Apenas cinco dias após o término da operação de fiscalização que embargou mineradoras dentro do Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais, deputados deram o contra-golpe. Aprovaram, por unanimidade, um projeto de lei que exclui da unidade de conservação 48 mil hectares, justamente áreas não indenizadas exploradas por empresas em busca de diamante e quartizito. No dia 29 de outubro, a comissão de Meio Ambiente da Câmara votou pela transformação do berço das águas do Paraná e São Francisco numa colcha de retalhos em nome de pedreiras e pecuária. Só para variar, há indícios de que as pressões para reduzir o parque tenham tido dedo da Casa Civil.
Uma semana se passou e até agora, em vez de manifestações, só deu tempo de os deputados se saírem como defensores da natureza. Andaram distribuindo notas comemorando a aprovação de um “mosaico ambiental” na Serra da Canastra. Leia-se: a transformação de ¼ do parque nacional numa Área de Proteção Ambiental (APA), categoria de manejo prevista pela legislação brasileira totalmente benevolente à presença de atividades poluidoras e impactantes. O projeto de lei dos deputados mineiros Carlos Melles (DEM), Rafael Guerra (PSDB), Odair Cunha (PT), Maria do Carmo Lara (PT) e Geraldo Thadeu (PPS) ganhou parecer favorável de seu relator, o deputado federal carioca Fernando Gabeira (PV-RJ), e só precisa agora passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e pelo Senado.
A proposta recém aprovada não apenas exclui os 48 mil hectares do parque, mas prevê revisão na demarcação de 130 mil hectares de terras da unidade de conservação, “muitas delas produtivas, decorrente de plano de manejo elaborado pelo Ibama em 2005, que ampliou os limites do parque”, conforme nota. Diferentemente do que afirmam, em 2005 o Ibama não ampliou o parque, mas aprovou um plano de manejo para a gestão da sua área integralmente e não só os 70 mil hectares desapropriados até agora.
Por telefone, o deputado petista Odair Cunha, defendeu que o projeto na verdade muda a clareza jurídica sobre o tamanho do parque, uma vez que 130 mil dos 200 mil hectares não foram administrados nem desapropriados pelo governo federal desde 1972. “O entorno passa a ser área de proteção!”, considera. Pelo novo desenho, não só as áreas de exploração de quartizito – cuja atividade tem forte apelo social em municípios como Alpinópolis, no entorno do parque – mas as de exploração diamantífera também estão sendo retiradas.
“O projeto tira áreas de alto valor agriculturável e redefine o parque. Num outro projeto de lei, nós estamos incluindo uma das nascentes do rio São Francisco como Monumento Natural, que protege até mais que um parque”, crê o deputado. A nascente do Samburá, no município de Medeiros, precisa mesmo ganhar alguma proteção. A região está totalmente erodida e alterada por plantações de milho, batata e soja.
Tramitação do projeto
Em janeiro de 2006, a Casa Civil instituiu um grupo de trabalho interministerial (GTI) para estudar e propor medidas a fim de revisar os limites do Parque Nacional da Serra da Canastra (PNSC). Em menos de cinco meses, 16 ações foram propostas para resolver os problemas de ocupação. Conforme o relatório final, a Casa Civil recomendou que o executivo enviasse ao Congresso um projeto de lei para ajustar os limites da unidade e recomendar um mosaico de unidades de conservação. E deu prazo, até 31 de julho de 2006, para que Ministério do Meio Ambiente e Ibama encaminhassem à presidência a nova configuração do parque. Só que o Ibama achou que conseguiria quitar a regularização fundiária com compensação de reserva legal antes, não mandou nenhum projeto e deu no que deu.
Através de sua assessoria de imprensa, a Casa Civil declarou que, “não é verdadeira a afirmação de que ela se coloca a favor da redução da área ou contrariamente à preservação do parque. Conforme o relatório final do GTI (página 13, item 3), a Casa Civil defende que o PNSC permaneça com área de cerca de 200 mil hectares. ‘…. a área do PNSC continue sendo de aproximadamente 200 mil hectares, adaptada fundamentalmente para proteger os mananciais formadores e afluentes dos rios São Francisco e Grande'”.
