A quarta edição do Encontro Brasileiro de Observação de Aves, o Avistar, realizada no último final de semana em São Paulo, foi marcada pela multiplicidade de perfis de seus participantes e por mais um passo dado na consolidação da prática em solo nacional. Ainda com pequena expressão se comparado a outros países, como os Estados Unidos, que possui 70 milhões de observadores, o birdwatching no Brasil ganha cada vez mais adeptos, muitos deles interessados em se aprofundar no conhecimento ornitológico.
Muitos são os desafios pela frente, como a participação maior e mais bem preparada do governo na promoção da atividade e na adaptação do turismo para as exigências do observador de aves. No entanto, segundo Guto Cavalho (foto), organizador do evento, a base está bem assentada. Em entrevista a O Eco, se emociona ao lembrar de um pavó encontrado em um parque paulitas e comenta que a atividade pode crescer de maneira firme e ordenada no Brasil, auxiliando na conservação de espécies e de ambientes e gerando renda para o setor de turismo. Confira principais trechos abaixo.
O Eco – O que mudou no Avistar, dos anos anteriores para cá?
Guto Carvalho (GC) – A principal mudança não está dentro do Avistar, mas fora. O trabalho de quatro anos começa a dar resultado, graças ao trabalho de Comunicação, e o Avistar deve ser entendido como um trabalho de comunicação, aquilo que estava disperso em volumes não sabidos, em locais não identificáveis, agora encontrou um canal de expressão. A sociedade percebeu isso. As pessoas finalmente estão entendendo o que é a observação de aves, estão se identificando como observadores, estão percebendo que você pode ter uma relação com a natureza completamente diferente do que as que se ofereciam. Você poderia ser um defensor da natureza, com armas na mão, poderia ser um destruidor da natureza, e agora a gente tem uma categoria nova para as pessoas se encaixarem, que é ser um amante da natureza com um binóculo, com seu olhar.
O Eco – Muitos observadores ainda não se descobriram?
GC – Com certeza. As pessoas se entenderem como observadores de aves é uma grande evolução. O mais importante é elas perceberem que, se colocam comida para o passarinho sentar em suas janelas, são observadores. E aqui ela pode encontrar outras pessoas com os mesmos interesses, conhecer mais e, assim, ajudar na conservação das espécies. Esse é o principal objetivo do Avistar, oferecer uma maneira divertida, esteticamente bacana, para se trabalhar a conservação.
O Eco – Que falta para o Brasil ter um primeiro levantamento sobre o número de observadores de aves?
GC – Existem vários indicadores que não estão compilados. Por exemplo, se foram vendidos 10 mil guias de observação, pelo menos 10 mil birdwatchers a gente tem. E o mercado hoje, principalmente o mercado editorial, já exibe números vigorosos. Tem vários guias de observação que são best-sellers. Então, não dá mais para dizer que são meia dúzia. Somando todas as vendas do mercado editorial, chegamos a trinta, quarenta mil. O número de clubes de observação, dos novos clubes que têm surgido em todo o Brasil, e a força com que eles se fazem presentes no Avistar, também é um fator importante. Esse ano vieram Belo Horizonte, Campinas, São Paulo, Porto Alegre, várias cidades trazendo seus clubes de observação. Quantos não puderam vir? Tudo isso tem que ser levado em consideração.
Durante o Avistar, por exemplo, foram acrescentadas quatro novas espécies para o parque Villa-Lobos, em São Paulo. Isso é uma prova concreta da função do birdwatching como um instrumento de conhecimento e conservação da avifauna. Ninguém sabia que tinha pavó no parque Villa-Lobos e acredito que esse é um recado muito claro da natureza brasileira, que ela está aí para quem está de olhos abertos. (Guto se emociona)
O Eco – Foi felicidade?
GC – Felicidade, com certeza. A gente tem que associar a conservação da natureza com felicidade e isso é o que propomos. Embora seja uma luta dura, é uma luta prazerosa. E mostrar para as pessoas que não é inconsistente a luta com o prazer, é a questão principal. A luta pela conservação não precisa ser sofrida. Ela é dura, mas se você a encarar com ternura, é muito mais fácil e você consegue muito mais adesão. É uma questão de estratégia mesmo, porque, como você vai conseguir adesão das pessoas se você só apresenta tristeza? Tem que ir “pro pau” mesmo, mostrar que a gente é muito mais legal que passarinho em gaiola.
