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Correr atrás de baleia é crime

Decisão judicial sobre programa de TV que perseguiu baleias francas em Santa Catarina mostra como a legislação ambiental pode ser aplicada exemplarmente.

14 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Há um ceticismo muito grande em relação à chamada eficácia do direito ambiental no Brasil. Normalmente se diz que “o Brasil tem a legislação ambiental mais avançada do mundo mas, infelizmente, não funciona”.

Obviamente, estamos diante de mais uma patuscada sem qualquer base fática que não seja a mera “impressão” do “analista”. Lógico que tal tipo de “afirmação” é despropositada por vários motivos. Em primeiro lugar, não é verdade que tenhamos a legislação ambiental “mais avançada do mundo”, mesmo porque não dá para saber o que se quer dizer com isto. Aqui temos mais uma demonstração explícita do ufanismo brasileiro inaugurado pelo Conde Afonso Celso, nada além disto. E não é verdade que ela não funcione. O que há é uma grande desinformação e, como em todo ambiente no qual reina a desinformação, perde a aplicação da lei e, sobretudo, o seu efeito pedagógico. O direito ambiental no Brasil passa pelas mesmas dificuldades de aplicação que existem em outros “ramos” do direito, com as suas peculiaridades próprias.

Infelizmente, na nossa cultura, privilegiamos a desgraça e o atraso, só conseguimos ver o que não deu certo e prestamos pouca atenção àquilo que funciona. Um interessante caso que passou inteiramente despercebido foi o ocorrido em Santa Catarina, em 2000, quando da gravação do sensacionalista programa “Aqui e Agora”.

Com intuito de fazer uma reportagem “verdade” sobre baleias no litoral de Santa Catarina, uma equipe de reportagem do mencionado programa saiu al mare, visando encontrar baleias para filmá-las. Como sabemos, Santa Catarina é um estado muito visitado pelas baleias e lá existe uma Área de Proteção Ambiental (APA) especialmente voltada para a proteção dos cetáceos, a APA da Baleia Franca (1). Assim, o intrépido grupo saiu à busca de shots para o tal programa. Ocorre que, entre a equipe, a baleia e o programa, a lei nº 7.634/87 que proíbe o molestamento de cetáceos (2) jogava de zagueiro, e acabou sendo um dos motivos da desdicha da valorosa equipe de reportagem que acabou condenada pelo crime de molestamento de cetáceos.

Vejamos a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o caso:

RELATOR: MINISTRO GILSON DIPP. EMENTA CRIMINAL. HC. CRIME CONTRA A FAUNA MARINHA. MOLESTAMENTO INTENCIONAL DE CETÁCEOS (BALEIAS). FILMAGEM PARA O PROGRAMA “AQUI E AGORA”. NULIDADE DO ACÓRDÃO. FALTA DE PERÍCIA EM FITA DE VÍDEO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. DEFESA QUE PERMANECEU INERTE DURANTE A INSTRUÇÃO PROCESSUAL. CONDENAÇÃO BASEADO EM OUTROS ELEMENTOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. ORDEM DENEGADA.
I. Pacientes que estariam fazendo filmagem para o programa “Aqui e Agora”, quando teriam molestado baleias, visando à gravação de “cenas espetaculares”, chegando a provocar uma colisão do barco com os animais.
II. Não procede a alegação de nulidade por ausência de exame pericial em fita de vídeo, se evidenciado que a defesa permaneceu inerte durante toda a instrução criminal, quando poderia requerer a perícia no prazo da defesa prévia ou na oportunidade do art. 499 do CPP.
III. Ressalva de que o pedido de realização da diligência só foi formulado em sede de recurso de apelação.
IV. Material (fita de vídeo) que não era desconhecido pelos pacientes, ao contrário, foi por eles mesmos produzido, motivo pelo qual deveriam ter formulado pedido de realização de perícia durante a instrução do feito, caso considerassem importante para a defesa.
V. Ausência de ilegalidade na sentença condenatória, mantida pelo Tribunal de origem, que se baseou em outros elementos existentes nos autos, formando a convicção do d. Julgador pela existência do crime e sua autoria, o que já dispensa o referido exame.
VI. Ordem denegada.

