Um besouro praiano que se esconde em meio aos grãos de areia e os farelos de biscoito. Menor que uma unha, com um corpo que mede entre quatro e nove milímetros, este pequeno inseto tomou conta das praias urbanas do Rio de Janeiro, por mais que sua presença passe despercebida da maioria dos banhistas. E tal qual os turistas, seus números crescem ainda mais no verão. Com uma aparência que lembra uma joaninha, recebeu o nome popular de “joaninha-da-praia”. Trata-se, entretanto, da Phaleria testacea, um pequeno besouro que ainda não conquistou os holofotes nem mesmo entre pesquisadores. Sua história, no entanto, merece ser contada.
Localizada no litoral da região nordeste e sudeste do país, a joaninha-da-praia (Phaleria testacea) é uma espécie de besouro plenamente adaptada ao ambiente costeiro. Com uma alimentação baseada em detritos encontrados na superfície da areia, tornou-se um dos principais colonizadores das praias urbanas. E, de acordo com pesquisas, onde há mais atividades humanas, maior a fartura de alimentos para o besouro praiano.
“[as Phaleria testacea] prestam um serviço ambiental, nos livrando dos restos deixados pelos frequentadores irresponsáveis. Em praias mais naturais e pouco frequentadas, a abundância populacional não é elevada”, aponta o biólogo da Secretaria de Meio Ambiente e Clima da prefeitura do Rio de Janeiro (SMAC), Jorge Pontes.
Motivado pela curiosidade, Josimar Ribeiro de Almeida, biólogo e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), observou o comportamento alimentar da Phaleria testacea, assim como sua densidade populacional nas praias da cidade do Rio de Janeiro, e variações morfológicas. Os estudos que produziu serviram de alicerce para futuros trabalhos com a espécie. Segundo ele, os dados coletados indicam que o inseto prefere detritos de alimentos ultraprocessados aos de matéria orgânica. A base hipercalórica presente neste tipo de produto é tida como uma das justificativas para este critério de seleção pouco ortodoxo para a dieta da joaninha-da-praia.

“Alguns animais são chamados de sinantrópicos, animais que vivem junto ao homem, e dependem da presença dele para garantirem seu sustento. Se você tirar a presença do homem, talvez eles sucumbam. Eu estou falando de pombo, barata, e assim por diante. E eu incluiria a Phaleria [testacea] nesse grupo. Ou seja, na medida que observamos que elas dependem dos alimentos ultraprocessados – não quer dizer que elas não pudessem se alimentar também de restos de algas e outra matéria orgânica, mas quando fizemos experimentos selecionando as fontes de alimentação, pra gente foi uma prova quase que cabal de um condicionamento evolutivo, de uma pressão evolutiva no sentido da sinantropização [adaptação de animais selvagens às cidades]”, avalia Almeida.
Ao contrário de outras espécies que se beneficiam do contexto urbano, a joaninha-da-praia não representa uma ameaça epidemiológica. Ela consome o detrito encontrado na areia, mas não carrega consigo parasitas ou quaisquer microrganismos que põem em risco à saúde de banhistas e demais frequentadores desse espaço.
Como a espécie colonizou as praias
A Phaleria testacea está presente em grande parte da costa ocidental das Américas. Apesar de pesquisas apontarem para uma maior densidade populacional da espécie em praias urbanas, este inseto possui ampla capacidade de adaptação e resiliência, o que lhe permitiu a colonização de praias com as mais diferentes características.
Para Leonardo Costa – educador ambiental e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a principal valência deste inseto está na sua adaptabilidade comportamental. Segundo ele, isso se deve ao fato de que ela se alimenta dos mais diversos detritos encontrados na areia e pode priorizar um período de atividades diurnas ou noturnas, a depender da praia.
A adaptação da joaninha praiana também aparece em termos anatômicos. Embora não possua características que lhe permitam resistência à salinidade, “a morfologia dela é bem adaptativa, tem um exoesqueleto [camada externa do corpo] rígido, que permite a ela uma regulação térmica mais eficiente”, diz Leonardo Costa.
