Reportagens

Dúvidas radioativas

Audiências públicas do licenciamento ambiental da usina nuclear de Angra 3 não respondem sobre eficiência de plano de fuga da população e alocação de rejeitos radioativos.

Felipe Lobo ·
27 de março de 2008 · 17 anos atrás

O processo de licenciamento ambiental da usina nuclear de Angra 3 teve novos capítulos nos dois últimos dias. Na terça-feira, os habitantes do município de Angra dos Reis (RJ) puderam conhecer o projeto com maiores detalhes e fazer perguntas aos órgãos fiscalizadores, empreendedor e empresa responsável pelo Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo relatório (EIA-Rima). Depois, na quarta, foi a vez de Paraty sediar a audiência pública e questionar os pontos positivos e negativos da obra. Nas duas reuniões, muitas camisetas em favor dos investimentos da Eletronuclear em contraponto à oposição ativa do Greenpeace e da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (SAPÊ).

Marcado para as 18 horas do dia 25, o encontro no Iate Clube de Aquidabã, em Angra dos Reis, começou com uma hora de atraso. Enquanto a população local chegava, já era possível notar o clima daquela noite: faixas com os dizeres “Sim para Angra 3”, levadas por diferentes comunidades, eram estendidas nas laterais do auditório. Curiosamente, todas pareciam confeccionadas no mesmo local. Não foi difícil encontrar pessoas favoráveis ao empreendimento. “Ninguém segura o progresso, é irreversível, independente das audiências públicas”, disse Bermeval de Oliveira, presidente da Associação de Moradores de Cantagalo. Questionado sobre os riscos de um acidente nuclear, ele usou um argumento bastante ouvido nas duas noites. “Eu saio da minha casa e já estou correndo perigo. Quando eu dirijo, posso bater o carro a qualquer momento”, afirmou.

Aliás, sua postura ganhou eco inclusive no prefeito da cidade, Fernando Jordão (PMDB). “Até dentro da minha própria casa eu corro risco”, disse, para depois completar, “todos os impactos ambientais já foram feitos com as construções de Angra 1 e 2. Na época, ninguém perguntou se queríamos ou não as usinas. Agora, está na hora de conseguir o apoio da Eletronuclear para a saúde, educação e infra-estrutura da cidade”. Outro morador da região, Claudio Nunes da Silva apresentou argumento um pouco mais sóbrio a respeito de sua postura favorável ao empreendimento. Para ele, que já trabalha em Angra 2 e é prestador de serviços da Eletronuclear, o controle de acidentes dentro da usina é rígido e os funcionários bem treinados.

Sob forte tempestade, os interessados chegavam cada vez em maior número, até completar as 311 pessoas presentes. Entre elas, porém, também havia aquelas que estavam em dúvida. Era o caso, por exemplo, de José Carlos Tavares, presidente da Associação de Moradores de Junqueira e Mangaratiba. Apesar de vestir a camiseta com a bandeira da Usina de Angra 3, ele não estava certo sobre sua posição no início da reunião. “Não escutei nada sobre a obra ainda. Só estou com a camisa porque vim no ônibus contratado pela Eletronuclear junto com o pessoal”, disse. Procurado no fim de audiência, Tavares não foi encontrado para dar a sua opinião após as mais de seis horas de encontro.

A estrutura

Todos os atores de Angra 3 estavam lá. Em princípio, houve exposições do coordenador do EIA, Alexandre Nunes, membro da empresa vencedora da licitação encomendada pela Eletronuclear (MRS Estudos Ambientais LTDA), e da própria estatal. Depois, o diretor interino de Licenciamento do Ibama, Walter Muchagata, presidiu a mesa de debate, acompanhado por Nunes, Luis Soares, diretor técnico da empreendora, e Laércio Vinhas, diretor de Radioproteção e Segurança Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O órgão é responsável por autorizar e fiscalizar as licenças e vidas úteis de quaisquer materiais de radiação no Brasil, desde hospitais até usinas.

