
Primeira parada, uma planície alto-andina formada por inumeráveis depósitos de água de vários tamanhos, o Páramo da Virgem, a 36 km da capital equatoriana, Quito. Aqui o frio convida ver com outros olhos a grandiosidade das pequenas espécies de plantas que vivem a 4.200 metros de altitude.
Viver o caminho das águas desde seu nascimento nos páramos até as bacias como as dos rios Papallacta e Quijos, ver as mudanças do entorno natural que vão desde o menor dos liquens até a mais alta samambaia, é um encontro real com esse elemento cristalino que desce em forma de gotas e que mantém um infinito ciclo de vida.
Esta crónica narra o caminho da água pelo Parque Nacional Cayambe Coca (PNCC), desde as partes altas, super úmidas, que abastecem de água a capital Quito, até a cascada de San Rafael, lugar de beleza cênica inigualável que suporta a construção do projeto hidrelétrico mais importante do Equador.
Os páramos
São sistemas naturais complexos de alta montanha, encontrados entre os 2.900 e 5.000 metros de altitude.
Não são arborizados, contam com uma diversidade única, e são fonte de água doce. Os páramos se caracterizam pela presença de pastagens de altura, onde existe alta umidade, atuando como uma esponja que armazena a água e logo, a libera. |
O Páramo da Virgem
Antes que “o páramo fique com ciúmes” e a neblina cubra suas alturas, a paisagem do noroeste do parque no Páramo da Virgem é o claro exemplo da riqueza de seu sistema lacustre: montanhas que guardam sua água acumulada na vegetação, lagoas e rios.
Na parte alta do parque nacional, entre as províncias de Pichincha e Napo, existem quase 1.200 hectares cheios de água doce provenientes da chuva, da neblina, de fontes naturais e do escoamento do páramo.
O páramo é um sistema complexo que reúne várias formações naturais muito diferentes entre elas. Nas zonas mais altas, sobre os 4.000 metros, o páramo de almohadillas (de almofadas, em português) é caracterizado pelo crescimento de estruturas vegetais antigas nos que as plantas crescem sobre si mesmas, guardando em seu interior restos vegetais e acumulando água generosamente. As samambaias, liquens e puyas (uma enorme bromélia) crescem densamente, protegendo-se entre elas das bruscas mudanças de temperatura, da intensidade dos raios solares e dos ventos gelados.
Os páramos ao redor de Papallacta (Parque Cayambe Coca e Reserva Ecológica Antisana) atuam como uma imensa esponja que deixa escapar água pelas nascentes e rios para chegar até Quito por um sistema de transferência através de gigantes tubos e vasos comunicantes.
Lagoa de Sucus
A lagoa de Sucus, dentro do Parque Cayambe Coca, fica na parte baixa do sistema lacustre de Papallacta, na província de Napo. Nestas planícies se observa a presença dos bosques de Polylepys, a família de árvores que crescem à maior altitude nos sistemas montanhosos do mundo.
Sucus é uma das principais fontes de armazenamento de água para Quito; a lagoa foi represada para levar sua água por um tubo que nutre o sistema de água de Papallacta. O aporte de água desta lagoa é ocasional, já que o Sistema Papallacta foi substituído por Salve Faccha, um projeto que por ter maior elevação permite o transporte de água até Quito usando a gravidade.
As lagoas de Sucus e Papallacta, e também a bacia baixa do Rio Papallacta mandam água para Quito só em momentos de manuntenção de Salve Faccha ou em casos de emergência.

