Enviada especial a Açailândia, Maranhão – O que começou como um caso de degradação ambiental evoluiu para uma grave violação de direitos humanos, analisa o promotor Leonardo Rodrigues Tupinambá, da 2ª Promotoria de Justiça de Açailândia. Desde o final da década de 1990, ele acompanha a situação das cerca de 300 famílias que vivem em Piquiá de Baixo, bairro na zona rural de Açailândia, no Maranhão. Cercada por guseiras, a comunidade sofre com o descaso das empresas e a omissão das autoridades, respira pó de ferro e vive com janelas e portas trancadas, tamanha é a poluição em que vive mergulhado.
Sem esperanças de recuperar a área destruída pela produção de ferro gusa, os moradores têm se mobilizado com auxílio de organizações sociais e de missionários da igreja católica para garantir um futuro para a comunidade. Unindo forças e recursos, o povoado planejou o próprio reassentamento e apresentou um projeto urbanístico para a criação de um bairro completamente novo à prefeitura municipal. O histórico de violações sofridas e a mobilização dos moradores você lê em detalhes nesta que é a quinta reportagem da série especial de ((o))eco sobre Piquiá de Baixo.
Emissões incompatíveis com a vida
A necessidade de reassentamento da comunidade é evidenciada pela situação crítica do meio ambiente no entorno da produção de ferro. Uma perícia ambiental feita em 5 de dezembro de 2006 nas instalações de uma das fábricas, a Gusa Nordeste S/A, vizinha ao povoado, apontou para a contaminação da água e poluição do ar com emissão de fuligem e poeira (composta por minério de ferro, carvão vegetal e seixos triturados). Essa fuligem é espalhada pelo vento.
“As emissões de fuligem, água contendo resíduos metálicos e ruídos são certamente prejudiciais à saúde humana. As condições em que vivem os moradores, seus hábitos e tradições tornam a situação ainda mais crítica”
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“A posição da empresa em relação às habitações é incompatível com a presença de moradores. As emissões de fuligem, água contendo resíduos metálicos e ruídos são certamente prejudiciais à saúde humana. As condições em que vivem os moradores, seus hábitos e tradições tornam a situação ainda mais crítica”, indica o relatório ambiental publicado em 2007, ao qual ((o))eco teve acesso.
No espaço entre as instalações da empresa e a rodovia BR-222 encontram-se as casas dos moradores. Os quintais das moradias estendem-se até o pátio da fábrica, conforme atesta a análise do perito, que aponta que existem muitas habitações que são atingidas pelas descargas gasosas.
A água utilizada para resfriamento dos altos-fornos é captada no Ribeirão Piquiá e contém metais dissolvidos, o que agrava o problema. “É forte o cheiro de ferro oxidado. Esta água pode sim contaminar os quintais das casas e as pessoas que ali habitam, sobretudo crianças. Ainda, após passar pelos quintais das casas a água atinge o ribeirão Piquiá levando os metais e elevando a temperatura da água”, informa o documento.
A perícia destaca que o ferro em excesso no organismo pode sobrecarregar o fígado, as células cardíacas e levar a “graves anomalias no funcionamento do coração, como arritmias”.
Risco real
Segundo o promotor Leonardo Tupinambá, “Existe um impacto na qualidade de vida, na saúde, na habitação. Não se briga tão somente para que se resgate o déficit habitacional, não se quer dar apenas uma casa melhor, o que se busca é um resgate da dignidade da pessoa humana por conta do impacto na saúde da população. São pessoas que convivem com acentuado risco de vida”.
“Não se quer dar apenas uma casa melhor, o que se busca é um resgate da dignidade da pessoa humana por conta do impacto na saúde da população”
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Ele recebeu a reportagem na Procuradoria Geral de Justiça em São Luís do Maranhão, para onde foi transferido depois de acompanhar por anos a trajetória de Piquiá, e falou sobre as tentativas de mediar a disputa da comunidade com as indústrias de ferro e a companhia Vale.
