Pronto para ganhar as páginas da revista Conservation Biology, um estudo inédito sugere que o aquecimento global provocará a migração de aves do Cerrado para regiões do Sudeste, justamente onde a urbanização e a agricultura deixaram poucas áreas naturais intocadas. O possível movimento eleva o risco de extinção de espécies e pede a criação e consolidação preventiva de áreas protegidas.
À frente da pesquisa, Miguel Angelo Marini, do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (UnB), explica que o estudo pesou mudanças futuras de temperatura apontadas pelo painel científico das Nações Unidas para projetar o deslocamento de 26 aves do Brasil central.
Conforme os dados de especialistas, a elevação média na marca dos termômetros regionais poderá ser de 3,3ºC, mas o maior impacto se daria pela variação dos “extremos climáticos”. As estimativas apontam que as máximas no Cerrado subiriam de 34,1ºC para 38,2ºC, enquanto as mínimas passariam de 13,5ºC para 17,1ºC. Isso tudo no próximo século.
“As temperaturas máximas preocupam mais, pois muitos animais não conseguirão viver em locais tão quentes. Ainda não se sabe exatamente em que nível, mas o calor poderá prejudicar a reprodução, a alimentação e outros processos vitais das espécies”, comentou Marini.
Frente a essa ameaça, migrar para zonas mais frias será uma possível alternativa de sobrevivência, conforme o professor da UnB. E para fugir do calor excessivo, aves do Cerrado seguiriam em direção ao Sudeste, aponta o estudo. “Aves poderão se deslocar para uma região muito destruída, com uso do solo muito intenso, a centenas de quilômetros de onde estão hoje”, apontou o pesquisador.
Quatro espécies seriam especialmente afetadas pelo calor, tornando-se suscetíveis a deslocamentos de centenas de quilômetros: codorna-pequena (Taoniscus nanus), codorna-mineira (Nothura minor), capacetinho-do-oco-do-pau (Poospiza cinerea) e jacu (Penelope ochrogaster). “Espécies com menor distribuição no Cerrado possivelmente serão as mais afetadas no futuro. Ou seja, quem é raro hoje, pode se tornar ainda mais escasso no futuro”, ressaltou Marini.
Além disso, os deslocamentos de aves estariam atrelados a mudanças mais profundas na própria área de abrangência do bioma, comentou o pesquisador. Conforme apontou o estudo Consequências das mudanças climáticas globais na distribuição geográfica de espécies arbóreas de Cerrado (veja abaixo), não se descartam migrações da própria vegetação para áreas do Sul e Sudeste. “Teoricamente, mais regiões de São Paulo e de Minas Gerais, inclusive de Mata Atlântica, tenham no futuro um clima bom para o Cerrado”, disse.
Extinções locais
Observando a pesquisa liderada pelo professor da Universidade de Brasília, o especialista em Biodiversidade da Conservação Internacional (CI), Cristiano Nogueira, é cauteloso ao comentar os possíveis efeitos do clima na dispersão de aves no Cerrado. Segundo ele, a distribuição de espécies em um território depende de um longo processo evolutivo. Para o especialista, as condições climáticas e ambientais poderão se deslocar geograficamente, mas não necessariamente as espécies listadas no estudo.
“Não é apenas o clima que determina a distribuição das espécies. O cenário pode ser ainda mais drástico, com extinções locais sem a colonização de novas áreas. Até porque o Cerrado do Sudeste acabou em termos de paisagens naturais. O futuro não é muito promissor”, completou.
Necessidade de conservação
Reforçando que o deslocamento de aves do Cerrado é uma possibilidade frente às mudanças do clima, Miguel Marini comenta que ampliar a proteção do bioma é essencial. Menos de 7% do Cerrado está dentro de áreas de proteção integral e de uso sustentável (maioria), enquanto a recomendação mundial é de ao menos 10%.
“O bioma tem poucas unidades de conservação, concentradas em sua porção norte. Por isso precisamos criar grandes reservas no Sudeste e permitir que os animais se dispersem com a formação de corredores, alem de tornar o uso do solo menos impactante e incentivar a produção com agroflorestas”, ressaltou. “A manutenção e ampliação do Parque Nacional da Serra da Canastra, por exemplo, é fundamental”, arrematou.
O parque protege vegetação típica de transição entre o Cerrado e a Mata Atlântica. Em novembro passado, a Comissão de Meio Ambiente da Câmara aprovou corte de 48 mil hectares (25% de sua área), beneficiando mineração e pecuária. A proposta tramita agora na Comissão de Constituição e Justiça.
Cristiano Nogueira, da CI, também aposta em mais proteção ambiental para regiões austrais do Cerrado. Seria um meio para se evitar a extinção de espécies, mesmo antes de possíveis mudanças do clima. “Sem isso, muitas espécies terão sumido do mapa antes mesmo do aumento da temperatura. Me preocupo agora muito mais com o desmatamento do que com as alterações climáticas, mesmo que esses problemas estejam intimamente ligados”, comentou.
Doutor em Ecologia, Nogueira avalia que “espécies de distribuição restrita”, como muitas aves do Cerrado, deveriam ser alvos prioritários para conservação, pois são mais sensíveis à variação dos termômetros e aos efeitos colaterais do desmatamento e de obras de infraestrutura, por exemplo. “Mais importante do que isso, elas representam processos evolutivos únicos. Infelizmente, pouca gente enxerga isso. O foco das ações de conservação se restringe geralmente a espécies ameaçadas”, comentou.
Saiba mais:
Canastra a um passo do recorte Canastra: parque ameaçado
Mordida de quase 10 milhões de hectares
País atingirá metas de conservação?
Leia também
Obra milionária ameaça sítio arqueológico e o Parna da Chapada dos Guimarães, no MT
Pesquisadores, moradores e empresários descrevem em documentário os prejuízos da intervenção no Portão do Inferno →
Soluções baseadas em nossa natureza
Não adianta fazer yoga e não se importar com o mundo que está queimando →
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →