Campo Grande (MS) – Artigo publicado este mês na Revista Brasileira de Ornitologia relata o primeiro registro de harpia (Harpia harpyja) na planície pantaneira. O relato de caso é de suma importância para a conservação da espécie, uma vez que sua presença, nidificação e reprodução indicam alta produtividade do habitat. ((o))eco já havia divulgado em primeira mão, em 2009, a descoberta do ninho ativo que gerou o estudo.
O artigo científico, entitulado “Primeiro registro de Harpia harpyja para o bioma Pantanal, com dados sobre atividade reprodutiva” é de autoria de Flávio Kulaif Ubaid, doutorando em zoologia do Instituto de Biociências da UNESP Botucatu; Luciana Pinheiro Ferreira, bióloga mestranda da UNIDERP; Samuel Borges de Oliveira Júnior, doutorando em Ecologia e Recursos Naturais da Universidade Federal de São Carlos; e do ornitólogo Paulo de Tarso Zuquim Antas, que desenvolve pesquisas na região desde 1978.
A harpia (Harpia harpyja), conhecida também por gavião-real, está no topo da cadeia alimentar e é uma das maiores e mais fortes águias do mundo, alimentando-se de macacos-prego, cutias, preguiças e filhotes de cervos, entre outros pequenos mamíferos. Sua plumagem é cinza-azulada e ostenta um belo cocar sobre a cabeça, além de um disco facial que contribui com sua audição. Tem um bico enviesado para baixo e fortes garras com unhas que medem até sete centímetros, garantindo a captura de presas sem interromper o voo.
O macho possui em média 60 cm de altura e pesa até seis quilos, já a fêmea possui 90 cm de altura e pode pesar até nove quilos, com envergadura de asa chegando a dois metros. Os ninhos são construídos com pilhas de galhos em árvores altas. A fêmea põe dois ovos entre setembro e novembro, mas geralmente só um filhote sobrevive. A maturidade sexual e a plumagem adulta ocorrem somente aos cinco anos de idade. Esses animais podem chegar a uma longevidade de 40 anos.
No Brasil, além de ser encontrada na floresta amazônica, a harpia era comum na Mata Atlântica e no Cerrado, mas por ser extremamente vulnerável às perdas de habitat, já é considerada ameaçada de extinção no Espírito Santo, São Paulo e Rio Grande do Sul. A ave não consta na lista de espécies sob risco de extinção do Ibama porque supõe-se que haja muitos indivíduos na Amazônia. Porém, nos outros biomas brasileiros, os registros são escassos.
As ocorrências mais próximas ao Pantanal foram registradas na Serra da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul, a cerca de 70 km do Pantanal Norte, no sopé da Serra Ricardo Franco e no Parque Estadual do Cristalino, em Mato Grosso.
A área do estudo relatado no artigo localiza-se no Pantanal Norte, no município de Barão de Melgaço, Mato Grosso, a menos de 11 quilômetros da RPPN SESC Pantanal, uma das maiores unidades de conservação do Pantanal. As observações totalizaram 73 horas ao longo de 13 dias e foram realizadas coletas de restos de presas encontrados no solo para conhecimento dos hábitos alimentares da espécie. Quanto ao comportamento, os pesquisadores notaram um indivíduo adulto, possivelmente uma fêmea, e um filhote, cujo tempo de vida foi estimado entre 60 e 90 dias. O macho realizava visitas esporádicas, normalmente para levar alimento, e comunicava-se com a fêmea com gritos de longo alcance.
O ninho foi construído a 25 metros de altura, no topo de um cambará (Vochysia divergens Pohl), espécie nativa do Pantanal, morto por um incêndio em 2008, que manteve-se em pé. A árvore do ninho fica próxima de um caminho utilizado por moradores locais para acesso ao rio Cuiabá. Relatos de moradores da região indicam que o ninho já existia antes do incêndio, evidenciando que o casal tolerou esse processo de interferência. Em agosto de 2009, ocasião uma forte ventania derrubou o ninho, ocasionando a morte do filhote. Posteriormente, um novo ninho foi localizado, distante cerca de 2,6 km do ninho anterior, e a fêmea já estava efetuando a incubação.