De tamanho diminuto, a Phaleria testacea possui coloração essencialmente marrom, com pequenas manchas mais escuras, em formato de bolinhas de tamanhos variados. Esse design se assemelha ao da joaninha-de-jardim, o que dá origem ao seu nome popular.
“Esse desenho das manchas é transmitido geneticamente”, explica Almeida. E com base nas dinâmicas de populações e distribuição geográfica, o pesquisador acredita que “o centro de origem deve ter sido no Rio de Janeiro. Anterior a isso, eu não tenho condições de fazer especulações”, diz Almeida. Uma “joaninha” praiana e autenticamente carioca.
Já o pesquisador da UENF, Leonardo Costa, argumenta que os registros de variação na tonalidade de cor entre os indivíduos sugerem que este seja um traço importante para resiliência da joaninha-da-praia no ambiente litorâneo.
“A gente observa diferenças nas cores entre indivíduos da mesma espécie, pois encontramos alguns mais clarinhos, outros mais escurinhos, a depender, inclusive, da cor da areia. Pode ser que seja, de fato, uma adaptação para se camuflar de potenciais predadores. Mas pode ser que seja só uma questão de regulação de temperatura também. Os indivíduos mais claros, por exemplo, tendem a dissipar com mais eficiência o calor. E muitos animais que vivem ali na beira da praia, eles são clarinhos”, analisa Leonardo.

Um inseto praiano
A dieta variada da joaninha-da-praia possibilita com que ela se adapte a diferentes litorais. Sua preferência pela areia seca permite estar próxima do detrito deixado por banhistas. A superfície arenosa também facilita um deslocamento mais ágil do inseto pelo terreno. No período de reprodução ou no momento de fuga do calor, a Phaleria testacea ainda mostra sua habilidade enquanto escavadora, rapidamente se escondendo na areia, alguns centímetros abaixo da superfície escaldante. Por lá, estes pequenos besouros depositam suas larvas e se protegem do eventual pisoteamento.
Por não se aventurar nas profundezas arenosas, a joaninha-da-praia não costuma acessar grandes quantidades de água em seu estado líquido. Conforme explicado por Almeida, seu consumo de água se dá através da absorção da umidade relativa do ar, via um tecido presente em suas articulações. Embora notável para o olhar leigo, o professor aposentado da UERJ enfatiza que esta é uma habilidade comum entre os insetos.
Para os pesquisadores, a Phaleria testacea se apossou de um ambiente inóspito, sobretudo para os besouros. Sob o ponto de vista evolutivo, este foi um cálculo benéfico para a espécie. Sua flexibilidade alimentar lhe permite ter amplo acesso à recursos e adaptar-se para contornar as adversidades do terreno quente e seco. Não depende do lixo humano, mas se aproveita do mesmo. No fim, a presença ostensiva de pessoas nas praias turísticas ainda diminui os riscos de predadores para a joaninha. Uma relação quase acidental de simbiose entre o coletor de detritos praianos e aqueles que degradam o ecossistema.
“É interessante, ela vive num ambiente de transição. É um ambiente que a princípio é areia, tem uma estrutura física diferente de um solo terroso, tem uma variação de temperatura muito grande, então ela vive em fatores ambientais tremendamente agressivos. Existe um conceito de ecologia chamado de ‘valência ecológica’, que é a capacidade de habitar diferentes tipos de ambientes. Então ela tem uma valência ecológica muito grande, não só do ovo, da larva, mas principalmente do adulto, que se reproduz lá, transita, reside ali, mas ela ainda tem um sucesso evolutivo porque a espécie colonizou esse ambiente, praticamente não tem concorrente e nem predador”, detalha Almeida.
É um animal que criou seu próprio nicho, resume o biólogo, e sua própria condição de habitar um ambiente inóspito, “mas que vale a pena, porque não tem concorrência”.

A soberania da Phaleria testacea nas praias urbanas não encontra resistências naturais, seja pelo território ou predadores. Ao contrário da joaninha-da-praia, diversas espécies de fauna e flora são sensíveis aos impactos humanos, e não resistiram às transformações ocorridas em seus habitats.