O Eco – Um dos pontos levantados no ano passado foram problemas como equipamentos barrados na entrada de parques sob o argumento do uso de imagens com fins comerciais. Houve avanços nesse sentido?
GC – Os avanços são locais. E essa luta tem duas questões. O birdwatcher precisa ser entendido. Ele se inseriu no contexto da vida digital e essa é uma grande mudança ainda não percebida. Agora, o observador é irmão do Flicker, do Orkut. Isso explica o sucesso do Wikiaves, por exemplo. Por quê? Porque as pessoas passaram a compartilhar suas sensações com a natureza pela Internet e, por isso, a presença do equipamento é fundamental.
Na verdade, a gente vive no Brasil, como sempre contraditório, o surgimento do “tecnonaturalismo”, que é a evolução da observação de aves. O tecnonaturalista observa aves, mas também insetos, folhas, flores, e tudo isso tem um espaço de compartilhamento digital. Então, a contrapartida do mato é a internet. Agora, o instrumento para isso é você entrar com equipamento. Se hoje as pessoas têm os seus grandes equipamentos, não é para ganharem dinheiro com foto, não é para expropriar materialmente o parque. E é obvio que as autoridades constituídas demoram a ter essa percepção. Se muita gente do meio não percebeu isso, é compreensível que as autoridades também não tenham entendido. Cabe a nós explicar e trabalhar localmente e globalmente. Localmente, a gente vê diversos parques que permitem, que compreendem. No âmbito geral, tem um trabalho que só a hora que isso tiver um amadurecimento maior é que ele será compreendido. Com tudo isso, a gente tem que ter ciência de que ainda precisamos de mais volume, mais presença de modo geral, para que essa demanda entre na agenda. Estamos trabalhando para isso, mas leva um pouquinho de tempo. Para mim isso está na categoria disposições transitórias, coisas que acontecem enquanto a coisa grande esta sendo articulada. Não é um problema menor, mas é transitório.
O Eco – Se é transitório, quer dizer que vai ser resolvido?
GC – Ele vai ser resolvido naturalmente. É só as pessoas entenderem um pouco mais que isso se equaciona. É diferente de um problema de conservação que, se você não atuar ativamente, a destruição acontece. Esse problema é de outra ordem.
O Eco – O tecnonaturalismo seria a intermediação da relação do homem com a natureza pelo tecnologia?
GC – Mais ou menos. A relação do homem com a natureza tem dois pontos. Tem o ponto sensorial, quando você trabalha com uma sensorialidade expandida, seja por meio do gravador, da lente ou mesmo com o binóculo, a relação com a natureza de fato é intermediada pela tecnologia, no sentido de realidade aumentada. Com isso, você tem uma percepção diferenciada porque conta com um equipamento sensorial biônico. Se você está com uma lente, você não vê a mesma coisa que estar sem ela. Então, sim, é uma experiência mediada pela tecnologia. Não que isso afaste, isso é importante, a tecnologia aproxima mais. Essa dicotomia da tecnologia com a natureza foi para o espaço, não existe mais. Num segundo momento, tem um espaço virtual de vivência natural a partir do compartilhamento, porque aquilo que antes virava um registro duro e frio numa caderneta de campo, hoje vira um registro fotográfico, um registro de som e uma série de discussões que acontecem na internet após o passeio de campo. Então, após cada passeio de campo, a cada sensação que uma pessoa passa, mais 80, 90, conseguem compartilhar disso.
O Eco – Mas isso não restringe muito a atividade, apenas aqueles com equipamentos modernos e super potentes?
GC – Discordo frontalmente. É só ver as fotos premiadas no concurso Avistar, onde 90% dos participantes têm câmeras numa faixa não profissional. Acredito que esse tempo pela restrição pelo equipamento, desculpa, acabou-se minha gente. Nós vivemos o tempo da democracia tecnológica, as pessoas já têm um equipamento. O celular, do jeito que é, já pode ser usado, o iPod já pode ser usado do jeito que está, a camerazinha já pode e faz fotos maravilhosas. A seleção por equipamento já era, meu povo. Quem dependia disso perdeu o bonde da história. Eu acho que hoje a tecnologia já está à disposição, cabe a nós trazê-la para esse uso. É barata, fácil e as pessoas já têm. Apenas tem que usá-las para o bem.
