Reportagens

Mudanças sim, mas para alguns

Relatório sobre clima mostra que alguns governos não têm alternativas senão agir contra o aquecimento global, mas também levanta incerteza que pode estimular desmatamento.

Gustavo Faleiros ·
2 de fevereiro de 2007 · 17 anos atrás

Dizer que as atividades humanas contribuem fortemente com as mudanças climáticas não é novidade para ninguém, mas finalmente conquistou o grau de certeza há anos procurado, ao ser pronunciado pelos cientistas de maior prestígio no mundo durante a divulgação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), nesta sexta-feira, em Paris. Se isso foi considerado um avanço básico, por outro lado esses mesmos cientistas levantaram, no relatório, uma perigosa incerteza: a de que não se sabe ainda em que medida as emissões provocadas pelos desmatamentos afetam o aquecimento global – o que pode ser o pretexto que muitos países desejam para continuarem relutantes em reduzir imediatamente suas taxas de desflorestamento.

De uma maneira geral, este primeiro volume consolida o conhecimento que se tinha sobre as alterações no sistema climático e dirime muitas incertezas. Enquanto no relatório anterior, de 2001, falava-se em 60% de certeza da causa antropogênica, nesta edição atribue-se a culpa ao homem com 90% de certeza. As bases para este argumento estão nos dados científicos que mostram que a concentração de carbono na atmosfera é maior nos últimos 650 mil anos. Além disso, registros de temperatura mostram que 11 dos 12 anos entre 1995 e 2007 bateram recordes de calor desde 1850. Nos últimos 50 anos, a temperatura subiu a um ritmo nunca visto: 0,13º C por década.

Além de olhar para o presente e para o passado, o relatório estima o que pode acontecer daqui para frente. Um dos principais pontos diz respeito a uma estimativa com 66% de chances de sucesso que a temperatura vá aumentar entre 2º C e 4,5º C, com maior probabilidade de que ocorra uma elevação de 3º C. O incremento deve ocorrer ao longo do século, sendo que há projeções seguras de que a temperatura subirá 0,1º C por década. Se mantido o atual cenário de concentração de gases estufa, a resposta do sistema climático, principalmente pela absorção do calor pelos oceanos, fará com que o ritmo do aquecimento seja duas vezes mais rápido depois de 2030 (0,2º C por década). Entre as certezas do documento há uma que diz que os oceanos absorvem 80% do calor do globo.

Caso essas estimativas se confirmem, haverá impactos significativos nas calotas polares, principalmente no Ártico, onde se espera que haja um desaparecimento quase completo do gelo até o fim do século. Os territórios mais afetados pelo aquecimento, diz o relatório do IPCC, serão os que estão mais ao norte e sul do planeta. Entretanto, é provável (66% de chance) que ocorra um aumento nas precipitações em todas as partes do globo, graças a uma capacidade maior de retenção de vapor na atmosfera. Algumas mundanças já são consideradas certas (100% de chance), como a de que até o final do século teremos noites e dias mais quentes.

A partir dessas constatações surgem muitas outras que certamente terão peso na diplomacia climática mundial. Entre elas, os cientistas do IPCC sustentam que o aumento na quantidade e intensidade dos ciclones tropicais, como os que têm açoitado os Estados Unidos, são consequência da elevação da temperatura dos mares. Nas palavras do relatório, a influência humana já pode ser “comprovada no aumento da temperatura dos oceanos e no comportamento dos ventos”. Mais do que isso, a influência dos gases emitidos por atividades humanas durará por até um milênio, que é o tempo necessário para o completo desaparecimento na atmosfera.

Passividade

No entanto, se as certezas poderão pressionar alguns países a tomarem medidas mais drásticas para combater o aquecimento, há incertezas que ainda podem manter outros na passividade. Entre as constatações do relatório está a de que a contribuição maior às mudanças climáticas vieram da emissão da queima de combustíveis fósseis. Isso não é nenhuma novidade, mas junto a esta certeza existe uma grande dúvida sobre qual a real contribuição do desmatamento nas emissões de gases estufa. A estimativa é de desde 1990 houve um crescimento de 1,6 bilhões de toneladas por ano, embora o próprio estudo observe que o dado não é confiável. Trata-se de uma incerteza que pode alimentar a relutância de países em desenvolvimento em assumirem compromissos no curto prazo de redução de emissões por desmatamento.

