Reportagens

Porto da discórdia

Em Peruíbe, litoral sul de SP, só se fala do Porto Brasil, projeto do empresário Eike Batista que envolve prefeitos entusiasmados, índios aliciados e muitos impactos ambientais.

Cristiane Prizibisczki ·
14 de março de 2008 · 17 anos atrás

A notícia de um novo empreendimento em Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, está movimentando a cidade. Basta dar uma volta pelas ruas para encontrar pessoas discutindo o assunto e manchetes de jornais que anunciam: “o Porto Brasil vem aí”.

Empreendimento da LLX Logística S/A, do empresário Eike Batista, o Porto Brasil é proclamado como “o maior da América Latina”, com capacidade para receber até 11 navios e 50 milhões de toneladas de materiais por ano. Segundo o Plano de Trabalho de empresa, o desenho do empreendimento será diferenciado: os navios vão aportar em uma “ilha” em alto mar, com berços para a atracação. Ilha e berços serão protegidos das correntes marítimas por quebra-mar e conectados ao continente por uma ponte de 3 km, que possibilitará o acesso de caminhões, esteiras transportadoras e dutovias necessárias à transferência de carga.

Além da ilha, também está prevista a criação do Complexo Industrial Taniguá, na área de retro-porto. Lá, ainda segundo o Plano de Trabalho da empresa, serão instaladas indústrias automobilística e eletrônica, centros de distribuição, pátio para contêineres vazios, centros de pesquisa, fabricação de pré-moldados de concreto, metal-mecânica para fabricação de máquinas e equipamentos, processamento de carnes e outros alimentos. O investimento anunciado para a implantação dos projetos é de 4 bilhões de reais.

Segundo o cronograma da Prefeitura, um grupo de trabalho deve dedicar dois anos para a análise de custo-benefício dos projetos. Se aprovados, até março de 2012 as obras deverão ser iniciadas e, entre a primeira e segunda etapa de implantação do Porto Brasil e Complexo Taniguá, deverão se passar dez anos. No próximo dia 26 ocorre a primeira audiência pública para discutir a instalação dos empreendimentos em Peruíbe.

Impactos ambientais

Apesar de a prefeitura de Peruíbe afirmar que ainda é cedo para analisar os impactos ambientais trazidos pelos projetos da LLX, é possível fazer uma comparação com outros portos brasileiros. Segundo o pesquisador Milton Asmus, professor do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande e especialista em ecologia de ambientes estuários e costeiros, os impactos são muito significativos e devem ser considerados quando o processo de implantação de um porto está em análise.

Entre eles estão: mudança na dinâmica e nas características físico-químicas das águas; aumento da turgidez, o que diminui a capacidade de fotossíntese dos organismos marinhos; mudança nas características do bentos marinho (fundo), o que reflete em toda cadeia de alimentação das comunidades de peixes e aves; contaminação das águas pelo processo de dragagem da areia para obtenção do calado; destinação da areia dragada; desequilibro das áreas de produção pesqueira; mudanças da paisagem e poluição do ar. “Os aspectos ecológicos são todos impactados”, diz.

A área do retro-porto, onde a LLX pretende construir o Complexo Taniguá, também deve sofrer (e muito) se o empreendimento der certo. Segundo o ornitólogo Bruno Lima, que há quatro anos faz o levantamento das aves do litoral sul paulista, o terreno é considerado a maior extensão de floresta de restinga do litoral sul e morada de animais como o papagaio-de-cara-roxa – que figura na lista vermelha de espécies ameaçadas -, gavião-pombo-pequeno, sabiá pimenta, puma, anta e macaco-prego. “A área é uma IBA [Important Bird Area] e um dos últimos redutos de espécies super ameaçadas. Acreditamos que o papagaio-de-cara-roxa que existe lá, cuja população é de 88 indivíduos, não faça trocas genéticas com indivíduos de outros lugares pela dificuldade em ultrapassar os maciços da Serra do Itatins, por exemplo”, explica.

O professor Milton Asmus também argumenta que os impactos indiretos da implantação de um empreendimento como este são muito maiores que os diretos. “O Porto de Rio Grande mudou consideravelmente os aspectos sócio-econômicos da cidade. Hoje o nosso PIB é um dos maiores do Estado, mas o Índice de Qualidade de Vida é pouco expressivo. Posso dizer que o Porto condiciona a cidade, seja no planejamento de vias, na habitação, na atração de negócios”, pondera.