“A associação dos moradores nos pediu socorro. Grande parte da população estava inclinada a sair de lá por conta dos inúmeros problemas gerados pela poluição”, diz. “O pessoal sempre quis ir embora, é uma população vivendo em condição de extrema miserabilidade com casas de barro ou feitas de madeira apodrecida”.
Algumas das famílias atingidas chegaram a acionar a Justiça em busca de compensação pela contaminação. Desde 2005, há 21 ações judiciais individuais tramitando na 2ª Vara da Justiça de Açailândia em que 21 famílias pedem indenizações. A última sentença, proferida no final de 2013, foi favorável aos moradores.
O promotor ressalta que a região apresentava inclinação a ser área rural e destinada à preservação. “O que se quer é recuperar a origem daquela área que nunca foi industrial nem (apropriada) para receber resíduo industrial. Queremos recuperar a qualidade de moradia em que as casas não sejam solapadas pela poluição”, explica.
Reassentamento
Em meio às denúncias, o Ministério Público Estadual abriu inquérito para investigar os impactos ambientais, iniciativa que resultou na assinatura de dois Termos de Ajuste de Conduta (TAC) com o Sindicato das Indústrias de Ferro Gusa do Estado do Maranhão (SIFEMA). O primeiro, que data de 24 de maio de 2011, prevê o detalhamento das ações para o programa de reassentamento das famílias obrigando o SIFEMA a pagar o valor da desapropriação de um terreno para a remoção dos moradores. Já no segundo TAC, de 24 de agosto de 2011, o SIFEMA se compromete a financiar o projeto urbanístico do reassentamento das famílias.
O terreno escolhido para ser desapropriado foi o sítio “São João”, uma fazenda particular de 38 hectares a 12 km de Piquiá. A segunda e última parcela do pagamento da desapropriação da fazenda foi efetuada em 30 de abril deste ano no valor de R$ 720 mil, alcançando um total de R$ 1,1 milhão do valor indenizatório. A reportagem estava em Piquiá no dia da confirmação do pagamento, fato que gerou comemoração generalizada entre movimentos sociais e moradores.
Segundo o promotor Leonardo Tupinambá, houve cuidado para que o novo terreno não estivesse na rota da estrada férrea. “Foi escolhido um terreno privado porque não havia um terreno público disponível. Açailândia está cercada por empreendimentos privados. Pedimos a comunidade que indicasse cinco terrenos preferenciais (para a construção do novo bairro) e fomos verificar os que tinham mais condições de receber um núcleo populacional e o distanciamento da linha de ferro”, explica. O SIFEMA, aponta o promotor, não se furtou a participar do processo de negociação. “É como se eles estivessem tentando recuperar a sua responsabilidade social. O SIFEMA não apenas pagou o projeto urbanístico, como pagou o primeiro valor desapropriatório que ficou obsoleto e pagou a complementação”.
Impasse com a Vale
Com o terreno escolhido e assegurado, a disputa passou a ser por um projeto urbanístico-habitacional para o novo bairro a ser construído. A associação de moradores contatou três assessorias técnicas fora do Maranhão e, após avaliar orçamentos e características, o Ministério Público Estadual selecionou a USINA CTAH (Centros de Trabalho para o Ambiente Habitado) de São Paulo.
O projeto custou R$350 mil e foi entregue à Prefeitura Municipal, ao SIFEMA e ao Ministério Público Estadual em 21 de maio de 2013. A construção do novo bairro ficou estimada em R$25 milhões e já tem sua versão definitiva pronta desde dezembro de 2013. As famílias aguardam a aprovação final da Prefeitura de Açailândia — que recebeu o projeto há mais de um ano e ainda não se posicionou — e reunir o dinheiro para a construção das casas e da infraestrutura. Cerca de 70% do custo, a comunidade espera conseguir através de financiamento da Caixa Econômica Federal, por meio do programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal. Já o restante, os moradores cobram da Vale, que, segundo o promotor, não tem colaborado no processo.
