São Paulo – Se quem tem dinheiro para comprar um daqueles carrões SUV pode abastecer o automóvel com diesel, todos os outros consumidores também deveriam poder, afinal esse combustível é mais barato que a gasolina, certo? Errado, muito errado. A discussão é antiga e desde a década de 1970 o diesel está proibido para uso em veículos de pequeno porte no Brasil, por acarretar consequências graves para a saúde e o meio ambiente. Porém, o Projeto de Lei (PLS) 656/2007, do senador Gerson Camata, pretende trazer o assunto à tona, com o argumento de que a volta dos carros a diesel beneficiaria o meio ambiente, por liberar menos dióxido de carbono, um dos gases do efeito estufa. Mas não é bem assim…
Confira a íntegra do PLS 656/2007 aqui
Primeiro, porque o custo ambiental da queima desse combustível é imenso, por liberar material particulado, enxofre e óxidos de nitrogênio – mesmo que ele ganhe por pequena vantagem no quesito emissão de CO2. Comparado à gasolina, o diesel de fato elimina menos dióxido de carbono. A emissão de um automóvel a gasolina é da ordem de 170 gramas por quilômetro rodado, sendo que 25 gramas são renováveis, reabsorvidas pelo próprio processo. No diesel, essa quantidade cai para 140 g/km, mas nenhum grama é renovável. O grande campeão da disputa, entretanto, é o álcool, pois todo o CO2 liberado durante sua queima é reabsorvido pela cana, durante o crescimento.
Segundo, porque a saúde de toda a população está em jogo com essa escolha: a queima libera partículas e gases que causam problemas a órgãos como pulmão, rins e fígado, além de poderem gerar câncer. “A queima do motor a diesel produz muito mais óxido nítrico e material particulado (fuligem) que os outros motores”, afirma o engenheiro Gabriel Branco, consultor especialista em controle de emissões veiculares. “Os óxidos de nitrogênio participam da formação de ozônio de baixa altitude, um dos poluentes que mais ultrapassaram o padrão de qualidade do ar nos últimos anos.”
Saúde em risco
“O diesel é responsável pela morte de pelo menos seis pessoas, todos os dias, apenas na cidade de São Paulo. (Fonte: Laboratório de Poluição Atmosférica da Universidade de São Paulo)” |
Os carros a diesel, incluindo aqui ônibus e caminhões, são responsáveis por mais de 60% do material particulado que polui o ar. Segundo estudos realizados no Laboratório de Poluição Atmosférica da Universidade de São Paulo (USP), esse material particulado é responsável por mais de 3 mil mortes anuais, apenas no estado de São Paulo. “Essas partículas acabam se acumulando nos alvéolos pulmonares, resultando em doenças crônicas como o enfisema”, alerta Paulo Paes Silvado Júnior, pneumologista do Hospital Santa Catarina.
Outra pesquisa, recém divulgada, feita pela biomédica Sandra Regina Castro Soares na Faculdade de Medicina da USP, concluiu que a poluição do ar de São Paulo altera o colesterol do sangue, facilitando a deposição dele nos vasos. Funciona assim: o ar cheio de partículas, quando inspirado, penetra na corrente sanguínea e altera a estrutura da molécula do LDL – o colesterol ruim. Com essa modificação, a molécula passa a ter mais facilidade para formar camadas de gordura e engrossar a parede dos vasos sanguíneos.
Os grupos populacionais de maior risco, em ambos os casos, são o de idosos, o daqueles com doenças pulmonares crônicas e com doenças coronárias, e o de crianças. Enquanto a poluição atmosférica aguda pode desencadear infarto em questão de horas ou dias nas pessoas que possuem alguma tendência ao problema, a exposição crônica a poluentes eleva o risco de doenças cardiovasculares que podem estar relacionadas à inflamação pulmonar crônica. “Cerca de 24 horas após dias de pico de poluição, a procura por ajuda nos pronto-socorros por causa de problemas respiratórios aumenta em 20%”, afirma Elie Fiss, professor de pneumologia da Faculdade de Medicina do ABC.
A Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos, em 2002, chegou a divulgar um relatório em que alertava para o risco da exposição prolongada aos vapores do óleo diesel de caminhões e de outras fontes. Segundo a agência, a inalação, em longo prazo, pode ser causa de câncer nos seres humanos. Isso tudo não é apenas consequência da inalação de material particulado, mas também de enxofre e óxidos de nitrogênio, liberados por esse tipo de motor.