Passo a transcrever parcialmente o Relatório do Ministro Gilson Dipp (3):

X impetra ordem de habeas corpus, se insurgindo contra v. aresto proferido pela Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, em sede de recurso de apelação, proveu parcialmente o apelo dos pacientes A, B e C tão-somente, para reduzir a pena anteriormente imposta. Narra a inicial da impetração que os ora pacientes restaram condenados a uma pena de dois anos de reclusão, em regime aberto, bem como ao pagamento de pena pecuniária no valor de R$ 1.000,00, como incursos nas sanções do art. 1º da Lei n.° 7.643/87, porquanto, nas proximidades da praia da Pinheira, com o fim de realizarem reportagem televisiva, teriam supostamente molestado duas baleias, passando a persegui-las a distância inferior a cem metros, chegando, inclusive, a abalroá-las.

É importante observar que, no caso, a principal argumentação da defesa foi uma suposta nulidade processual, visto que segundo os pacientes do HC não tinha havido uma perícia na fita que comprovava a prática do ato criminoso. É relevante consignar que a fita fora produzida pela equipe de jornalismo o que, na verdade, significava uma defesa incoerente. Vejamos:

Afirma que a negativa de realização de exame pericial da fita despreza totalmente os argumentos da defesa, no sentido de que a fita fora editada, negando-lhe o direito de produzirem prova da afirmação argüida desde a fase policial, culminado em nulidade absoluta do processo. Por fim, assinala que não houve qualquer molestamento aos cetáceos, sendo certo que a imagem transmitida decorre de montagem feita pela equipe com o intuito de dar maior sensacionalismo aos fatos, não correspondendo, entretanto, a realidade, eis que trata-se de mera encenação e montagem, e a distância entre os cetáceos e a baleeira nunca fora inferior a cem metros.

No juízo de primeira instância houve a condenação dos pacientes às penas de 6 anos e 6 meses de reclusão, que foi substituída por duas penas restritivas de direito, quais sejam, prestação pecuniária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e prestação de serviços em entidade pública que tenha por objeto a proteção ao meio ambiente, além de multa. Como se vê, uma pena bastante elevada que, por força de lei, foi substituída por pena restritiva de direitos.

No tribunal Regional Federal da 4ª Região houve uma reforma parcial da decisão de primeiro grau com um abrandamento da apenação. Foi estabelecida a redução da pena pecuniária substitutiva da restritiva de liberdade para R$ 1.000,00 (mil reais).

A decisão do TRF da 4ª Região foi assim ementada (4):

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1999.04.01.054361- RELATOR JUIZ MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA

PENAL E PROCESSO PENAL – PROVA PERICIAL – ART. 499 DO CPP – INTEMPESTIVIDADE – CRIME CONTRA FAUNA MARINHA – MOLESTAMENTO DE CETÁCEOS – ARTS. 1º E 2º DA LEI 7.643/87 – ABALROAMENTO DE BALEIA E SEU FILHOTE A PRETEXTO DA REALIZAÇÃO DE REPORTAGEM TELEVISIVA.
1. Na dicção do artigo 499 do CPP, nessa fase processual somente serão deferidas provas cuja necessidade decorra de fato verificado no curso da instrução criminal, não sendo cabível, portanto, a solicitação de perícia em material probatório já existente nos autos ao momento do oferecimento da defesa prévia. Requerimento dessa natureza feito em apelação, revela mera técnica de desestabilização da sentença, sem amparo legal.
2. Ao momento em que os réus tomam ciência de que o fato que visavam a noticiar – o encalhe de uma baleia franca fêmea e seu filho – não ocorria, e animados pela vaidade do sensacionalismo e com indiferença à incolumidade dos animais, passam a persegui-los, com a propulsão da embarcação em franco funcionamento e inclusive passando por cima, atropelando os animais, cometem o crime previsto nos arts. 1º e 2º, da Lei n. 7.643/87. O tipo penal ao referir-se a “molestamento intencional” não exigiu um fim especial de agir, mas apenas conduta dolosa genérica e voluntária.
Independentemente da Portaria 2306/90 do IBAMA, determinando entre outros aspectos a mantença de distância mínima de 100 metros por parte do operador de embarcação, e, no caso de aproximação voluntária do animal, o desligamento do motor, tais cuidados são antes de tudo regras de bom senso.