A empresa, afirma Tupinambá, se ofereceu para contratar, ela mesma, a assessoria técnica para fazer o projeto urbanístico e habitacional do novo bairro, porém segundo seus critérios, interesses e exigências, o que não agradou aos moradores. “As relações começaram a recrudescer de dois anos para cá. A Vale começou a se furtar de participar das reuniões. Há cerca de dois anos nos foi enviada uma proposta de que a Vale iria contribuir com um certo orçamento, mas que o povoado achou por bem não aceitar por conta de condições consideradas abusivas”, diz.
“É uma cláusula abusiva, os moradores não poderiam entrar contra a Vale nunca mais ou questionar os impactos na saúde. Você não pode renunciar direitos indisponíveis como saúde do ser humano e dignidade de vida”
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Pela proposta, a mineradora concordaria em arcar com o projeto urbanístico disponibilizando o valor de R$ 400 mil mediante a renúncia total dos direitos das pessoas de Piquiá. “É uma cláusula abusiva, os moradores não poderiam entrar contra a Vale nunca mais ou questionar os impactos na saúde. Você não pode renunciar a direitos indisponíveis como saúde do ser humano e dignidade de vida”, disse Tupinambá.
No final de 2011, antes do recesso de fim de ano, o promotor Leonardo Tupinambá foi procurado pela assessoria jurídica da companhia, que o comunicou pretender o diálogo com a comunidade sem qualquer interferência do Ministério Público ou da Defensoria. “E se aquilo não fosse executado naquela semana, não haveria mais como assegurar a quantia de R$ 400 mil e que, nos anos seguintes, teria que recomeçar todo o processo burocrático para se conseguir o valor. A Vale a partir desse momento recrudesceu a negociação e estava saindo do processo. A Vale se afastou”, afirma Tupinambá.
Ele destaca que o diálogo da companhia com a comunidade nunca foi constante e que, desde aquele momento, tem havido “certa dificuldade em contatá-los”. A empresa diz que mantém diálogo com a comunidade desde 2010 – veja nota de posicionamento na íntegra ao final desta página.
O promotor explica que, apesar de o pólo guseiro ser o principal responsável pelos impactos ambientais na comunidade, cabe à Vale uma parcela de responsabilidade. “A nossa Constituição Federal fala do princípio do poluidor pagador, o que polui diretamente e o que fornece a matéria prima da poluição. As guserias trabalham com o material fornecido pela Vale. Existe responsabilidade da empresa”, enfatiza.
O impasse ainda não está perto do fim, mas Tupinambá já vislumbra uma solução conciliatória. Faltam R$ 8 milhões para garantir o montante de R$ 25 milhões para as obras do novo bairro. “Vai se necessitar de uma complementação e, talvez, esse seja o momento propício para incluir a Vale no processo (de negociação)”, disse ao admitir que será uma “tarefa árdua” pleitear o restante dos recursos necessários uma vez que já fora difícil conseguir o valor do projeto urbanístico (R$ 400 mil), o que corresponde a 1,68% de todo o orçamento necessário para o reassentamento.
“Não foi o poder público quem fez, foi a comunidade que entregou para o poder público. Não é só o projeto de moradias, é de bairro com instrumentos sociais que, dentro do município de Açailândia, nenhum bairro tem”
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Perspectivas e conquistas
Há quase dez anos os moradores tentam ser reassentados. Ainda falta um caminho a ser percorrido no tocante à negociação de interesses e concessão de recursos, mas a situação parece avançar aos olhos do promotor, que destaca conquistas importantes alcançadas na luta. “Existe um ineditismo na comunidade do Piquiá. Desconheço no Brasil um evento como esse, uma comunidade conseguir recursos de uma empresa privada e criar um projeto social para resolver o seu problema habitacional e urbanístico. Não foi o poder público quem fez, foi a comunidade que entregou para o poder público. Não é só o projeto de moradias, é de bairro com instrumentos sociais que, dentro do município de Açailândia, nenhum bairro tem”, diz.