Segundo ele, a presença do animal ali demonstra que o ambiente está com sua produtividade bem preservada e os processos fundamentais da vida no local estão funcionais. “Um predador, apesar de transmitir essa ideia de força por seu tamanho e poder, na verdade, é o elo mais fraco da cadeia alimentar. Se diminuem suas presas, o predador é imediatamente afetado, enquanto muitas de suas presas reduzem populações, mas não desaparecem do local”, reitera.
Desconhecimento popular
A ave é um tanto desconhecida pela maioria do povo brasileiro, que muitas vezes utiliza-se de águias comuns em outros países para simbolizar força e determinação de suas instituições e corporações através de símbolos e logomarcas. Mas na mitologia indígena, o gavião-real tem grande representatividade, sendo importante para vários grupos, principalmente os do tronco lingüístico Tupi. Veja explicação de Paulo de Tarso. “Por sua precisão na caça e força, há a tentativa de transpor essas qualidades para artefatos utilizados pelos índios. Muitas tribos mantinham harpias, chamadas de uiraçu, capturadas como filhotes e criadas em grandes gaiolas de cipó no meio da aldeia. As penas eram usadas na arte plumária e nas flechas. O grupo Suruí, do norte de Mato Grosso e sudeste de Rondônia, produzia flechas com penas da ave somente quando queria matar uma pessoa ou a onça, transferindo mitologicamente a força e o poder de morte da harpia para a flecha. Pelo tamanho da ave, quem já a presenciou viva na natureza fica impressionado, vindo daí lendas e mitos em todos os grupos humanos com raízes nas matas.” |
Segundo o estudo, o registro do gavião-real nesse cenário é de extrema importância para a conservação da espécie, pois não havia registros para aquela área. Alguns fatores configuram o local como potencialmente estratégico para a conservação do gavião-real na planície pantaneira e no estado de Mato Grosso, como a proximidade à unidade de conservação, a presença de extensos cambarazais, ótimos para ocorrência e nidificação do gavião-real, e a observação de animais como bugios, veados, aves de maior porte e répteis, presas da harpia.
O próximo passo é o desenvolvimento de medidas específicas de monitoramento visando gerar conhecimento básico sobre a biologia e ecologia da espécie na planície pantaneira, avaliando aspectos populacionais, área de vida e dieta. Trabalhos de monitoramento vêm sendo conduzidos no local, a fim de avaliar os aspectos básicos da biologia do gavião-real nessa porção do Pantanal.
Novos cenários
Para os autores, na fase atual de conhecimento, acompanhar o ninho e verificar sua evolução equivale a galgar mais um degrau no âmbito das pesquisas referentes à espécie, pois através de execução de projetos de monitoramento que visem a conservação da espécie surgem novas possibilidades para reforçar o desenvolvimento sustentável da região.
“A principal contribuição de nosso estudo é expandir a área de ocorrência conhecida e a detecção na planície pantaneira. A possibilidade da ave existir em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural, como é a RPPN do SESC, garante uma parcela do ambiente necessário de sustentação futura dessas aves na região. Simultaneamente existe um programa de pesquisas na RPPN capaz de produzir conhecimento sobre essa ave nas condições locais de ambiente, permitindo análises comparativas com áreas da Amazônia, outras partes do Centro-Oeste e da Mata Atlântica”, dia Paulo de Tarso. Como nesse último bioma estão as populações mais ameaçadas da espécie, o conhecimento adquirido possibilita o planejamento de ações de conservação mais efetivas para sua permanência nos estados onde hoje está ameaçada, ajudando a manter ambientes ecologicamente saudáveis.
De acordo com o ornitólogo, a existência desta ave demonstra a necessidade de um número maior de pesquisas, já que embora existam vários trabalhos na planície pantaneira, o fato de encontrar-se a maior ave de rapina no Pantanal é testemunho de lacunas de conhecimento. Ele ainda observa que que uma ave dessas é um atrativo por si só para o ecoturismo, trazendo recursos financeiros pelos turistas vinculados à observação de aves. “Um programa bem elaborado, pode internalizar essa riqueza associada às populações humanas locais”, finaliza.
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