Reportagens

Chuva em terras sem lei

Em um verão chuvoso, a natureza volta a ser culpada por mortes e deslizamentos ocorridos em áreas de preservação permanente que deveriam ser habitadas por árvores e não por gente.

Juliana Fernandes · Nai Frossard ·
13 de janeiro de 2007 · 18 anos atrás

Durante dez dias, uma chuva ininterrupta caiu sobre a região serrana do Rio de Janeiro. O ano começou com a velha notícia de que temporais provocaram a morte de pessoas que moravam em áreas de risco. Mas afinal, o que elas estavam fazendo onde por lei deveria haver árvores?

Em 1965, quando a maioria dos morros do Rio de Janeiro ainda era verde e desabitada, foi criado o Código Florestal Brasileiro. Seus artigos tornaram obrigatória a conservação de vegetação em áreas definidas como de preservação permanente. E foram definidas como tais áreas em topo de morros, ao longo de rios e nascentes, e encostas com declividade superior a 45 graus. Quarenta anos depois, a lei não foi cumprida.

Para o geógrafo e coordenador do Laboratório de Geomorfologia Ambiental e Degradação dos Solos (Lagesolos) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor Antônio Guerra, os desastres não surpreendem. Ele, que passou dois anos em Petrópolis, num convênio com o Ministério Público e a Concessionária Rio-Juiz de Fora (Concer) para levantamento de informações em áreas degradadas, diz que a ocupação das encostas e das margens dos rios são problemas graves na região. “Nos dois anos em que trabalhamos na região visitamos 23 comunidades consideradas áreas de risco. Em todas verificamos problemas bastante complexos”, explica.

No trabalho de diagnóstico e prognóstico da situação, Guerra apontou o risco de desabamento de pelo menos cinco casas em cada comunidade. “São construções que, de fato, não poderiam estar ocupadas. Ou melhor, não poderiam sequer estar de pé. Elas estão em áreas onde o risco é muito alto e colocam em risco, na maioria das vezes, outras construções”, explica, lembrando que seria necessário um trabalho efetivo de conscientização dos moradores e um esforço conjunto de fiscalização. “Não sei o que é pior: autorizar as pessoas a construir nessas áreas ou fazer vista grossa à presença delas. O risco é grande. Sabemos que são áreas onde a probabilidade de ocorrência de deslizamentos é enorme”, critica.

Risco que a própria comunidade reconhece. No Quitandinha, por exemplo, área de Petrópolis com uma das maiores concentrações de imóveis irregulares, Janice Vital prefere minimizar os perigos aos quais expõe ela e seus filhos. “A Defesa Civil já avisou que eu devo sair, mas não acho que o risco seja tão grande. Moro aqui há mais de 30 anos e nunca aconteceu nada. No verão, quando chove muito, durmo na sala, que é o cômodo mais distante do morro que fica atrás da casa”, diz, garantindo que o perigo não tira seu sono. “Já acostumei. Só rezo para que Deus me proteja e proteja meus filhos”, diz ela, que, apesar dos riscos, não toma os mínimos cuidados para sua própria proteção: joga o lixo em um barranco que fica bem em frente à construção de três cômodos e despeja o esgoto bem ao lado do imóvel.

Basta subir as estreitas servidões para perceber que os desastres são uma questão de tempo. O acesso, muitas vezes de chão de terra batida, é barreira intransponível depois dos temporais. O lixo, que, à primeira vista remete o visitante apenas a uma desagradável sensação de sujeira, mostra-se mais perigoso a cada ameaça de chuva. ” Ele [o lixo] causa o acúmulo de água e faz os terrenos ficarem ainda mais pesados. Somado ao despejo de esgoto diretamente no solo e à falta de cuidados necessários aos cortes de taludes, tudo fica muito mais complicado”, alerta Antônio Guerra.

Ele estima que só as 23 comunidades pelas quais passou abriguem aproximadamente 40 mil pessoas. Isso equivale a 13% da população de Petrópolis. “E estivemos em menos da metade das áreas consideradas de risco na cidade. Isso significa que esse número de moradores de áreas ameaçadas é pelo menos duas vezes maior”, ressalta ele, que informou os dados no relatório entregue em agosto do ano passado ao Ministério Público. “A idéia era que esse material fosse encaminhado aos Ministérios das Cidades a fim de se tentar uma solução. É claro que sabemos que essas pessoas não podem se instalar nessas áreas, mas, uma vez instaladas, é preciso encontrar solução para sua remoção”.