Briga no Senado
“A falácia é dizer que vamos copiar a Europa liberando os carros a diesel, mas se continuarmos com nosso diesel de baixa qualidade e com carros sem catalisadores, não há cópia nenhuma, diz Gabriel Branco” |
Por tudo isso é importante a iniciativa do senador Eduardo Suplicy, que pediu uma audiência pública para discutir as repercussões que o projeto pode ter caso seja aprovado. Em seu requerimento, Suplicy afirma que recebeu o documento Carta Aberta aos Senadores, subscrito por entidades como o Greenpeace e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em que as organizações alertam sobre os riscos que envolvem a comercialização de carros de passeio movidos a diesel.
Segundo o senador, o documento afirma que “o custo anual gerado pelas internações hospitalares decorrentes da poluição veicular para o Sistema Único de Saúde (SUS) é de R$82.627.646,00 na região metropolitana de São Paulo. Se somarmos o total das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Recife, as despesas atingem R$129.497.569,00. Cerca de 40% desse custo se deve ao diesel”.
“É importante deixar claro que não se trata de um movimento contra o carro a diesel, mas a favor da preservação ambiental e contra o incentivo ao uso do diesel atualmente disponível no país. Quando atingirmos padrões europeus de qualidade de combustível e quando os motores a diesel oferecidos aqui puderem ser oferecidos com a mais moderna tecnologia de controle de emissão utilizada na Europa e nos Estados Unidos, aí sim teremos um novo cenário para analisar a questão à luz da matriz energética e de compromissos nacionais para a redução de gases de efeito estufa”, esclarecem as entidades no documento.
Como o projeto está em andamento e foi requerida a audiência pública, ainda não há nenhuma manifestação contra ou a favor por parte dos senadores. Eles só devem se manifestar quando o projeto for votado, o que deve ocorrer após a audiência pública, que ainda não tem data definida. Em agosto de 2009 o relatório foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e agora tramita na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) em caráter terminativo. Isso significa que, caso não haja nenhum recurso contrário por parte dos senadores, o projeto irá para a Câmara, sem necessidade de ser votado no plenário do Senado. Se os deputados aprovarem, a lei irá para sanção presidencial.
Enxofre demais
Quem defende a volta dos carros a diesel costuma lembrar o exemplo europeu. Lá, o óleo diesel que circula possui 10 ppm de enxofre, quantidade muitíssimo menor do que a encontrada no Brasil e, por isso, bem menos agressiva ao meio ambiente e à saúde. Aqui, a concentração de enxofre no diesel varia de 50 a 1800 ppm, sendo que mais de 70% da frota, por abastecer nas cidades do interior, consome essa pior parcela (a de 1800 ppm) – bem longe de níveis considerados aceitáveis e saudáveis pelas leis ambientais europeias.
A Petrobras deve substituir, por lei, todo o diesel vendido nas regiões metropolitanas por diesel com 50 ppm até 1º de janeiro de 2012 e, no interior do país, melhorar a qualidade do combustível distribuído para 500 ppm. “Porém, não é tão claro que o diesel de melhor qualidade estará disponível em 2012: segundo uma palestra realizada pela Petrobrás em abril, o diesel com 1800 ppm ainda ficará nos poluindo até 2014, contaminando o diesel 50 ppm na distribuição dos combustíveis: se um caminhão-tanque carregar diesel 1800 e sobrar um “fundo de tanque” de 1%, ao carregá-lo com diesel 50 teremos diesel 68 ppm, devido à contaminação. Se for diesel 10 ppm, ele se transformará em 28ppm e estará fora da especificação. As dificuldades não são na refinaria, mas na distribuição. Enquanto não for banido o diesel 1800 ppm e o 500 ppm, os supostos carros a diesel limpos europeus não se darão bem por aqui”, explica Gabriel Branco.
Por essas e outras, liberar mais carros a diesel antes dessa modificação entrar em vigor seria uma irresponsabilidade ambiental. Nem seria vantajoso para os consumidores que decidissem adquirir veículos movidos a esse combustível. Com a queima do enxofre são liberados ácidos como o sulfúrico, que acaba estragando válvulas, bicos injetores e catalisadores, peças fundamentais para garantir a baixa emissão de poluentes. Sem catalisadores funcionando, aumentaria a poluição atmosférica e a incidência de chuva ácida – um dos principais problemas resultantes da emissão de enxofre e de óxidos de nitrogênio na atmosfera.
Para o ambiente, sabe-se que a chuva ácida pode causar o deflorestamento e contaminar solo e água. Para a saúde, esses gases – independente do modo como são absorvidos – são mais um fator de preocupação. “Quando inalados, queimam as mucosas respiratórias, que inflamam e acabam evoluindo para enfisemas”, afirma Paulo Paes. Segundo o médico, o enxofre não se deposita apenas no pulmão, mas também nos rins e fígado, podendo levar à insuficiência desses órgãos.
*Lucia Nascimento é repórter em São Paulo
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