Ostra era com ele mesmo. Residente em Florianópolis, o advogado Felipe Capela não dispensava uma porção fresquinha do molusco, ainda com o gosto do mar. Conhecia bem a qualidade e o valor das ostras comercializadas na Ilha de Santa Catarina. Só que em março do ano passado, Felipe levou um susto. No dia seguinte a um happy hour muito bem abastecido pela iguaria, descobriu que a venda estava proibida em boa parte da cidade. As autoridades sanitárias anunciaram que o fenômeno da maré vermelha teria contaminado as culturas de ostras e mexilhões em diversos trechos, logo no estado responsável por 90% da produção nacional. “Não deu outra. Passei mal até dizer chega”, lembra o advogado que, neste ano, teve mais sorte. Já de olho em uma possível manifestação do problema, os especialistas foram rápidos e descobriram no início de abril uma nova proliferação de algas tóxicas no litoral catarinense.
A maré vermelha é resultado da hiperconcentração de microalgas da espécie Dynophisis acuminata – o que explica a cor avermelhada nas águas. Elas estão sempre presentes no plâncton marinho e se multiplicam ao encontrar condições ideais, como calor e nutrientes. Na verdade, a mancha pode adquirir outras colorações – marrom, laranja, roxo ou amarelo – de acordo com a espécie. Uma vez que a água nem sempre fica vermelha, o termo tem sido substituído por “floração de algas nocivas”. A quantidade elevada delas pode tornar impróprio, principalmente, o consumo de ostras e mexilhões. “As duas espécies demoram a se livrar das toxinas liberadas pelas algas por causa do mecanismo de filtrar água e partículas,”, explica Roni Barbosa, diretor de Qualidade e Defesa Agropecuária de Santa Catarina. De acordo com a toxicidade, peixes também são contaminados. No ano passado, uma grande maré vermelha matou 50 toneladas de mexilhões e peixes na Baía de Todos os Santos, em Salvador.
A Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap), órgão coordenador do Programa Nacional de Controle Higiênico Sanitário de Moluscos Bivalves (PNCMB), liberou há poucos dias a venda e o consumo de ostras e mexilhões em trechos da Baía Sul e da Baía Norte, na Grande Florianópolis. As algas acabaram se dissipando com a chegada do frio e do vento forte. Mas a proibição segue mantida para os mexilhões da Enseada de Zimbros, em Bombinhas, litoral norte do estado, mesmo com a liberação para as ostras. Em geral, aquela espécie costuma reter as toxinas por mais tempo. “A ostra é mais seletiva”, explica Barbosa. A expectativa é de que, nos próximos dias, novos testes possam autorizar sem restrições a atividade dos maricultores da região. “As algas tóxicas estão dispersando, acreditamos que em pouco tempo tudo se resolva”. O especialista pondera, no entanto, que é difícil prever com exatidão quando vão embora, já que são levadas pela corrente marítima.
Prejuízos
Os produtores dizem que ainda é cedo para contabilizar o prejuízo com a maré vermelha. Muitos ainda fazem o acerto das perdas do ano passado, quando o fenômeno veio forte. Segundo João Guzenski, coordenador de projetos de maricultura e pesca da Empresa de Pesquisa e Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), naquele período a comercialização do produto reduziu quase pela metade. “Mesmo depois da liberação, muita gente ficou com medo de consumir. As pessoas não confiam no diagnóstico. Foi uma pena, porque nosso controle sempre se manteve rígido, sem qualquer risco”. As fazendas de ostras de José Marcati, localizadas nas áreas de Cacupé e Santo Antônio de Lisboa, em Florianópolis, não foram atingidas desta vez. Mesmo sentindo os efeitos indiretamente, por conta do receio da população, ele vê com bons olhos a linha dura das autoridades. “A rédea curta com a qualidade do produto é um ponto muito positivo. Mostra que estamos cada vez mais na dianteira quando o assunto é controle sanitário”.
De acordo com o secretário municipal de saúde de Florianópolis, Valdir Ferreira, doze pessoas foram internadas até agora na capital pela ingestão de mexilhões contaminados. Em Bombinhas, não há registro de intoxicação até o fechamento desta reportagem. O monitoramento na área é realizado com regularidade pelos pesquisadores do Centro de Ciências e Tecnologias da Terra e do Mar (CTTMar), da Univali. As conseqüências da ingestão de moluscos contaminados são dores abdominais, diarréia e vômito. Os médicos recomendam repouso por até uma semana e a ingestão de muito líquido e alimentos leves. Os efeitos até são brandos se comparados aos da alga Gymnodinium catenatun, que pode causar paralisia do sistema muscular e parada respiratória em casos extremos. Mas a espécie nunca foi registrada na região.
Os estudiosos acreditam que o aquecimento global possa ter relação direta com a maior freqüência da maré vermelha nas últimas temporadas. “O aquecimento global tem relação com as mudanças contínuas no deslocamento das correntes marítimas do sul do continente. É possível que as águas que contenham muitas dessas algas tóxicas estejam chegando até aqui e aumentando essa concentração. O aumento da temperatura das águas é favorável, além disso, pra a reprodução desses organismos”, explica Guzenski. Ele também aponta a poluição como responsável. “A poluição tem muitos nutrientes que as algas adoram para se proliferar”.
O fenômeno ocorre nas águas do mundo inteiro onde há o cultivo da maricultura, a exemplo do Japão e do Uruguai. No Brasil, há relatos desde o início do século passado. Guzenski conta que os antigos pescadores da Ilha de Santa Catarina já sabiam lidar com a maré vermelha de uma forma muito peculiar. “O manezinho da ilha sabia que entre março e maio era preciso tomar uma cachacinha com o mexilhão para matar o veneno”. De fato, as pesquisas mostram que não existe uma época certa para a floração das algas tóxicas, porque dependem das correntes marítimas – além de não haver risco para os banhistas. Para ele, a disparada do consumo de ostras e mexilhões a partir dos anos 90 deixou os estudiosos mais sensíveis à questão. “Ainda bem, não? Estamos seguros” .
Veja apresentação sobre a floração de algas nocivas.
* Fernanda Martorano nasceu em Florianópolis e é jornalista no Rio de Janeiro.
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