O Eco – Na edição deste ano do Avistar, a Embratur trouxe panfletos e as discussões não giram mais só em torno de dificuldades, mas também de oportunidades. Isso também é um sinal de amadurecimento?
GC – Com certeza. Eu acho que a gente vai viver com o observador uma situação inédita do ponto de vista de turismo no Brasil. Um dos maiores problemas no país é o crescimento desorganizado. Esse é o principal culpado pela devastação, pelo fim das nascentes, por toda a m… ambiental que acontece no Brasil. O birdwatching vai ter uma oportunidade única, porque, desde o início, desde pequenininho, a gente está trabalhando em parceria com o governo, Embratur e Ministério do Turismo. Isso dá uma oportunidade única de fazer um crescimento organizado para a atividade. A gente sabe que ela é pequena, que é um nicho, que o birdwatching dificilmente será a única fonte de renda de uma pousada ou de uma região. Ele pode ser determinante em alguns casos, mas sempre será complementar. Então, esse crescimento que a gente vê desde o início, é tudo o que a gente deseja e o que segmento precisa para que o crescimento seja ordenado.
O principal ponto que gera o esgotamento de certas atividades turísticas, notadamente em ecoturismo, turismo de aventura, é ir com muita “sede ao pote”. Aqui a gente espera que a história seja diferente, que trabalhemos com planejamento de longo prazo. Temos visto isso e temos proposto essa maneira de trabalhar e pensar aos parceiros institucionais, seja governo ou entidades.
O Eco – Quais as relações dos observadores, leigos, com os pesquisadores da ornitologia?
GC – Tanto quanto astronomia, a observação de aves tem intensa parceria com a produção científica. É natural que, por serem atividades de observação do céu ou da terra, a quantidade de olhos disponíveis seja significativa com relação à eficiência da atividade. Muitas estrelas novas ou espécies novas surgiram em função do trabalho de amadores. Eu acho que a ciência no Brasil, a ornitologia principalmente, já fez um trabalho muito bonito de preparação da massa leiga, digamos assim, na forma de livros. Nos últimos quatro anos, vimos um trabalho maravilhoso de diversos acadêmicos que se juntaram aos editores e produziram livros. Então, com esse material, a ciência se socializou e agora vamos colher o fruto desse amadurecimento. A maior parte dos observadores brasileiros tem livros bons para se orientar e contribuir efetivamente com a ciência. Aí também entra o papel dos grupos de discussão online, da vida digital.
Existe um trabalho que muitas vezes não é citado e está por trás, do Comitê Brasileiro de Registro Ornitológico, o CBRO, que padronizou a divulgação da ornitologia. Quando a gente acessa informação online, a padronização é crucial, mas ninguém fala do trabalho deles. Meia dúzia de acadêmicos se sentaram e falaram: “vamos botar ordem na bagunça”, e é importantíssimo dar esse crédito para eles. Os livros usam a nomenclatura CBRO, e quando você normatiza, dá base para o crescimento. Agora a gente vai viver o segundo momento desse ciclo, porque esse trabalho já foi feito há seis anos, já virou livro e o livro já instruiu as pessoas, e agora as pessoas estão retribuindo para a ciência. Então, os caras que são os mestres, o Pachecão [José Fernando Pacheco], o Straube [Fernando Straube], são os caras que criaram a base para isso, e, em cima disso, a gente pode fazer o segundo, o terceiro andar desse edifício. E como o alicerce é bom, o negócio cresce sem cair.
O Eco – Você acha que os observadores, leigos ou não, estão preocupados com a degradação ambiental e com a possível mudança do Código Florestal, tema pontuado na abertura do Avistar?
GC – Com certeza. O que a gente tem que ter em mente é que as questões não são excludentes. Não é porque você tem prazer em observar aves que não vai se preocupar com a preservação. A maior parte dos birdwatchers são ferrenhos defensores do meio ambiente. Mas a gente não precisa ser xiita para ser um bom guerrilheiro. A atividade humana tem múltiplas expressões. Esse ano a gente teve essa questão presente, fiz questão de trazê-la para cá, e esteve muito bem apresentada, o recado foi dado e as pessoas estão cientes disso. A conservação é um fator importante e se você for ver, a gente teve várias palestras focadas em conservação.
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