Nos últimos dias de 2004, enormes ondas atingiram onze países e ilhas costeadas pelo Oceano Índico e deixaram quase 300 mil mortos na Ásia. Um pouco antes, no início deste mesmo ano, o Brasil sentiu as consequências do primeiro furacão a ser registrado no Atlântico Sul, afeando Santa Catarina e nordeste do Rio Grande do Sul. Quatro anos depois, enchentes e deslizamentos de terras atingiram Blumenau, Joinville e pequenos municípios catarinenses.
Mas o que há de comum entre esses episódios, além de serem exemplos de eventos climáticos extremos? Todos estão retratados no documentário Percepção de Risco – A descoberta de um novo olhar, dirigido por Sandra Alves e Vera Longo, cineastas e sócias na produtora Vagaluzes. Em pouco mais de uma hora, o filme apresenta entrevistas com especialistas em clima, meteorologia, psicologia, antropologia e membros do governo estadual.
O produto é uma das ferramentas do projeto homônimo criado pela Defesa Civil de Santa Catarina em 2007. “As pessoas no Brasil costumam pensar que os desastres nunca vão ocorrer com elas, mas sempre com o vizinho de porta, de estado, de país. A ideia era mudar esta concepção e aumentar a percepção de riscos. Boas ações os reduzem, queremos que elas vejam isso”, afirma o major Márcio Luis Alves, à frente da iniciativa.
Por enquanto, essa postura não parece ter alcançado os habitantes das regiões atingidas pelos deslizamentos de novembro passado. Segundo Lucia Sevegnani, pesquisadora de Ecologia de Florestas na Universidade Regional de Blumenau, o que se vê sete meses após a tragédia são pessoas querendo simplesmente apagar as cicatrizes repetindo os mesmos erros.
“Não aprendemos as lições. Esquecemos as informações científicas disponíveis e ainda usamos técnicas erradas de ocupação do solo. A base para um novo desastre está sendo preparada”, lamenta Savegnani. Segundo ela, é preciso chamar a atenção da população urgentemente. O filme pode ser uma boa ferramenta para isto.
Com recursos próprios, a Defesa Civil contratou uma equipe por dois anos para produzir o documentário e outros materiais. No começo, a rotina foi baseada em pesquisas sobre eventos climáticos e alternativas de prevenção. Em seguida, chegou o momento de colocar a mão na massa e elaborar kits para escolas públicas estaduais. Eles serão entregues a partir de agosto. Dentro, além do documentário, haverá um livreto para professores, com informações sobre o que são desastres, vulnerabilidade e alternativas de reação, e uma história em quadrinhos criada pelo cartunista Samuel Casal.
“Estamos dando uma oportunidade para que a sociedade conheça os riscos e faça uma análise. Precisamos prevenir, preparar a comunidade e ter capacidade de reagir a desastres. A cada dólar que se gasta em prevenção, economiza-se sete em resposta”, avalia Alves. O major também afirma que, a partir deste trabalho, será mais fácil notar preocupações de habitantes com a segurança, preservação das florestas e ocupação do solo. Para isso, não vai faltar divulgação: algumas escolas municipais, que inicialmente não receberiam os kits, já encomendaram exemplares à Defesa Civil. É o caso de instituições em Blumenau, uma das cidades que mais sofreram com os deslizamentos de terras no último ano.
Mais palavras, menos imagens
O filme tem poucas imagens de eventos climáticos extremos, traz apenas cenas gravadas pelo governo de Santa Catarina à época das inundações de 2008. Mas essa não era mesmo a intenção, explica Sandra Alves, que ao lado de Vera é também coordenadora-executiva do projeto. “Não mostramos imagens de desastres como um tsunami, por exemplo. No Brasil não há discussões sobre este tema. Não queríamos criar um sensacionalismo, quisemos propor uma reflexão, mostrar que as encostas são perigosas e o porquê disso. É para sensibilizar”, assegura.
O documentário atinge esse objetivo logo nos primeiros minutos. Com a ajuda de personalidades como o jornalista Washington Novaes, o climatologista Carlos Nobre e a ambientalista Mirian Prochnow, as diretoras fazem um apanhado acerca das mudanças climáticas e discutem questões importantes como padrões insustentáveis de consumo, saneamento básico e escassez de água.
“Normalmente, a solução definitiva para prevenir riscos é a realocação. Mas sei que isso não é imediato. Em curto prazo, é preciso que haja sistemas de alertas eficientes de deslizamentos de encostas, inundações e enxurradas. Além disso, os locais para receber as pessoas precisam estar preparados adequadamente. Por último, o governo não deveria permitir a expansão urbana desordenada em áreas de risco”, explica Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
De acordo com o cientista, é preciso que a sociedade brasileira abra os olhos para a sequência de eventos climáticos que virá pela frente e para a qual não está preparada. “O rio Amazonas acabou de bater o recorde de seu nível mais alto. Isso é uma reflexão do aquecimento global”, afirma. Para ele, os problemas que aconteciam uma vez por século agora vão passar a ocorrer a cada década, ou pior, de cinco em cinco anos.
Questionado pela reportagem sobre se observa movimentos governistas nacionais ou estrangeiros de embate ao ritmo alucinante de desastres, Nobre é realista. Para ele, o mundo se divide entre desenvolvidos e em desenvolvimento. Os primeiros já estão se preparando para a maioria dos acontecimentos climáticos extremos. “Mesmo assim houve o Katrina (furacão que atingiu Nova Orleans, cidade norte-americana, em 2005, e deixou centenas de pessoas mortas e outras milhares desabrigadas), o que mostra que há fragilidades imensas na defesa civil em todo o mundo”, diz.
Quando o assunto são as nações em desenvolvimento, no entanto, o caso é mais grave. No filme, o pesquisador do Inpe informa que, caso houvesse sistema de alerta em Bangladesh durante o tsunami de 2004, milhares de pessoas poderiam ter sido salvas. Lá, as ondas demoraram quatro horas para chegar. Já a capacidade de resposta de países como o Brasil é muito pequena. “Nós reagimos ao evento, e não nos precavemos. O desafio é duplo”, completa.
Com o apoio do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade de Santa Catarina e da Estratégia Internacional para Redução de Desastres das Nações Unidas, o projeto promete alçar voos mais longos. Apresentado em São Paulo no mês de junho, o documentário espera uma oportunidade para ser exibido no Rio de Janeiro e, muito em breve, estará no Youtube e no site da campanha.
Atalhos:
Percepção de Risco
Samuel Casal
Saiba mais:
O trágico código ambiental catarinense
Santa Catarina: tragédia esperada
Brasil ignora desastres naturais
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