Papallacta
Às sete da noite de uma segunda-feira, Papallacta está completamente adormecida, as esperadas águas termais que reabilitam habitantes e transeuntes desde séculos atrás, não estão atendendo. O caminho de pedra, escuro e sem gente, revela que a construção da nova via, asfaltada para fazer mais rápido e seguro o trajeto, afetou o pouco comércio do que vivem as famílias desta vila.
De manhã, seus 920 habitantes acordam sem barulho, apenas se ouve o trinar das aves que acompanha as crianças à escola. Dezesseis por cento de sua população começa seu dia na agricultura, na pecuária, silvicultura e piscicultura. A segunda atividade econômica mais importante está relacionada diretamente com a gestão da água potável como a Empresa Pública Metropolitana de Água Potável e Saneamento EPMAPS e o Fundo para a Proteção da Água FONAG, seguida pelo trabalho na administração pública, correspondente a 11,2% de seus moradores.
O turismo é um importante eixo econômico deste pequeno setor; as águas termais atraem turistas nacionais e estrangeiros. A riqueza hidrotermal de suas águas se deve ao fato de Papallacta estar situada entre os vulcões Cayambe e Antisana. As águas termais proveêm de capas subterrâneas que estão a maior temperatura, e brotam do solo com temperaturas superiores a 40°C.
Estado da água para a população
A pesar de que “aqui a água nunca falta”, como percebe Luís Tobar, habitante da zona desde 1970, os problemas do povoado são outros. Papallacta não conta com um sistema de esgoto fluvial ou sanitário, e também não tem uma estação de tratamento das águas. As casas têm água termal e água fria, “mas por não haver esgotos, todas a água, após ser usada, vão diretamente para o Rio Papallacta sem nenhum tratamento”, explica Augusto Tituaña, presidente do Conselho Paroquial.
Na parte alta de Papallacta existem 60 lagoas, que alimentam a Quito de água potável. O setor recebe da empresa pública pequenas obras em forma de compensação pelo seu território, mas não conta com condições ótimas de vida no que diz respeito à água.
Ao norte de Papallacta, o Parque Cayambe Coca oferece trilhas para caminhar no páramo. O relato dos guarda-parques é assombroso e é difícil distinguir onde a história se converte em mito. Em seu contato direto com o espírito deste páramo, eles já viram lobos, ursos-de-óculos, antas e condores.
O Rio Quijos

San Rafael é a cachoeira mais alta do Equador, com 160 metros. Crédito: Rubén Ramírez, Finding SpeciesA drenagem natural dos 60 lagos e zonas úmidas dos páramos passa por rios e riachos até o leste do país, enquanto atravessa a floresta andina, onde a bacia do Rio Papallacta se une ao Rio Antisana, criando o Rio Quijos. O vale deste rio se converte em uma área produtiva com atividades agropecuárias abastecendo de alimento e matéria prima a uma grande parte da Amazônia norte do Equador. O próprio Rio Quijos é na Amazônia o destino turístico para fazer kayak e para aventureiros que descem o rio em boias em um trajeto de fácil e segura navegação.
Quando o Quijos se une com o Rio Salado, que vem desde a parte leste do nevado Cayambe, se forma o Rio Coca, bem aos pés do vulcão Reventador em uma zona de constante atividade vulcânica.
Última parada, cascata de San Rafael
Localizada no limite das províncias de Napo e Sucumbíos, a cascata de San Rafael se deixa ver desde um mirante. No caminho até a imponente caída d’água é impossível advertir a forte intervenção que se realiza no leito do rio para o novo projeto hidrelétrico que se está impondo nesta paisagem.
Compreender o projeto Coca Coda Sinclair não é fácil quando não é permitido o acesso a suas instalações nem conversar com seus técnicos. As pontes em construção, o material removido, os caminhões e retroescavadeiras no rio, outras máquinas e explosivos para abrir um túnel, colocam em evidência que as necessidades energéticas do país e a prioridade que lhe damos estão tendo um impacto real no entorno.
Só podemos esperar que os danos ambientais necessários sejam reparáveis e possam ser revertidos em pouco tempo. Também é necessário dizer que antes que a transferência de água reduza o fluxo da cascata, será um prazer admirar a maior cachoeira do Equador.
Leia também

Até 2100, mais de 80% das espécies de anfíbios do Pantanal e entorno perderão áreas adequadas
Estudo realizado por pesquisadores do Brasil e da Suíça prevê que, mesmo em cenário otimista de emissões de gases do efeito estufa, haverá perda em 99% da área da bacia do Alto Paraguai →

Especialistas em meio ambiente vão ajudar a escolher novo diretor do INPE
Clézio De Nardin deixou o cargo após cumprir mandato de quatro anos. Carlos Nobre e Capobianco fazem parte do Comitê de Busca do novo diretor →

O javali no Brasil: passado, presente e futuro de uma “praga incompreendida”
Em 2025, o IBAMA prepara uma nova norma para o controle do javali no Brasil. Na prática, essas determinações podem contribuir para a multiplicação da praga no país →