Entre os potenciais predadores da joaninha-da-praia estão o caranguejo conhecido como maria-farinha e até mesmo outro inseto, o besouro-tigre (Cylindera nivea), conforme pesquisa realizada em cinco praias da região norte do estado do Rio de Janeiro. Diferente das joaninhas-da-praia, os besouros-tigres possuem exigências maiores sobre o habitat e somem diante da perturbação humana.
“Esse tipo de resultado, que parece ser básico da ecologia, tem várias implicações para a conservação”, explica Leonardo Costa. Já que o equilíbrio ecossistêmico depende dessa relação entre a população de presas e predadores. “Para conservar uma determinada espécie, você precisa conservar outras, porque elas estabelecem uma relação de interdependência entre elas”, completa.
Um retrato da poluição
A colonização das praias feita pela Phaleria testacea oferece dados alarmantes sobre o estado de poluição das areias fluminense. Artigo publicado em co-autoria pelos pesquisadores Leonardo Costa, Ilana Zalmon, Ariane da Silva Oliveira e Igor David da Costa identificou a presença de microplástico dentro das joaninhas-da-praia, assim como de outras espécies localizadas na costa norte do estado do Rio. Os resultados mostram que o microplástico é um “problema onipresente”, visto que grandes quantidades de animais analisados no estudo possuíam microplásticos em seus organismos, tanto em praias reservadas quanto naquelas tidas como turísticas.
O impacto do microplástico na joaninha-da-praia ainda é incerto. No entanto, a espécie está invariavelmente exposta à maior contaminação, na medida em que se alimenta de detritos. “Isso pode ter implicações ecológicas negativas que são muitas vezes até complexas da gente compreender… Os microplásticos podem carregar junto com eles alguns outros contaminantes que, sabidamente, têm efeitos negativos; causam mortalidade, redução de sucesso reprodutivo, como os metais”, afirma o co-autor do estudo.

Os resultados da pesquisa sugerem que a contaminação por microplástico representa uma ameaça real à Phaleria testacea. Entre os seis pontos de monitoramento, a menor incidência de joaninhas-da-praia com microplástico presente em seu organismo foi de 35%, enquanto a maior taxa foi registrada na praia de Guaxindiba, no município de São Francisco de Itabapoana. Nesta área, uma determinada faixa de areia teve cerca 62% das joaninhas da praia identificadas contaminadas por microplástico. Leonardo Costa lembra que o local apresenta despejo irregular de esgoto e se encontra próximo de córregos contaminados por resíduos sólidos. “Provavelmente ali é uma exposição crônica e que expõe ainda mais os animais”, ele diz. O relatório anual do Instituto Estadual do Ambiente (Inea-RJ) de 2024 apontou a praia em questão com balneabilidade imprópria.
A falta de apoio para pesquisas
Mesmo com perguntas ainda sem respostas sobre os impactos da poluição das praias na Phaleria testacea, novas pesquisas esbarram em percalços como a falta de financiamento.
“Acabei deixando de lado os estudos sobre a Phaleria; publiquei alguns artigos, mas o financiamento era difícil, não tive também pessoas interessadas em estudar um bicho que não tinha importância epidemiológica, e acabei, por força de trabalho, mudando meu foco de pesquisa”, relata Almeida.
Jorge Pontes, da SMAC, observa que não há um mapeamento da ocupação territorial da espécie pelas praias do Rio de Janeiro. O verão marca o nascimento das larvas, e portanto um crescimento expressivo da população de joaninhas-da-praia, que possui alta taxa reprodutiva. A ausência de um monitoramento ostensivo do ciclo de vida da espécie impossibilita compreensões mais aprofundadas acerca do impacto da contaminação do microplástico e outros poluentes na Phaleria testacea, assim como o real potencial deste besouro enquanto um indicador de poluição costeira.
Colonizadora do litoral na contemporaneidade, a joaninha-da-praia convive com os desafios ecológicos vigentes, assim como toda espécie de fauna e flora. Neste contexto, a Phaleria testacea pode ser compreendida como uma amenizadora para o controle do lixo praiano – ou mais uma vítima da poluição.
Esta matéria foi produzida em uma parceria de conteúdo entre ((o))eco e o Portal de Jornalismo da ESPM-Rio.
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