Puerto Quijarro (Bolívia) – A exploração de minérios no sudeste da Bolívia, que fez a região virar o Pólo de Desenvolvimento do Sudeste Boliviano, está colocando em risco um dos locais mais bem conservados do Pantanal, protegido pelo Parque Nacional Otuquis. Ali, já foram iniciadas obras para exploração minerária do morro Mutún, e, com elas, um pacote de empreendimentos potencialmente lesivos ao bioma, como a reabertura de estradas, construção de uma ferrovia, de um canal e de um porto no rio Paraguai, entre outras intervenções capitaneadas pelo IIRSA, projeto que pretende integrar entreportos sul-americanos atravessando as principais áreas naturais do continente em 10 anos.
Entre as obras bolivianas, um dos casos mais preocupantes é de uma estrada que já começou a ser revitalizada entre Puerto Suárez e Puerto Busch para escoar a produção de minério boliviana. O detalhe é que ela passa por dentro do parque nacional e está sendo tocada sem qualquer respeito à autoridade ambiental local.
Pantanal boliviano
O Pantanal é a maior área continental úmida do mundo, com extensão aproximada de 158 mil km2, abrangendo parte de territórios da Bolívia, do Brasil e do Paraguai. O Pantanal boliviano, que fica no departamento de Santa Cruz, por meio dos seus serviços ambientais (regulação do clima e inundação/seca, controle de fertilidade do solo, controle biológico, manutenção da biodiversidade, e fonte de água, alimentação e de matéria prima para a população) sustenta as principais atividades produtivas (agrícola e pecuária) que contribuem à economia da região.
No ano 1997, a riqueza e beleza da parte sudeste do Pantanal boliviano foi reconhecida pelo governo deste país e transformada no Parque Nacional Otuquis, com cerca de um milhão de hectares, e com uma grande diversidade de flora e fauna, produto da convergência de varias ecorregiões: Amazônia, Bosque Seco Chiquitano, Chaco e Cerrado. Tão majestoso é que até agora foram registradas pelo menos 53 espécies de anfíbios, 159 de mamíferos, 98 de répteis, 656 de aves, 325 de peixes, 1030 de borboletas e mais de 3500 espécies de plantas superiores, sendo que muitas dessas espécies estão altamente ameaçadas, como o cervo-do-Pantanal (Blastocerus dichotomus), a londra (Pteronura brasiliensis) e a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus).
Bem próximo aos limites do parque está o morro do Mutún, com uma superfície de quase 65 km2 e uma reserva estimada de 40 mil milhões de toneladas de ferro, sendo considerada a segunda maior jazida deste mineral na América do Sul. O aproveitamento dessa riqueza é concebido como prioridade nacional pelo governo boliviano. Por isso, em 2006, a empresa Jindal Stell and Power ganhou o direito de explorar e industrializar metade do Mutún por um período de 40 anos.
IIRSA, de novo
Começou assim uma corrida para viabilizar o escoamento da exploração mineral do projeto Mutún, que está estreitamente ligado ao IIRSA, comenta Marco Octavio Ribera, autor de “Hierro y Pantanal: Los Riesgos de la Explotación del Cerro Mutún”. Segundo ele, o IIRSA [Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana] considera o fluxo pelas vias e hidrovias “como fundamental para favorecer a mineração do ferro em ambos os lados da fronteira (Bolívia – Brasil)”.
O projeto multinacional prevê a instalação siderúrgica em toda a cadeia de produção até o aço, a construção do gasoduto para o abastecimento de gás natural à siderúrgica, infra-estrutura ferro-portuária, ferrovia e canal Mutún – Puerto Busch, abertura de um porto (Puerto Busch) no Triângulo Dionisio Foianini sobre o rio Paraguai e ainda a recuperação do caminho Motacucito – Puerto Busch. Do papel, já saiu a recuperação da antiga via Puerto Suárez – Puerto Busch (140 km), rota usada há 30 anos pela Corporação Mineira da Bolívia para transportar o ferro até o rio Paraguai, desativada por causa da inviabilidade ambiental do caminho, constantemente invadido pelas águas do Pantanal.
De acordo com Marco Octavio, a Bolívia aposta suas esperanças num projeto de mineração a ser instalado numa das zonas de maior sensibilidade ecológica e hidrológica, justamente no meio da parte mais bem conservada e também mais profunda do Pantanal, afetando diretamente ao Parque Nacional Otuquis. E pressagia: “Se não se realizarem ações de controle dos impactos no Pantanal boliviano, incluindo a região do Mutún, esse grande conjunto de projetos e atividades conexas e colaterais claramente implicará no descumprimento de compromissos assumidos pelo país na Convenção de Ramsar”.
É importante mencionar que também serão afetados outros compromissos declarados pelo governo boliviano, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, Convenção sobre Espécies Migratórias e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural.
