Porto Alegre – A morte do estudante e surfista Thiago Rufatto, 18 anos, no dia 1° de novembro de 2010, na praia de Capão da Canoa, reacendeu a polêmica sobre o espaço destinado ao surfe e à pesca no litoral do Rio Grande do Sul. Já são 49 mortes de surfistas presos em cabos de rede desde 1978, contabilizando uma vítima a cada oito meses.
A mobilização de parentes e amigos do Thiago e a criação do Instituto Thiago Rufatto / ONG Mar Seguro, presidido por sua mãe Neuza Rufatto (foto), fizeram com que o foco da discussão voltasse a ser o conflito de espaço entre lazer e trabalho nas praias gaúchas. O objetivo central da ONG não é ser contra os pescadores, afirma Neuza, mas sim a favor da vida e da segurança no mar. “Queremos que haja outra alternativa para os pescadores que não as redes de pesca, pois são uma armadilha para os surfistas”, declara. Veja aqui vídeo da homenagem a Thiago Rufatto
De um lado, famílias sofrem com a perda de seus entes queridos que praticavam um esporte saudável no mar. De outro, pescadores artesanais profissionais clamam pelo direito de exercer a atividade que lhes fornece o sustento da família.
As armadilhas do litoral gaúcho
Dentre os problemas que levam à situação de insegurança dos surfistas e até banhistas nas praias gaúchas está a ausência de sinalização adequada. Em alguns municípios não há placas indicando a delimitação de área de surfe e de pesca. Em outros, elas não são visíveis do mar, dificultanto a precaução do surfista. “No dia em que o Thiago morreu não havia placas na beira da praia indicando a área de pesca. Ele foi levado pela correnteza até ela sem saber. Além disso, o cabo de rede que o prendeu estava sem identificação”, conta a mãe da vítima.
A falta de identificação de cabos de rede é proibida, mas nem sempre é fiscalizada pelas autoridades competentes de forma ágil. Muitas vezes, como sugere o diretor da ONG Mar Seguro e da Federação Gaúcha de Surf, Virgilio Panzini de Matos, esses cabos nem são de pescadores profissionais. “Há pouco saiu uma reportagem na revista Isto É sobre a ‘fraude do anzol’. Nela indica que há, no RS, falsos pescadores, que obtém de maneira irregular o Registro Geral de Pesca sem dependerem de fato dessa atividade para subsistência. São moradores da praia que querem receber o seguro defeso para aumentar a renda e pescam aleatoriamente sem nenhuma responsabilidade, colocando a vida dos surfistas em risco”, condena.
Outras falhas destacadas pelo ONG Mar Seguro é o número insuficiente de guaritas em boas condições (foto) e de salva-vidas nas praias, além da ausência desses profissionais nos feriados prolongados, quando grande parte da população gaúcha se desloca para o litoral. “Não há equipamentos adequados, UTI móvel, jet-ski para auxiliar no salvamento, hospitais com estrutura e pessoal suficiente nas nossas praias. Pra mim é um ‘lixoral’ e não litoral. Está abandonado”, declara Nalu Machado, sócia-fundadora da ONG.
A nova lei estadual
Com o objetivo de levar a luta pela melhoria da segurança nas praias gaúchas até as autoridades, Neuza Rufatto e membros do Instituto e ONG encontraram-se com a ministra dos Direitos Humanos, a gaúcha Maria do Rosário, no dia 10 de janeiro de 2011 (foto abaixo). Juntos, expuseram a situação para a ministra, que prometeu tomar providências e viabilizar uma reunião entre eles, o governador do RS Tarso Genro (PT) e a presidente da República Dilma Rousseff.
O governador do RS sancionou a Lei Estadual 13.660, em 12 de janeiro de 2011, que obriga os municípios banhados por mar a aumentar de 400 metros para 2100 metros a área de surfe num prazo de 60 dias. Nessa área, fica proibida a pesca profissional com redes, sendo permitida apenas a prática amadora, com linha de mão e caniços. Se para os surfistas a nova lei representa mais segurança no mar, para os pescadores artesanais parece o fim anunciado de um atividade tradicional.
Coordenador do Fórum de Pescadores do Litoral Médio e Norte do RS (de Tavares a Torres), Valdomiro Hoffmann afirma que “desde o início essa lei foi de péssima aceitação pela comunidade de pescadores, mas não fomos ouvidos nas discussões. Muitos já estão preocupados, pois ficarão desempregados, sem idade ou capacidade para aprender outra modalidade de pesca. Para nós, foi um desastre!”.
Pescador do balneário de Arroio Teixeira, ele garante que a atividade com cabos chega a render cerca de dois salários mínimos mensais às famílias e lembra que os pescadores artesanais já haviam perdido espaço, e parte desse lucro, quando há quatro anos foi determinado que de 15 de dezembro a 15 de março fica proibida a pesca com redes em todo o litoral. “Nossa maior safra já estava restrita, pois o verão seria a melhor época para pescarmos e escoar a mercadoria fresca, sem a necessidade de estocar, pela quantidade de turistas consumidores. Agora perdemos mais”, critica.
Questionado sobre qual seria a melhor alternativa aos pescadores e surfistas frente a essa nova lei, o coordenador do Fórum responde: “A primeira alternativa seria proibir o surfe em dias de mar em ressaca, pois sempre haverá uma vítima. Além disso, gostaríamos que as áreas de surfe [de 2,1 km] não fossem obrigatórias em todos os balneários, pois há alguns com extensão muito pequena, o que resulta na inviabilidade da área de pesca. O problema é que não há propostas alternativas para nós, estamos sendo deixados de lado”.