Na primeira audiência, a procuradora do Ministério Público Federal Ariane Alencar completou a mesa de debate. Sua presença foi fundamental porque, há alguns meses, o MP entrou com uma ação na justiça para inviabilizar as audiências públicas realizadas em junho do ano passado nos municípios de Angra dos Reis, Paraty e Rio Claro. Depois do parecer positivo do juiz, o Ibama decidiu não recorrer da decisão e realizar os novos encontros. “Apesar de que o instituto considerou válidas as reuniões anteriores”, fez questão de frisar Muchagata.

O motivo da ação, como explicou Ariane, foi o fato de que as cópias do EIA-Rima não estavam disponíveis para consulta pública no prazo mínimo estabelecido por Lei, assim como os dias, horários e locais dos encontros. “Verificamos que os editais, na época, não estavam de acordo com a norma. Mas, desta vez, pelo visto, tudo está ocorrendo corretamente. Pelo menos não tivemos qualquer reclamação”, disse.

Depois das apresentações iniciais, as audiências esquentaram com os debates e dúvidas dos presentes. Ademílson Vidal, morador de Angra e pré-candidato à prefeitura, se dizia a favor das obras, mas levantou questionamentos que deixariam qualquer pessoa de cabelo em pé. “Estou decepcionado com as palestras. Percebi que há uma falha clara no plano de segurança. Por exemplo, ninguém falou dos ilhéus (habitantes das muitas ilhas de Angra), que são 60% dos cidadãos do município. E, caso ocorra um acidente, quem vai nos atender? Não temos médicos de referência no tratamento de problemas oriundos da radiação”, disse, preocupado. Suas perguntas ficaram sem respostas. Elas não foram lidas pelo mediador porque Vidal já havia se retirado do auditório.

A oposição estava lá

Apesar do tom moldado para enaltecer os benefícios da energia nuclear, a oposição se fez presente na audiência de Angra dos Reis. Além de alguns habitantes, as principais figuras contrárias às obras do terceiro núcleo da Central Almirante Álvaro Alberto, na praia de Itaorna, foram os membros do Greenpeace (que vão participar de todas os encontros) e da ONG local SAPÊ. Centrados em questionar as virtudes da energia nuclear, os ambientalistas tinham em mãos estudos recentes sobre o impacto negativo de plantas térmicas movidas a urânio. Um dos argumentos usados pela associação internacional, por exemplo, leva em conta as emissões indiretas de gases estufa realizadas pela energia nuclear.

De acordo com Beatriz Carvalho, coordenadora do programa anti-nuclear do Greenpeace, as usinas emitem maior quantidade de carbono equivalente para a atmosfera do que fontes como eólica e solar, caso todo o processo seja levado em consideração. Em outras palavras, desde a etapa de mineração até a geração de eletricidade propriamente dita, uma usina como Angra 3 contribui com importante soma para o aquecimento global.

Alguns temas foram, como era de se esperar, os mais discutidos nos dois dias de audiências. Entre eles, estavam a destinação definitiva dos rejeitos radioativos, o potencial risco de acidentes, as barreiras de proteção e a eficácia do plano de evacuação de pessoas. “A proposta é absolutamente ineficiente, basta olhar a estrada para chegar aqui. É uma rota só. Hoje, vindo para cá, percebemos várias obras ao longo da rodovia e alguns deslizamentos de terras. Quer dizer, é impossível evacuar a população com uma via de fuga e uma via de acesso que é absolutamente vulnerável”, disse Beatriz.

O que mais chamou a atenção no primeiro dia, no entanto, foram os discursos de Oderson Alves Ferreira, presidente da Associação de Vítimas do Acidente com o Césio 137, em Goiânia, e Rafael Ribeiro, coordenador da SAPÊ. Com o microfone em punho e virado para o plenário, Alves contou um pouco de seu drama com o acidente nuclear de vinte anos atrás, causado pela exposição de um aparelho usado para radiação em uma clínica da cidade. “O material, que é composto de ferro, chumbo e metal, foi abandonado. Dois catadores o pegaram e levaram para o ferro velho. Dentro daquele cilindro tinha uma cápsula de Césio 137, com apenas 19 gramas. Elas renderam 13 toneladas e meia de rejeitos radiotivos, porque os animais, as nossas casas, e as próprias pessoas viraram vetores de radiação”, disse. Emocionado, completou. “Será que vale a pena correr o risco?”.