Ainda em 2005, o Foro Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (FOBOMADE) também havia expressado idêntica preocupação através de uma carta ao Ministério de Desenvolvimento Sustentável do país, afirmando que o projeto poderia “ter um alto impacto ambiental sobre amplas áreas do Pantanal boliviano que conseguiram o reconhecimento como sítio Ramsar, alterando a ecologia, biodiversidade, composição de espécies, ciclos biogeoquímicos e potenciais para aportar benefícios econômicos” (Carta FOBOMADE ao Dr. Edwin Aguilera, Ministro de Desenvolvimento Sustentável, La Paz, 21 de fevereiro de 2005).
Princesa violada do Pantanal
Lamentavelmente, tão importante parque já ostenta o título de “princesa violada do Pantanal”, uma vez que não estão sendo considerados os regulamentos ambientais e estudos feitos por instituições sérias sobre estes projetos. “Não estamos contra o progresso da região e do país, mas procuramos o desenvolvimento em equilíbrio com o meio ambiente”, afirma Guadalupe Montenegro, diretora do Parque Nacional Otuquis. Ela diz também que o Pólo de Desenvolvimento é uma prioridade nacional e já está acontecendo, mas a direção do Parque Nacional é a autoridade ambiental na jurisdição da área protegida, e assim, tem a obrigação de controlar e fiscalizar o respeito às normas e regulamentos para a proteção do parque.
Segundo Guadalupe Montenegro, a estrada Puerto Suarez – Puerto Busch tem licença ambiental, mas até o memento o documento não foi entregue à direção do Parque, apesar de ter sido solicitada de maneira formal ao Vice-ministério de Meio Ambiente e Águas, assim como à Administradora Boliviana de Estradas (ABC) e a empresa executora da reabilitação, Vastok.
Dessa forma, a empresa Vastok não cumpre com o estabelecido pelo Regulamento Geral de Áreas Protegidas da Bolívia, que diz que para todas as obras a executar-se no interior de uma área protegida deve-se solicitar a autorização da direção do parque. Inumeráveis são as denúncias conhecidas sobre o trabalho de recuperação que se tentam executar no antigo caminho, sobre os pântanos formados pela inundação dos rios.
Os trabalhadores das obras caçam e pescam dentro do parque, as construções são feitas impactando o meio ambiente e sem ações de mitigação. Para a reconstrução dos aterros, usam terra tirada de um lado do caminho, deixando buracos inundados enormes, provocando a propagação de algas, putrefação rápida, evaporação da água que antes fluía e que era parte do ciclo hidrológico do sistema.
Diante dessa situação, a direção do parque abriu processo administrativo contra os infratores, pela construção de um posto de controle dentro do parque. Montenegro conta que quando já se realizava a reabertura do caminho a Puerto Busch, a Vastok ofereceu ao Parque Nacional um posto de controle que serviria para controlar o ingresso à área, oferta que foi aceita. Mas, diante de denúncias sobre o impacto ambiental da Vastok no parque, a empresa retirou a oferta, entregando o posto de controle ao Quinto Distrito Naval da Marinha boliviana, que foi construído e colocado 50 km dentro do Parque Nacional sem nenhuma autorização.
Seguindo os regulamentos, os guardas-florestais realizaram um sequestro preventivo do posto, levando-o ao acampamento San Juan. Susto e medo, foi o que viveu o guarda-florestal Telmo Dosapei quando uma tarde em que estava sozinho no acampamento chegaram os militares com pessoal armado e ameaças, atropelando o acampamento e levando embora o posto sequestrado.
Para surpresa do Parque, o posto novamente apareceu desta vez mais dentro ainda da área protegida, a quase 80 km. Enquanto se realizavam as investigações necessárias, a Vastok se evadiu, afirmando não ser proprietária do posto de controle, o que motivou outro processo administrativo contra o comandante do Quinto Distrito Naval da Marinha, situado em Puerto Quijarro, pela violação ao Regulamento Geral de Áreas Protegidas da Bolívia. Ele foi punido com uma sanção pecuniária e embargo do posto. Logo após a apelação do veredito em La Paz, a sanção pecuniária foi anulada, mas o embargo da estrutura do posto de controle foi mantido.
“Este processo administrativo é um antecedente institucional para as empresas ou outros que forem trabalhar dentro de uma área protegida, para que considerem a parte ambiental nas suas obras, porque nas áreas protegidas bolivianas existem leis e regulamentos que se devem cumprir”, afirma a diretora do Parque Nacional Otuquis.
O Parque Otuquis, apesar da sua grande importância local, nacional e mundial, se torna muito vulnerável aos projetos que vêm a reboque do Pólo de Desenvolvimento por causa da fragilidade de sua implementação. Resta à unidade de conservação apenas a dedicação do pessoal administrativo e de seus guardas-florestais, os que mais conhecem os perigos e os lugares mais espetaculares e combatem mosquitos e calor com a mesma garra com que encaram empreendimentos de grande porte como os que ameaçam o parque.
* Giovanny Stephanes é repórter e assessor de imprensa em Puerto Quijarro Bolívia
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