Problemas no foco da discussão
A superintendente federal do Ministério da Pesca e Aquicultura no RS, Adriane Lobo Costa, assegura que os pescadores não estão sozinhos. “Nós pretendemos manter a posição de resguardar a atividade de pesca com cabos de rede. Somos a favor de demarcar as áreas para a pesca, mas manter os profissionais trabalhando. Após a delimitação ser feita pelos municípios litorâneos, vamos verificar quais os cabos serão atingidos, para saber exatamente como negociar o espaço”, garante.
Adriane ainda afirma que a discussão é válida, mas considera o foco equivocado. “Não concordamos que o surfe seja considerado a atividade principal do litoral do RS e não a pesca, que é de sobrevivência e faz parte de um conhecimento tradicional da comunidade local. Todo o saber que envolve a atividade com cabos de rede, que é específico das praias gaúchas e passado por gerações, será extinto. Isso mostra que o conflito está muito voltado para a manutenção do turismo, mas não dos pescadores”, relata.
O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Nelson Gruber, doutor em Geociências (Geologia Marinha) pela mesma instituição, atua na área de Gerenciamento Costeiro. Na sua opinião, essa discussão deve de fato ser resolvida em conjunto, integrando pescadores, surfistas e governantes (municipais, estaduais e federais). “Todos devem trabalhar juntos, de uma forma harmônica para que as negociações avancem e possamos partir para o gerenciamento da costa. Percebo que a conscientização de que se precisa modificar essa situação está sendo fortalecida. Precisamos pensar em projetos, refletir o que queremos para o litoral gaúcho, o que esperamos para daqui 30 anos e não ficarmos apenas brigando por espaços”, enfatiza.
Pesca com bote: uma alternativa?
Frente ao conflito de interesses e a consequente redução da área de pesca artesanal com cabos de rede, aparecem sugestões de outras modalidades, como a pesca com bote. Inclusive grande parte dos entrevistados chegaram a sugerir que as redes são predatórias, por capturarem juvenis na zona de arrebentação, devendo ser substituídas por uma atividade mais rentável e sustentável.
Fiscalização
O comandante do 1º Batalhão Ambiental da Brigada Militar que abrange os municípios do Litoral do RS, Major Tedesco, garante que a fiscalização de cabos de rede está em dia nas praias. Até o momento nenhuma irregularidade foi encontrada. Em relação às próximas ações do Ministério da Pesca e Agricultura, a superintende Adriane Costa conta que estão num momento de avaliação do orçamento para viabilizar boias de identificação dos cabos de redes aos pescadores, a fim de aumentar a eficácia da sinalização. As próximas reuniões sobre o assunto vão ocorrer no litoral, entre os dias 31 de janeiro e 4 de fevereiro, com a presença de prefeitos, Ministério Público do RS e as partes interessadas.
Maurício Vieira de Souza, responsável pelo Núcleo de Recursos Pesqueiros do RS no Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, declara que a pesca com cabos de rede não é, a princípio, sinônimo de prática predatória. “Os pescadores artesanais profissionais costumam fazer o uso da malha de rede adequada para cada época do ano, para capturar espécies específicas e não desperdiçar os recursos naturais. Eles são orientados a fazer esse controle, pois é de seu interesse preservar o meio ambiente marinho, já que dependem desse equilíbrio para ganhar o seu sustento”, explica.
No que se refere a alternativa do bote, Souza declara que não há possibilidade de fazer a migração de todos os pescadores de cabo de rede para essa modalidade. Esclarece: “Cada atividade pesca tipos distintos de peixes, evitando a degradação ambiental. Se passarmos todos para o bote haverá uma pressão enorme sobre determinadas espécies e o consequente desequilíbrio do ecossistema”.
A superintendente do Ministério da Pesca concorda que há limitações para a implantação dos botes. Cita o êxito da experiência no município de Xangri-lá, onde a prefeitura apoiou a cooperativa de pescadores e está custeando botes: “Mesmo nesse bom exemplo percebemos que há obstáculos. Primeiro pela importância de manter o conhecimento tradicional da pesca com cabos de rede, segundo pelas condições do nosso mar, agitado. Estaríamos dando segurança para o surfista e tirando a do pescador. Além disso, requer um estudo a longo prazo, de quantos botes nossa costa suporta, sem grandes impactos ambientais”.
Adriane lembra que são cerca de 700 cabos de rede no litoral gaúcho, do qual dependem cerca de três mil pessoas, pois cada um é utilizado por mais de uma família. No total, são 21 mil pescadores com Registro Geral de Pesca (RGP) no Estado.
Próximos passos: o conflito segue
Com toda a polêmica envolvendo o espaço para lazer e para trabalho no litoral gaúcho a única certeza é de que a luta continua. Ambas as partes estão mobilizadas para buscar os seus interesses e garantir as suas atividades no mar.
O diretor da ONG Mar Seguro, Virgílio Matos, assegura que o grupo seguirá buscando atingir os seus objetivos. “A nossa ideia é acabar com as redes de pesca. Temos que encontrar alternativas para esses pescadores, que sejam rentáveis e não coloquem em risco a vida dos surfistas. Existem práticas em alto mar de cultivo de peixe, por exemplo. Acho que está faltando vontade política para essa mudança”, critica. Além disso, Matos destaca a necessidade de haver uma secretaria estadual específica para tratar de questões da costa gaúcha, bem como uma comissão estadual voltada para as políticas do litoral.
Neuza Rufatto, presidente da ONG, complementa e avisa que no dia 5 de fevereiro haverá outra manifestação no litoral norte, na qual membros do Instituto Thiago Rufatto estarão distribuindo panfletos (veja foto da primeira passeata acima). O conteúdo explica os objetivos da ONG e dá dicas de segurança no mar para surfistas e banhistas. “Continuaremos lutando para evitar mais mortes e para cobrar das autoridades fiscalização e segurança nas praias gaúchas”, ressalta.
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