Reportagens

Diversão proibida

Colada à Reserva Biológica do Tinguá, no estado do Rio, a população brinca e os comerciantes faturam em represas ilegais construídas dentro de um rio em área protegida.

Eduardo Pegurier ·
1 de março de 2007 · 18 anos atrás

Dada a precariedade da estrada, o ônibus não pôde chegar até a entrada da reserva do Tinguá. Parou 500 metros antes. Pior, na volta, não conseguiu manobrar e foi obrigado a percorrer quase um quilômetro de marcha à ré. De manhã, quando o grupo chegou, a estrada estava vazia. Mas na hora do retorno, os carros dos freqüentadores dos bares estavam estacionados por todos os lados.

A tarefa foi um suplício para o motorista, estampado no seu rosto tenso. Numa longa e complicada ré, em descida para piorar, ele triscou os carros no caminho, arriscando danificá-los a cada passagem. Dedicados a consumir muita cerveja e caipirinha, os donos dos veículos não estavam exatamente sóbrios nem felizes com o que viam. Várias vezes, o resultado quase foi carros amassados e briga.

Um engarrafamento se formou à frente e atrás do ônibus, que tomava toda a largura da estrada. A caminho do banho de rio, só os inúmeros pedestres se esgueiravam pelos lados e conseguiam seguir o seu caminho. Apesar da confusão, o clima era festivo. Afinal, era sábado, fazia sol forte e a motivação de todos era se divertir.

Lá para as tantas, um Opala marrom de duas portas, ocupado por uma senhora e vários rapazes ficou preso. Um deles, sem camisa, se puxou até a cintura para fora da janela e gritou gargalhando para o motorista do ônibus: – Ô maluco, tira esse negócio daí que atrás vem um monte de homem mau. O suor escorria pela testa do motorista. Mas após ouvir muitas ironias, dicas de manobra e umas tantas ofensas, ele conseguiu superar todos os obstáculos e livrar o ônibus, sem causar estragos.

Outros planos

Essa história aconteceu ao fim de uma frustrada visita de estudantes e professores da PUC à reserva biológica do Tinguá. Ela tem 25 mil hectares e foi criada em 1989. Na verdade, a preservação das matas locais data do império, quando D. Pedro II mandou proteger os mananciais locais para garantir o suprimento de água da cidade, prejudicado com o desmatamento da floresta da Tijuca. Pouca gente sabe, mas um terço do município de Nova Iguaçu é coberto de florestas.

Por desorganização do IBAMA, o grupo não conseguiu entrar na reserva. A portaria não estava avisada da visita. Agendar as coisas com muita antecedência, dá nisso.

Mas o passeio serviu para conhecer uma das maiores áreas de lazer do município de Nova Iguaçu, os bares e as represas da Rua das Cachoeiras, apelido popular da Estrada da Administração. Ela acompanha e, por vezes, margeia o límpido rio Tinguá, que nasce dentro da reserva e serve como um dos seus limites. A estrada vai de uma das entradas da Rebio até o centro da vila do Tinguá, de seis mil habitantes.

Nos últimos 30 anos, nessa área, vários bares se instalaram na margem do rio oferecendo estrutura, comida e bebida aos banhistas. Além deles, construiu-se muitas casas. O local consolidou-se como uma das grandes pedidas da região. As estimativas variam de 4 a 15 mil freqüentadores nos fins de semana de sol. A grande atração são as enormes piscinas formadas por quatro represas instaladas pelos próprios comerciantes no rio.

A festa contraria todas as regras ambientais. As represas e os bares são ilegais, pois estão dentro de uma Área de Proteção Permanente. Os últimos estão colados ao rio, quando devia haver um recuo de pelo menos 30 metros. Falta saneamento. Muitos dos estabelecimentos e casas têm sumidouros, mas uma parte joga o esgoto in natura no rio Tinguá.

Em 2006, o Ministério Público entrou com processo contra os bares, exigindo a retirada das represas. A Prefeitura de Nova Iguaçu reconhece o problema e a importância do local para o lazer popular, mas não tem nenhum plano imediato para lidar com ele. Os donos dos bares defendem o seu direito de antiguidade e argumentam que beneficiam a população e protegem a reserva de invasões.

Planos da Prefeitura

O arquiteto Washington Fajardo é coordenador da secretaria de urbanismo da Prefeitura de Nova Iguaçu. Financiado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), um dos projetos da secretaria é revigorar o centro da vila do Tinguá, incluindo valorizar a vista do rio. “Ele ficará mais visível e terá seu leito renaturalizado. Mas isso é bela viola. Por dentro, pão bolorento. O projeto de revitalização do centro é um bom começo, mas precisamos ir além e fazer mais investimentos em saneamento”, diz Fajardo.