Segundo ele, como o Porto de Rio Grande foi criado na década de 1970, quando ainda não existia o EIA-Rima, o passivo ambiental do empreendimento foi muito grande. Vários ambientes da orla foram alterados, houve processo de favelização e crescimento do subemprego. Além disso, Asmus ainda lembra dos impactos que extrapolam a região em que o Porto gaúcho está instalado. “Centenas de quilômetros sofreram impacto, se considerada a logística, as rotas de caminhões”.

Vale ressaltar que a capacidade do Porto de Rio Grande – de 25 milhões de toneladas/ano – é a metade da anunciada para o Porto Brasil. “A maioria dos danos [causados pela instalação de um porto] é irreversível. O nosso passivo ambiental foi muito grande, mas esse processo não precisa se repetir”, diz Asmus. Para isso, ele defende que o processo de licenciamento dos Portos seja melhorado e que se realize uma gestão integrada das atividades.

Índios aliciados

A área em que o Porto Brasil será instalado fica entre os municípios de Peruíbe e Itanhaém, em um espaço de cerca de 53 milhões de m². O terreno, talvez o último da baixada santista com acesso ao mar, onde serra e oceano se unem, é justamente o ponto inicial de um embate. De um lado, LLX e Prefeitura de Peruíbe. De outro, ambientalistas, índios e Funai.

Plínio Melo, diretor-executivo da Organização Não-governamental Mongue, afirma que o terreno pleiteado pela LLX é uma grande área de litígio. Além da terra indígena – que ocupa cerca de 70% do terreno – há uma outra porção de antigo espólio requerido por cerca de 15 pessoas, e uma terceira de propriedade do Estado, onde funcionava uma antiga mineradora. “A negociação está sendo feita toda de forma virtual, porque a questão fundamental é a propriedade da terra”, diz Melo.

Desde 2002, o terreno em que estão 52 duas famílias de tupi-guaranis espera pela demarcação. Segundo a Funai, a área foi um dos primeiros aldeamentos registrados no Brasil e, apesar da característica nômade dos indígenas, o espaço nunca deixou de abrigar a etnia. “O valor histórico e antropológico [da área] é muito grande”, defende Cristiano Hutter, chefe da Funai de Itanhaém/Peruíbe.

De acordo com ele, em 2006 o Ministério da Justiça pediu que alguns detalhes da demarcação fossem revistos. Em novembro de 2007, o presidente da Funai assinou o documento final para a conclusão dos estudos e, em março, o novo documento será encaminhado para parecer do Ministério da Justiça.

Como a demarcação inviabilizaria o projeto, segundo Funai e ONGs, a LLX tem usado de estratégias questionáveis para que os índios deixem a terra. De acordo com Hutter, desde novembro pessoas ligadas ou contratadas pela empresa de Eike têm feito reuniões com os índios para tentar convencê-los a desistir da terra. Para isso, ofereceram um hotel fazenda em Itanhaém e um salário mensal. Entre essas pessoas estava até a chefe nacional dos direitos indígenas da Funai, Azilene Kaingang, exonerada recentemente do cargo. “Algumas reuniões foram feitas no meio da noite e essa história gerou briga entre as famílias”, diz Hutter.

Quem confirma a história é o pajé Txeramoy, que sempre morou na região. “Eles [LLX] ofereceram melhores condições, como ônibus, casa, uma fazenda. Os índios pediram 1 milhão [de reais], mas até agora não deram nada. Hoje a aldeia está muito misturada [entre índios e brancos], a maioria quer sair, mas eu não quero sair daqui, porque foi aqui que viveram meus ancestrais”, diz.

Como já se passaram alguns meses desde a primeira proposta da empresa, até os índios que queriam deixar a área se questionam sobre as boas intenções da empresa de Eike. Segundo Hutter, algumas famílias procuraram a Funai para declarar, por escrito, que não estão mais dispostas a negociar com a empresa. Isso foi o que fez o índio Domingos da Silva, uma das lideranças da aldeia. Em carta, Silva diz: “Sei que assinei alguns documentos e solicito e informo a Funai e o Ministério Público Federal que não estou mais participando desta negociação. Inicialmente fui aliciado […] me convenceram que eu deveria aceitar a proposta feita pela LLX […] depois de algum tempo, me arrependi”.