Mesmo sendo o segundo município maranhense que mais arrecada, a cidade se desenvolveu sem distribuição desta riqueza. “Esse aumento de riqueza não está sendo traduzido em distribuição e qualidade de vida para a população. Os ganhos conseguidos pela comunidade do Piquiá começaram a causar mal estar no poder público (municipal) que se sentiu pressionado e inábil para resolver a situação”, afirma o promotor.
A mera apresentação do projeto urbanístico já é inédita, diz Tupinambá. “Espero que essas barreiras burocráticas sejam superadas menos por uma motivação política e mais pelo espírito aguerrido da população. Este é um exemplo de sucesso, ainda não é pleno porque não foi efetivamente construído. Essas pequenas vitórias são indicativas de que estão no caminho certo”, diz.
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Posicionamento da Vale em resposta às solicitações de ((o))eco
Leia a nota na íntegra
“ Desde 2010, a Vale mantém diálogo com a comunidade de Piquiá de Baixo, na área industrial de Açailândia, Maranhão, região para a qual fornece minério de ferro e transporte ferroviário. Naquele ano, a Vale, por meio da Fundação Vale, elaborou um diagnóstico socioeconômico das 330 famílias localizadas na comunidade. Esse diagnóstico contou com forte participação comunitária, sendo concluído e apresentado à Promotoria no início de 2011. No processo, foi instituída uma comissão de 30 famílias que passou a representar a totalidade das famílias envolvidas.
Em seguida, a Vale comprometeu-se a custear a elaboração do projeto habitacional do novo bairro, de forma a permitir a captação de financiamento público para a construção das residências. Em julho de 2012, protocolou, junto ao Ministério Público de Açailândia, proposta de transferir o recurso de R$ 400 mil reais para a execução do projeto básico habitacional do novo bairro, para a conta da Associação Comunitária de Piquiá de Baixo, atendendo aos anseios da comunidade, tendo o Ministério Público e a Defensoria Pública como anuentes e responsáveis pela fiscalização, gestão e execução dos recursos para aquisição deste projeto.
Em agosto de 2012, o Ministério Público decidiu pelo financiamento do projeto habitacional pelo sindicato local SIFEMA, com valor inferior àquele oferecido pela Vale, não sendo mais necessária a contribuição da empresa para a confecção do projeto.
A sentença judicial de homologação da desapropriação do terreno para onde serão removidas as famílias foi prolatada em dezembro de 2013. Atualmente a Vale e a Fundação Vale mantêm contato com a Associação Comunitária dos Moradores de Piquiá de Baixo, autoridades municipais e o Ministério Público local para avaliar futuras possibilidades de apoio.
Sobre a segurança da ferrovia
A Vale esclarece que não há moradias na faixa de segurança da linha ferroviária na altura de Piquiá de Baixo. A empresa mantém rigoroso controle ambiental de suas operações, que inclui atividades como sistema de contenção e reuso de água para controle de emissão de pó.
Além disso, a empresa informa que investirá, em 2014, R$ 4,5 milhões em melhorias de acesso e instalações operacionais no distrito de Piquiá.
Por fim, a Vale reforça que investe em campanhas educativas ao longo da estrada de ferro para esclarecer, junto à população, sobre as condutas que devem ser adotadas para uma convivência segura com a ferrovia, como não andar pelos trilhos, obedecer aos sinais ferroviários antes da travessia e utilizar somente as passagens de nível oficiais.”
Esta é a quinta reportagem da série especial Piquiá de Baixo, sobre a vida dos impactados ambientais da produção de ferro gusa no Maranhão.
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