Enfrentar as irregularidades da Rua das Cachoeiras é um tema sensível para a administração do atual prefeito, Lindberg Farias. O secretário de participação popular, Hélio Porto, é franco sobre o assunto. “O problema começa com a falta de direito à água, seja ela para beber, lavar ou mesmo para o lazer. A baixada precisa das suas próprias alternativas. Entre pegar um ônibus e ir à praia na Barra, a população prefere uma cachoeira no Tinguá. Lá, se sente menos discriminada, dentro da sua cultura. Tudo é diferente, os hábitos, o biquíni e até mesmo o corpo”, reflete Porto.

Ele não esconde que a atual administração só irá enfrentar os problemas ambientais depois de conseguir gerar uma alternativa de lazer para os moradores e de renda para os comerciantes. “Quinze mil pessoas freqüentam o Tinguá em um fim de semana de sol. Faltam transporte e saneamento que suportem isso. É preciso disciplinar o entorno da reserva”, defende.

Segundo ele, a Prefeitura planeja limitar o acesso a Rua das Cachoeiras, equilibrando o número de freqüentadores com a capacidade de recebê-los. O segundo passo é investir em urbanização e saneamento da região, em parceria com o Ministério do Turismo. Mas qualquer modificação importante só ocorrerá se aprovada por um conselho local formado por representantes de nada menos do que 35 entidades. Elas incluem a Associação de Moradores, as 23 ONGs que atuam no Tinguá, vários órgãos municipais, e dois federais, o IBAMA e o Fórum do Turismo. O conselho foi criado em dezembro de 2006, como parte do programa Bairro-Escola, um dos principais da atual administração. Ao longo desse ano, espera-se que ele conclua um plano de ações para a região do Tinguá.

Uma rua animada

A Rua das Cachoeiras é quase intransitável. Os carros caturram nos buracos, exigindo o máximo da suspensão, até chegar a um dos dez bares de frente para o rio. Muitos vêm a pé mesmo. Ao fim, multidões se formam para tomar sol e banharem-se nas grandes piscinas formadas por quatro represas. Elas têm portas de metal. No fim do dia, quando o movimento termina, se abrem e o rio Tinguá volta a fluir livremente.

Enquanto isso, dentro das águas de qualidade duvidosa, as crianças brincam. Nas mesas instaladas sobre as margens concretadas, os adultos conversam e contemplam preguiçosamente os nadadores. De preferência, com um copo de cerveja gelada na mão. Famílias inteiras passam os sábados e domingos ali. Do outro lado da margem, já parte da reserva, se avista um portão em frangalhos e uma placa que diz “Aqui começa a Reserva Biológica do Tinguá – Acesso, somente com autorização”.

Dono do bar Love-love, Amarílio Andrade, 57 anos, é um dos pioneiros da Rua das Cachoeiras e presidente da Associação de Moradores do Tinguá. Conhecido na região como Marré, ele defende os comerciantes. “O Love-Love abriu há 32 anos. Como estamos lá encima da rua, nosso slogan é ` o último em distância e o primeiro em qualidade’ ”, conta ele com humor e orgulho. Sentado ao seu lado, está o amigo Jorge Arapuan, dono de outro bar da rua. Jorge herdou da mãe a casa onde funciona o negócio. Ela morou lá 50 anos e o bar com o nome da família já abriu faz 20.

“Aqui é tudo zero oitocentos”, diz Marré. “Trabalhamos com o público de baixa renda. Ninguém precisa pagar entrada para ter acesso ao rio pelos bares. Só não pode trazer a própria bebida”, completa. Ele sabe que vai enfrentar uma briga longa para manter os bares e as represas, uma das quais é dele. Mas acha que ganha. Diz que a própria SERLA (Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas) avalizou as represas na década de 80. O grupo tem os documentos e um advogado empenhado na defesa dos seus direitos.

“Retirar os bares não é negócio para nenhum dos lados”, afirma. Antes deles, as pessoas invadiam a reserva. Os bares inibiram esse comportamento, porque ofereceram uma alternativa organizada. Além disso, mantêm a área limpa, removendo o lixo deixado pelos banhistas. “Procuramos não tocar na reserva. Tem lá um jequitibá de 300 anos, que a gente protege ao máximo”, relata Marré.

Ele gostaria que o governo fosse mais duro com as construções que não têm sumidouro. “A administradora anterior da Rebio, Dra. Lea, fez um acordo com o pessoal para construir os sumidouros. 75% cumpriu. Deviam exigir. É coisa que se constrói em três dias”, afirma.

A maior reclamação é contra o mau estado de conservação da Rua das Cachoeiras. “Estamos pedindo, pedindo, mas ainda não conseguimos, apesar do governo ter assumido esse compromisso. Esse governo é mais participativo, vem à comunidade conversar, através do prefeito e dos secretários. Órgão público tem que ajudar e não punir. Fazer rede de esgoto ou caixa séptica e melhorar a estrada”.

Enquanto isso, a preservação do rio em si, que levou à criação de uma reserva biológica com seu nome, fica fora da lista de prioridades.

*Eduardo Pegurier é colunista de O Eco e decidiu fazer uma reportagem sobre o que testemunhou após uma visita frustrada à Reserva Biológica do Tinguá.

  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

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