Reportagens

Remando contra a corrente no Pantanal

Pesquisador defende uso econômico controlado da fauna como meio para se valorizar e preservar o bioma. Para ele, Brasil ganharia mais regulando do que proibindo a atividade.

Aldem Bourscheit ·
11 de novembro de 2008 · 16 anos atrás

Ele chegou ao Pantanal na metade dos anos 1980, período de intensiva caça de jacarés para extração de peles. Na região, se dedicou a estudar conservação da fauna. Doutor em Biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), pesquisador da Embrapa e professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Guilherme de Miranda Mourão tem idéias que podem mexer com os brios de certos ecologistas e defensores dos animais. Para ele, o Pantanal pode comportar o manejo controlado de animais como o jacaré, sem prejuízos à espécie. O pesquisador também defende o turismo de observação como incentivador da conservação regional e aponta a falta de debate sobre o futuro pantaneiro.

O Eco – Quando você chegou ao Pantanal e qual seu trabalho na região?

Guilherme Mourão (GM) – Cheguei como estagiário, em uma quarta-feira de cinzas de 1985, e hoje atuo com biologia da conservação de várias espécies pantaneiras e orientando alunos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, no Programa de Ecologia e Conservação. Várias teses de alunos multiplicam minha capacidade de trabalho. Junto à Embrapa, pesquiso como desenvolver o Pantanal de forma preservada. Quando cheguei aqui, vim para trabalhar com peixes, mas rapidamente passei a atuar com jacarés. À época, a Embrapa via a espécie como recurso utilizável e eu penso assim até hoje. Os jacarés eram caçados ilegalmente e pesquisávamos se essa extração era sustentável do ponto de vista biológico e se era possível criar e implementar planos de manejo para atender à demanda.

O Eco – Esse ciclo das peles de jacarés, como surgiu e que efeitos ambientais e econômicos provocou?

GM – Na década de 1980, o Pantanal iniciou um período de cheias expressivas, até por volta do ano 2000. Naquela época, a caça clandestina foi muito intensa e o Estado respondeu tentando coibir a atividade, criando as polícias ambientais e uma legislação repressiva. Pessoas morreram nesse processo. Era guerra. Começamos a trabalhar com jacarés, vivos e caçados. Em toda apreensão, éramos chamados e medíamos as peles, ou quando encontrávamos acampamentos abandonados de caçadores medíamos crânios. A percepção da sociedade era de que o jacaré estava em extinção pela caça intensiva. Mas quando cheguei à região, literalmente tropeçava em jacarés. As populações eram vigorosas e não vi a espécie em perigo em nenhum momento. O próximo passo foi divulgar esses dados. A caça seguiu intensa até 1992, quando uma repulsa mundial incidiu sobre peles de crocodilianos e outros produtos. Deixou de ser moda usar uma bolsa ou outro produto de jacaré. A procura e os preços caíram muito no mercado internacional. Até hoje isso não foi retomado de forma expressiva.

O Eco – O Brasil perdeu uma oportunidade para organizar o manejo de uma espécie, optando apenas por medidas repressivas?

GM – Sim. Na época deveriam ter sido desenvolvidos instrumentos legais e ocorrido investimentos para capacitar instituições em monitoramento e controle. Com muita água, há muito jacaré, e há grande demanda internacional. Assim, mesmo se extraindo parte de uma população, ela é capaz de se recuperar. Claro que isso deve ocorrer conforme critérios científicos que limitem quantidades e definam locais de captura. Outros países fazem isso. Quando a caça era legalizada no Brasil, na década de 1960, éramos o maior exportador de peles de crocodilianos. Agora, com a opção por criadouros legalizados, nossa participação é irrisória.

O Eco – Isso ocorreu por quê? É mais fácil proibir do que regular?

GM – É verdade. Sempre que os dirigentes têm algum problema de difícil solução, a primeira reação é proibir tudo. Tudo isso poderia ter sido mais bem pensado.

O Eco – Que outros países manejam jacarés e qual a situação da espécie nesses locais?

GM – Os Estados Unidos sempre usaram sua fauna silvestre. Lá a caça de jacarés foi proibida até que estudos fossem feitos, quando a atividade foi retomada, com sistemas de controle diferenciados em vários estados, como Louisiana e Flórida. O país tem aumentado sua participação no mercado mundial, com cerca de 200 mil peles por ano e as populações de jacarés estão muito bem. A Bolívia tem cota anual de 50 mil peles por ano, autorizado pela Cites (Convenção Internacional sobre Comércio de Espécies Ameaçadas). Agora, a extração boliviana de jacarés ocorrerá em áreas muito próximas à fronteira brasileira. Deveríamos estar nos informando sobre essa iniciativa.

O Eco – Essa prática é realmente sustentável, não pode prejudicar a espécie?

GM – O pior que pode ocorrer a uma população silvestre é não se saber nada sobre ela. Se há uma população isolada entrando em declínio, é preciso acompanhar o processo. Foi assim que perdemos a ararinha-azul. Quando se tem uma atividade econômica controlada e legalizada sobre uma espécie, isso pressupõe monitoramento, com biólogos realizando contagens e controlando a saúde dessas populações. Se algo de errado for detectado, há tempo para se fazer o necessário. Nesse sentido, acredito que é preferível uma população sendo usada do que não se ter informação alguma sobre ela. Além disso, somos o país com mais espécies e vários compromissos internacionais assinados obrigando sua conservação. Se formos apenas gastar dinheiro a fundo perdido para proteger essas espécies, vemos países mais pobres em biodiversidade, como os Estados Unidos, fazendo uso dessas riquezas. Acho essa divisão injusta.

O Eco – O manejo do jacaré ou de outra espécie associado ao turismo pode ser uma alternativa econômica para o Pantanal?

GM – Aproveitar a fauna silvestre como recurso cênico é sensacional. Países da África tem usado desse artifício com grande entrada de recursos e resultados positivos para a conservação. Gostaria de ver o mesmo acontecendo aqui, pois temos muitas espécies com apelo turístico. A variedade de aves no Pantanal é tremenda, observadores de aves do mundo todo vem para cá. Também há espécies carismáticas, como a ariranha, a onça-pintada, o tamanduá-bandeira com seu design tão diferente. Gostaria de ver esses “produtos” valorizados como forma de conservação de habitats e de espécies.

O Eco – Por que o brasileiro não conhece o Pantanal?

GM – O Pantanal ainda é caro para o padrão dos brasileiros. Um passeio pelo Rio Paraguai em um grande barco-hotel ou a hospedagem nos maiores hotéis-fazenda custam tanto quanto uma viagem internacional. Essa questão terá que ser equacionada, se houver mesmo uma opção pelo turismo. Outro problema se verifica em meses como agosto e setembro, quando a fumaça de carvoarias chega a impedir poucos e decolagens de aviões menores na região. Como trazer turistas para ficar tossindo com toda essa fumaça? Hoje, o desmate cresce porque pecuaristas precisam aumentar suas áreas para poderem competir com quem produz no Cerrado e outras regiões. Isso vai na contramão do turismo. Precisamos definir qual desenvolvimento queremos para o Pantanal.

O Eco – Quais são outras ameaças ao bioma?

GM – No momento, estou especialmente preocupado com barragens para usinas hidrelétricas, principalmente pelo grande número de pequenas (PCHs). O Pantanal é um sistema que existe pela variação de cheias e de vazantes. Hidrelétricas contrariam essa lógica, põem por terra o principal mecanismo que fez do Pantanal o que ele é.

Confira aqui texto sobre uso econômico do jacaré, por Guilherme Mourão.

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  • Aldem Bourscheit

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