As palavras do geógrafo Antônio Guerra são semelhantes as da ex-chefe da Área de Proteção Ambiental de Petrópolis e atual diretora do Instituto Estadual de Florestas, Yara Valverde. Em entrevistas concedidas a jornalistas no ano passado, logo depois de uma enchente que levou prejuízos a Itaipava, uma das principais áreas turísticas de Petrópolis, ela apontou a ocupação desordenada das encostas e margens dos rios e o despejo de lixo em áreas proibidas como a explicação para os constantes problemas registrados na Região Serrana do estado.

“As encostas estão desprotegidas. Com a chuva, o solo vai ficando cada vez mais pesado, tornando o risco de deslizamentos maior. Além disso, a terra que desce dessas encostas está chegando aos rios, causando o assoreamento, o que também torna as enchentes cada mais comuns”, disse, na época. Agora, à frente do instituto responsável por proteger as encostas fluminenses, Yara preferiu não comentar os desmoronamentos de 2007.

O pior caso

A cidade serrana de Nova Friburgo, com cerca de 180 mil habitantes, foi a mais afetada pela chuva. Lá, onze pessoas morreram soterradas. A Defesa Civil Municipal registrou 435 quedas de barreiras e atendeu mais de 800 chamados nos primeiros dias do ano. Foi o maior estrago causado por temporais nos últimos anos na região. Além das características topográficas e do índice pluviométrico elevado, o desmatamento e a ocupação desordenada em alguns bairros estão sendo considerados fatores chaves para a gravidade da situação. O sub-coordenador da Defesa Civil do município, Wagner Sathler, avalia que 70% dos deslizamentos de terra ocorreram em áreas de assentamentos precários. O distrito de Conselheiro Paulino – com muitas residências construídas em encostas – foi uma das localidades de Nova Friburgo mais destruídas pela chuva. Só no bairro Riograndina, foram 107 interdições de residências e 400 desabrigados. 

“No passado, vários loteamentos irregulares foram construídos, principalmente no distrito de Conselheiro Paulino, sem que houvesse um estudo prévio da base geológica, pedológica, sem levar em conta todas as características geomorfológicas, como a declividade, o tipo de rocha e de solo, por exemplo. Dessa forma, esses loteamentos, que são normalmente feitos com construções muito precárias, sem nenhuma estrutura de engenharia, no período chuvoso ficam suscetíveis a deslizamentos”, disse Pedro Higgins, geógrafo da Secretaria Pró-Cidade.

De acordo com o coordenador do Conselho Municipal do Meio Ambiente de Nova Friburgo do CEA (Centro de Estudos Ambientais), o geógrafo Fernando Cavalcante, o aterro municipal recebeu 650 toneladas de lama até o meio da semana passada. Ele confirma que a cidade tem muitas ocupações em encostas, próximas a cumes e rios, e com a chuva intensa e forte, o risco nessas áreas aumenta. Árvores, que ajudariam a conter a terra em caso de muita água no solo, são hoje raridades nessas áreas. Um dos bairros afetados pelos deslizamentos chama-se Floresta, mas, ironicamente, a mata mais próxima fica ao lado do loteamento.

Nova chance

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro dispõe amplamente sobre a preservação de áreas permanentes, estabelecendo que os Planos Diretores dos Municípios (Art. 231, § 6º) devem conter as seguintes normas básicas: proibição de construções e edificações sobre dutos, canais, valões e vias similares de esgotamento ou passagem de cursos d’água; e restrição à utilização de área que apresente riscos geológicos.

Em 2006, Nova Friburgo elaborou um Plano Diretor onde demandas ambientais foram acatadas. O plano foi aprovado pela Câmara de Vereadores e encaminhado para a prefeita, Saudade Braga, assinar. De acordo com Fernando Cavalcante, até o meio do ano, o Plano Diretor começa a ser implantado. “Temos agora que regulamentá-lo, para torná-lo coerente com o código de obras, que é de 1948, e a lei do uso do solo, que é de 1988”, informou. A curto prazo, não vai mudar muita coisa – as obras vão ter que se adaptar às novas diretrizes, mas a longo e médio prazo, a cidade terá a chance de reestruturar o crescimento urbano.

Os prejuízos provocados pela passagem da chuva em Nova Friburgo foram avaliados em 80 milhões de reais. Ao todo, 24 cidades na região serrana do Rio começaram o ano em situação de emergência. Vinte sete pessoas morreram e 5387 ficaram desabrigadas. Além de outras 5248 que estão desalojadas. Talvez se as leis tivessem sido cumpridas, o primeiro temporal de 2007 não teria causado tantos estragos a cidades que nasceram em plena Mata Atlântica.

*Juliana Fernandes é jornalista em Petrópolis e Nai Frossard em Friburgo.

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