Foto: Aldem Bourscheit
Mercedes em seu escritório na Universidade de Brasília
|
Ainda na mesma “batcaverna” no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília, a premiada pesquisadora Mercedes Bustamante recebeu novamente a reportagem de O Eco. Com mais de 15 anos de estudos dedicados ao Cerrado, nesta entrevista ela levanta algumas lebres sobre o lançamento e funcionamento do novo plano oficial para salvar o que resta do bioma, lançado na última quinta (10). “O monitoramento foi um avanço que precisa ter efeitos práticos, não só observar a degradação”, diz.
O início do monitoramento continuado do Cerrado mostra que o governo acordou para a degradação do bioma ou ele terá o mesmo destino da Amazônia, com destruição bem vigiada pelos satélites?
Mercedes Bustamante – Sem dúvida é um avanço quando um governo lança um plano e reconhece publicamente que o Cerrado precisa de ajuda. Mas é preciso lembrar que a Comissão Nacional do Cerrado, lançada pelo Lula em 2005, morreu de inanição porque o Ministério do Meio Ambiente não convocou nenhuma reunião do grupo depois de 2006. Ele reunia pesquisadores, ministérios, entidades civis e outros setores para costurar políticas de uso sustentável do bioma. Por casos como esse, recebo com cautela o novo plano oficial, que sequer foi discutido entre os atores antes envolvidos na Comissão Nacional. Conheci seu conteúdo junto com a imprensa. Um plano com propostas tão amplas obviamente não será executado sem grande articulação entre todos os envolvidos no uso e preservação do Cerrado. Hoje a maioria das terras do bioma é privada. Logo, o desmate é impulsionado por capital privado. Também há muita produção de carvão para siderurgia, sem contar as realidades socioambientais muito complexas. Qual o espaço para toda essa articulação? A condução oficial do novo plano para o Cerrado repete histórias que não tiveram sucesso. Em 2002, já se sabia que 42% do Cerrado tinham sido desmatados. Logo, esse plano já poderia ter sido lançado, mas sempre falta vontade política, associada à baixa divulgação científica sobre a importância do Cerrado. Enfim, o monitoramento foi um avanço que precisa ter efeitos práticos, não só observar a degradação.
A degradação do Cerrado já emite tanto Dióxido de Carbono (CO2) quanto a da Amazônia? Que influência isso deveria ter nas políticas de desenvolvimento? E nos debates internacionais?
Mercedes Bustamante – Antes o Cerrado era visto como uma formação com baixa quantidade de biomassa, mas ele é uma savana arbórea, diferente da savana africana, onde predominam gramíneas. Na Amazônia, parte das árvores derrubadas serve à indústria madeireira. No Cerrado, o que não vai para carvoarias é queimado. Tudo vira Carbono. Daí esse grande impacto no balanço nacional de emissões de gases de efeito estufa. A situação se complica pela degradação de aproximadamente metade das pastagens abertas no bioma, liberando ainda mais poluição e forçando a abertura de novas frentes pelo seu não-aproveitamento. Recolocar essas áreas em condições produtivas, associando silvicultura, pastagens e grãos, é uma alternativa que aproveita um modelo bem parecido com o natural do Cerrado. No âmbito internacional, as discussões sobre clima ainda são dominadas pelas florestas tropicais, mas savanas não devem mais ser ignoradas. O Brasil não pode se basear só no debate externo, até porque a população sofrerá impactos do aquecimento global bem mais cedo em áreas relevadas pelo poder público, envolvendo saúde, qualidade e disponibilidade de água. Não podemos depender de consciência ambiental importada. Terá de faltar água no Palácio do Planalto para que o governo desperte para a situação do Cerrado?
Observando o mapa da degradação do Cerrado (veja aqui), quais os pontos que mais lhe preocupam?
Mercedes Bustamante – Nota-se claramente duas grandes frentes de desmatamento avançando pelo centro do Maranhão e oeste da Bahia, envolvendo municípios com baixo IDH. Principalmente nessas áreas e também ao sul do bioma, na região historicamente mais degradada, são necessários projetos de restauração e de conservação do Cerrado. Sem falar que regiões com vulnerabilidade social elevada precisam de uma intervenção governamental que leve alternativas reais de desenvolvimento. Um dos grandes atrativos do Cerrado para a agropecuária é que ele esteve por muito tempo fora dos debates conservacionistas. E ainda hoje, não conseguimos nem aprovar a PEC que tornaria o bioma e também a Caatinga patrimônios nacionais. Nesses momentos, me pergunto onde está a bancada parlamentar do Cerrado? O bioma abriu os braços para receber o governo (com a construção de Brasília), mas esse nunca abriu os braços ao Cerrado.
O Ministério do Meio Ambiente quer cumprir metas internacionais e proteger 10% do Cerrado, em grande parte com reservas extrativistas. Isso é possível e suficiente para garantir a sobrevivência do bioma?
Mercedes Bustamante – Tão importante quanto esse índice é saber onde estas áreas protegidas estarão distribuídas, se abrigarão as diferentes fisionomias do Cerrado. Unidades de Conservação de proteção integral, como parques nacionais, geram tanto conflito com comunidades tradicionais como uma hidrelétrica, por exemplo, pois também são áreas que não poderão mais usar. E se criarem reservas extrativistas, será necessário acompanhamento contínuo, bons planos de manejo e viabilidade de mercado para a produção local. Além da proteção oficial, será importante mapear as reservas legais em propriedades particulares e recompô-las quando for necessário, formando corredores ecológicos. Isso tem um complicador a menos, pois no Cerrado a maioria dos proprietários de terras tem CNPJ, endereço fixo. Meios econômicos para tanto podem ser articulados. Afinal, se reduzimos o Imposto sobre Produtos Industrializados para vender veículos e eletrodomésticos sem exigir nenhuma contrapartida ambiental dessas empresas, porque não construir algo semelhante para a restauração e preservação do Cerrado?
Saiba mais:
Em dívida com o Cerrado - Reportagem detalha os números recentes do desmatamento no Cerrado e os planos de monitoramento do Governo.
Defensora do Cerrado – Entrevista com Mercedes Bustamante
Leia também
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →
Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia
Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local →