena será diretamente afetada pelas usinas de Santo Antônio e Jirau. Com exceção da Área de Proteção Ambiental do rio Madeira, administrada pelo estado, que terá 15% das terras inundadas, as outras unidades de conservação estaduais terão parcelas de alagamento em seus limites inferiores a 5%. Leão diz que, pela lei, a compensação ambiental deve ser preferencialmente para as áreas afetadas. Só que o Ibama de Rondônia também está de olho nessa bolada.

Pittaluga fez as contas e, se 0,5% do valor do empreendimento forem destinados para compensação ambiental, Rondônia recebe cerca de 100 milhões de reais para tentar resolver seus inúmeros problemas ambientais. Como o dinheiro pode ser pago durante a construção das usinas – esperada para ter início em 2009 – ele aposta nessas cifras para elaborar planos de manejo e implantar as 12 unidades de conservação administradas pelo Ibama no estado. A palavra final sobre a aplicação dos recursos é da Câmara de Compensação Ambiental do Ibama, que ainda não se pronunciou.

Embora o órgão federal tenha considerado suficientes as análises contidas no estudo de impacto ambiental entregue pelos empreededores, o Ibama foi atacado por entidades como o Instituto Madeira Vivo e o Centro de Estudos da Cultura e do Meio Ambiente da Amazônia (RioTerra) por ter aceitado que o EIA-Rima não apresente soluções para problemas ambientais como perda e fuga de animais, concentração de cardumes à jusante da barragem, alteração na estrutura de comunidades de peixes, eliminação de barreiras naturais para os botos do Madeira, perda de área de desova de peixes, alteração da comunidade bentônica (organismos que vivem junto ao substrato), perda de locais de reprodução de tartarugas, jabutis e jacarés, aumento da população de plantas aquáticas, etc.

Kunz defendeu que, apesar das pressões, o Ibama tem feito avaliações isentas sobre os impactos do empreendimento, tanto que solicitou em fevereiro e em julho complementações ao estudo de impacto ambiental. “Nós temos estudos suficientes, só não temos a definição”, afirma Kunz. Quem quiser acrescentar posições e preocupações sobre as usinas tem até o dia 15 de dezembro para protocolá-las junto ao Ibama. Finda esta etapa, vai depender do Ibama decidir sobre a licença prévia, que só deve sair ano que vem.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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