Não é bem assim. Segundo um assessor do governo, o deputado petista Odair Cunha se comunicou por telefone com a Casa Civil durante a votação na semana passada e recebeu uma “ordem” para que o projeto passasse. Perguntado sobre se a Casa Civil fez alguma recomendação à comissão de meio ambiente da Câmara, Cunha desconversou. “Isso eu não posso te dizer, porque eu não sou da comissão”, respondeu. “Afirmar que a Casa Civil dá “ordens” aos deputados é um absurdo. O que há, e sempre houve, é diálogo entre o Executivo e os parlamentares, no sentido de encontrar soluções para os conflitos existentes na área do PNSC”, disse porta-voz da Casa Civil.
Desafetação desastrosa
Até 2001, a gestão do parque nacional era realizada apenas nos cerca de 70 mil hectares desapropriados da unidade, mesmo sem nenhum instrumento legal que tivesse efetivamente desafetado os 130 mil hectares restantes. Quando o Ibama acordou para o problema, estourou o barril de pólvora. Não demorou para que lideranças locais, empresas e parlamentares se articulassem para impedir a implementação da unidade de conservação, que protege espécies ameaçadas do Cerrado como o lobo guará e o pato mergulhão.
Para o chefe do parque nacional, Joaquim Maia Neto, se o parque for mesmo diminuído, a região terá um novo conflito, desta vez inadministrável. “O desenho proposto é tão recortado que manterá várias comunidades em áreas que só poderão ser acessadas através do parque, o que torna o controle impossível”, explica. E tem muito mais. Pelo projeto aprovado, o perímetro do parque ficará muito grande em relação à sua área, o que agravará os efeitos de borda (impactos sobre as áreas do entorno no interior do parque).
A área a ser retirada do parque nacional abriga regiões de alto endemismo vegetal, em especial onde estão instaladas algumas pedreiras. Ali também estão as áreas de vale, que apresentam remanescentes de fisionomia florestal, garantindo diversidade de paisagem e de espécies. “Tem mais um fator, que é a perda de conectividade entre as áreas altas, exercida pelos vales, que estão sendo excluídos”, acrescenta. Isso sem falar na necessidade de territórios mais extensos para manutenção de populações estáveis de grandes mamíferos. “Na verdade, essa desafetação é um desastre do ponto de vista ambiental”, considera Joaquim. Ainda mais num bioma pressionado como o Cerrado, que quase não tem mais áreas com características naturais que justifiquem a criação de novas unidades de conservação e que ainda não consegue proteger nem 10% de sua área.
O Instituto Chico Mendes pretende agora correr atrás do tempo perdido e tentar agilizar a regularização fundiária do parque, que o governo federal não fez em 36 anos. Só que para enfrentar as pressões na Câmara isso não tem sido suficiente. “Infelizmente percebemos que nossa mobilização não encontra respaldo entre os parlamentares, que poderiam reverter a situação. Cadê a Frente Ambientalista do Congresso?”, indaga o chefe do parque nacional. É uma boa pergunta. A Frente Parlamentar Ambientalista foi procurada pela reportagem, mas até o fechamento desta edição não respondeu aos pedidos de entrevista.
Leia também
Os 45 anos da pedra fundamental da primatologia no Brasil
Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ) completa 45 anos, uma história que se mistura com o desenvolvimento das pesquisas e esforços de conservação de primatas no país →
BR-319, a estrada da discórdia na Amazônia
Pavimentação da rodovia expõe queda de braço dentro do próprio governo, que avança aos poucos com obras entre Porto Velho (RO) e Manaus (AM), a despeito do caos ambiental na região →
Fogo acaba com 71% da biomassa da floresta amazônica em apenas duas passagens
Incêndios recorrentes alteram a estrutura física, a diversidade e a composição das espécies, podendo levar a floresta ao colapso, mostra estudo →