Como se pode ver da decisão do Tribunal Regional Federal, o centro da questão é a alegação de cerceamento de defesa e ofensa ao princípio do contraditório, pois não teria sido realizada perícia na fita de vídeo que teria sido gravada durante a referida reportagem. Ora, tal alegação foi feita extemporaneamente e, o que é pior, a prova era de autoria dos próprios denunciados que, além de tudo, deixaram passar o prazo de requerimento de diligências.

De fato, o ministro Gilson Dipp afirma em seu voto: Como bem ressaltado pela d. Subprocuradoria-Geral da República, a defesa formulou pedido de realização da diligência somente em sede de recurso de apelação, permanecendo inerte durante toda a instrução criminal, quando poderia requerer a perícia no prazo da defesa prévia ou na oportunidade do art. 499 do CPP. Ademais, não se trata de material desconhecido pelos pacientes, ao contrário, foi por eles mesmos produzido, motivo pelo qual deveriam ter formulado pedido de realização de perícia durante a instrução do feito, caso considerassem importante para a defesa.

Por outro lado, ficou claro na motivação da sentença condenatória que outros elementos existentes no processo determinaram a convicção pela existência do crime e sua autoria. A autoria do delito foi reconhecida na fase inquisitorial (inquérito policial), o que foi destacado no decreto condenatório (sentença), após a análise do conjunto de provas dos autos. A respeito da materialidade do crime, depreende-se do seguinte trecho da sentença condenatória:

Apreendida a fita de vídeo, a mesma encontra-se à disposição do juízo e das partes, tendo sido requisitada para conferência, pelo Ministério Público Federal (fls. 158 e 173 verso). Efetivamente, visto o vídeo-tape, na sede deste juízo federal, os fitos narrados na inicial denunciatória, guardam identidade com as imagens produzidas pela equipe composta pelos denunciados. Notórios e intimamente ligados são os comentários relativamente às cenas que ali se desenvolveram durante a perseguição ao cetáceo.

Da degravação do vídeo constam as seguintes pérolas:

Estamos em cima de novo (…) Passamos pela segunda vez em cima dela (…) vai, vai… (…) Nino, não encosta muito… (…) Ficou bem embaixo da baleeira… (A baleia) ficou brava, ficou brava (…) O X deu um chute, ficou brava…

Assim, estamos diante de uma decisão exemplar. As duas instâncias, ordinária e especial, funcionaram em uníssono e com vistas à proteção dos animais no caso concreto. Houve uma natural dosagem da pena e, de certa forma, um bom ritmo para a prestação jurisdicional.

(1) Decreto de Criação da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, de 14 de setembro de 2000. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 8º da Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981, e na Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e o que consta do Processo nº 02001.001314/99-59, DECRETA: Art 1º Fica criada, na região costeira do Estado de Santa Catarina, a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, com a finalidade de proteger, em águas brasileiras, a baleia franca austral Eubalaena australis, ordenar e garantir o uso racional dos recursos naturais da região, ordenar a ocupação e utilização do solo e das águas, ordenar o uso turístico e recreativo, as atividades de pesquisa e o tráfego local de embarcações e aeronaves.

(2) Artigo 1° – Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento internacional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras. Artigo 2° – A infração ao disposto nesta Lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) Obrigações do tesouro Nacional – OTN, com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência.

(3) Hábeas Corpus nº 12.279 – SC (2001/0162598-8)

(4)http://www.trf4.gov.br/trf4/jurisprudencia/sel_nacional_result_acordao.php?id_acordao=14525

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