Pouco depois, em pergunta direcionada à mesa, Ribeiro pediu maiores decisões antes da emissão de qualquer licença prévia, já que o EIA só define quais programas de monitoração ambiental deverão ser feitos, e não como serão estruturados. Além disso, sugeriu novos encontros para divulgar as decisões do Ibama à população e criticou o lixo radiotivo. “Trata-se de um passivo ambiental que historicamente não tem solução. No caso brasileiro isso é mais grave, porque além de não ter solução, também não tem medidas eficazes e efetivas para se fazer o acondicionamento da produção”, diz.

Paraty

Na quarta-feira, a Casa da Cultura de Paraty recebeu as mesmas palestras e debatedores. A população é que mudou um pouco. Mas não muito, já que moradores de Angra foram levados para o auditório lotado. Na ocasião, os temas mais contundentes vieram à tona, assim como a fragilidade das respostas da Eletronuclear, CNEN e Ibama. A Procuradora da República Ariane Alencar, por exemplo, abriu sua rodada de perguntas com uma dúvida de todos: “Nós recomendamos que, antes da emissão de qualquer licença, o local escolhido para a destinação final dos rejeitos radioativos seja definido. Por que ainda não temos essa confirmação?”. Como foi costume nas duas rodadas de audiências públicas, os membros da mesa se saíram com afirmações evasivas e postergadas para o futuro. “O Brasil já tem condições de criar depósitos definitivos de baixa e média radioatividade. Mas como há outras aplicações para os rejeitos, como indústrias e hospitais, é preciso reestruturar um local adequado para todos os usos. Teremos em 2013”, disse Laércio Vinhas, da CNEM.

Até lá, no entanto, Angra 3 já estará em fase de construção, caso os prazos sejam cumpridos. Paulo Carneiro, assessor da presidência da estatal responsável pelo empreendimento, também foi categórico sobre os lixos históricos das outras duas usinas, já em operação. Até hoje, disse, há apenas o equivalente a duas quadras de futebol de salão com o lixo radiotivo, todos em tambores. “O problema é que ninguém sabe, até hoje, o que esse passivo pode causar para as populações do entorno e também para as próximas gerações. Não há estudo sobre isso”, afirma Beatriz Carvalho.

Um dos pontos mais citados pelos habitantes da região onde se pretende instalar a usina foi a migração de trabalhadores de muitos estados brasileiros. Apesar dos empreendedores garantirem que a maioria absoluta da mão-de-obra será local, o risco de ocupação desordenada em encostas e áreas protegidas deve aumentar bastante.

Questões sobre o Plano de Fuga também foram recorrentes, e novamente ganharam explicações morosas, desta vez da Eletronuclear. “Ele só será acionado em situação de urgência, já que uma falha é contida nas barreiras seguintes. O plano obedece a algo mais amplo, é discutido com a prefeitura e demais autoridades e tem atribuições de realizar exercícios para a população removida”, conta Luis Soares, que não conseguiu explicar os detalhes das ações caso um grave problema aconteça.

Nestas quinta e sexta-feira, toda a trupe do Ibama, Eletronuclear, CNEM, MRS e Greenpeace segue para as audiências públicas de Rio Claro e Ubatuba, em São Paulo. De acordo com Walter Muchagata, desta vez serão as últimas reuniões para o órgão federal decidir a favor ou contra a emissão da Licença Prévia. Mas, como este é também o derradeiro momento em que os moradores das regiões afetadas terão participação efetiva no processo, as dúvidas sobre a viabilidade ambiental e social de Angra 3 devem persistir.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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