A denúncia do aliciamento foi feita ao Ministério Público Federal, que investiga o caso. Funai e ONGs esperam a demarcação das terras, que, apesar de darem como certa, ainda é uma incógnita. “Judicialmente é impossível que a terra não seja demarcada. Politicamente é outra história”, diz Hutter. A empresa LLX foi insistentemente procurada pela reportagem de O Eco, mas não respondeu às ligações.

Prefeitura apóia

Além do aliciamento dos índios, o ambientalista Plínio Melo questiona pontos do projeto que incluem na disputa novos adversários. Ainda sobre a questão das terras, Melo pergunta-se como a empresa conseguiu protocolar o Plano de Trabalho para elaboração do EIA-Rima junto à Secretaria Estadual do Meio Ambiente se não possui a posse da terra.

Procurada, SMA respondeu, por meio de sua assessoria, que “o comprometimento do interessado com a área onde pretende empreender deve ser comprovado quando da apresentação do EIA/RIMA. Na fase de Plano de Trabalho não há necessidade de comprovação de posse da área, pois trata-se da manifestação de intenção de elaborar estudos visando a viabilidade ambiental do empreendimento”.

Melo também questiona a possível construção de um canal para atingir o calado necessário, a forma como a produção do porto será transportada para os grandes centros – já que as rodovias e ferrovias do entorno não suportariam a demanda – e o comportamento da empresa em relação ao andamento dos trabalhos. “O projeto é muito inconsistente, a empresa demonstra total irresponsabilidade. Dependendo do interesse do momento eles dizem um número, geração de 30 mil, 10 mil, 15 mil empregos. Para uns eles falam que vão construir o canal, para outros falam que não. Mudam de discurso conforme o interesse e o interlocutor. Sinceramente, não sei se a prefeitura está agindo por incompetência ou por má fé”, diz o ambientalista.

Apesar das inúmeras críticas, o poder municipal de Peruíbe apóia a construção do Porto. No dia 21 de fevereiro, a prefeita Julieta Omuro encontrou-se com o empresário Eike Batista para discutir o projeto e entregou uma carta de intenções à LLX em que se mostra favorável ao projeto, desde que a empresa demonstre que ele é “viável”. “Eu tenho preocupação com as questões ambientais e sociais. Quero transparência na implementação do empreendimento”, disse a prefeita na ocasião.

Segundo o assessor direto de Julieta, Sílvio Siqueira Junior, as críticas feitas ao empreendimento são reflexos de uma “visão restrita” do processo. “A prefeitura tem que se posicionar como um todo, tem que beneficiar o maior número de pessoas. O investimento no projeto será de 4 bilhões de reais. O orçamento de Peruíbe é de 106 milhões. Imagine quantos orçamentos não cabem neste valor”, disse. E a questão ambiental? “Ainda é prematuro dizer o quanto vai impactar”, responde Siqueira.

Até o dia 19 de março, o grupo de trabalho criado pela Prefeitura para avaliar a viabilidade do projeto deve apresentar um relatório com as prioridades e ações a serem implementadas. A idéia da prefeitura é fazer com que a empresa desde já se aproxime e invista na cidade, com a criação de centros de capacitação, por exemplo. “Se, no final, a vinda do Porto não der certo, pelo menos eles já fizeram algo pela cidade”, defende.

Quando questionado sobre a estratégia de Eike para que os índios deixem a terra, o assessor admite que “talvez o processo tenha sido equivocado”, mas defende que a saída dos índios não representaria muito para o local, já que a área é insalubre. Siqueira afirmou que há, sim, o interesse em preservar a cultura indígena, mas não especificou o modo como esse processo se daria. O assessor também afirma que o poder público municipal não tem condições de fiscalizar a área e que há um grande risco de ela se tornar uma favela, já que o número de invasões cresce a cada dia.

“O Eike por si só já gera polêmica e sabemos que ele não é nenhum santo […] Ele é audacioso e imprevisível, por isso a prefeitura quer estar no comando das negociações. O empreendimento é polêmico, é tudo o que você imaginar, mas temos de dar um crédito de confiança para que ele mostre desde já por que veio”, disse Siqueira.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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