O coordenador do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ e presidente do Fórum de Mudanças Climáticas, Luiz Pinguelli Rosa, explica que a incerteza que paira sobre as questões de desmatamento se deve a métodos menos eficientes de avaliação. Enquanto a queima de gasolina e outros combustíveis fósseis pode ser calculada por amostragem, não dá para ter a mesma precisão para medir emissões de incêndios florestais. Isso não que dizer, contudo, que o IPCC estaria relaxando a barra para as nações campeãs em desflorestamento, como é o caso do Brasil. “O governo brasileiro deveria ver a redução do desmatamento obtida até agora como uma tarefa incompleta e fazer muito mais”, recomenda.

Política e cenários

O relatório do IPCC divulgado nesta sexta-feira é só primeiro volume de três. As propostas para a adoção de tecnologias e para o combate ao aquecimento ficaram reservadas ao último caderno, que será lançado apenas em maio. Embora esta primeira divulgação contemple apenas evidências científicas, não está imune a influências políticas. Como mostraram diversas reportagens nos dias que antecederam a publicação da versão final, cientistas discutiram ardorosamente sobre cada termo a ser usado. A matéria do International Herald Tribune, por exemplo, conta que até o último minuto, pesquisadores enviavam emails com sugestões ao texto.

Quando são apresentados os cenários futuros neste primeiro documento ficam mais claras as questões políticas. Os pesquisadores desenharam quatro cenários sócio-economicos do planeta, denominados A1, A2, B1, B2. Grosso modo, os cenários do grupo A possuem uma tendência em que o crescimento econômico continua a liderar. As variações ocorrem de acordo com tecnologias e combustíveis usados. Os cenários B seriam um mundo que optou pelo desenvolvimento sustentável. As diferenças entre o 1 e 2 são as taxas de eficiência econômica e tecnológica, além do crescimento populacional.

Os cientistas afirmam que o cenário B1 , onde a população do mundo continua estável e a economia faz uma opção pelos setores de serviço e alta tecnologia, é o melhor possível para mitigar os impactos do aquecimento global. Nesta previsão, haveria um aumento de 1,8º C até a virada do século. Já o cenário A2 é considerado o pior, pois o modelo desenvolvimento seria apenas centrado nas necessidades regionais, preocupado com aumento da renda per capita. Neste caso, a temperatura se elevaria em 4º C.

Rosa, da Coppe, critica essa parte do relatório do IPCC. Segundo ele, esses cenários refletem exclusivamente visões de economistas e que têm uma ênfase muito grande na adoção de novas tecnologias. “São hipóteses ingênuas que não têm nada a ver com ciência.” Em sua opinião, falta aos cenários lidar com propostas de cortar o “consumo perdulário de energia” por nações mais ricas.

Elliot Diringer, diretor do Pew Center on Global Climate Change, uma das mais renomadas instituições de pesquisa em políticas climáticas, afirma que o relatório só está confirmando um amplo consenso científico e consegue dar o recado de que é preciso agir com urgência. “Para os países que já estão fazendo alguma coisa, vai haver um incentivo para fazerem mais. Para os que ainda não estão agindo, o documento retira qualquer desculpa para a demora e sustenta quão catastrófico será não fazer nada”, pontua.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

Leia também

Notícias
24 de abril de 2024

Na abertura do Acampamento Terra Livre, indígenas divulgam carta de reivindicações

Endereçado aos Três Poderes, documento assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e organizações regionais cita 25 “exigências e urgências” do movimento

Reportagens
24 de abril de 2024

Gilmar suspende processos e propõe ‘mediação’ sobre ‘marco temporal’

Ministro do STF desagrada movimento indígena durante sua maior mobilização, em Brasília. Temor é que se abram mais brechas para novas restrições aos direitos dos povos originários

Notícias
24 de abril de 2024

Cientistas descobrem nova espécie de jiboia na Mata Atlântica

A partir de análises moleculares e anatômicas, pesquisadores reconhecem que jiboia da Mata Atlântica é diferente das outras, e animal ganha status de espécie própria: a jiboia-atlântica

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.