Antes mesmo de ser anunciado, um anteprojeto do governo federal sobre o manejo das florestas públicas chegou à imprensa e provocou indignação entre os ambientalistas. Matéria publicada no jornal O Globo do dia 1° de agosto falava dos planos do Ministério do Meio Ambiente de “privatizar da Amazônia”. Surpreendida pela repercussão negativa da notícia, a ministra Marina Silva rechaçou as críticas, que atribuiu à desinformação sobre a proposta.
Passados dez dias, a discussão está de volta, desta vez embasada em dados concretos: a íntegra do projeto já circula pela Internet. Em 83 artigos, o governo propõe alterar por completo as regras de exploração florestal no país. As florestas públicas (excluídos os parques e reservas ambientais) poderão ser geridas por ONGs ou empresas em contratos de até 10 anos; destinadas às comunidades locais como reservas extrativistas; ou cedidas, por licitação, para a exploração da iniciativa privada.
O objetivo é estimular o “uso eficiente e sustentável” das florestas públicas. Numa síntese dos princípios da nova política, o artigo 2° coloca lado a lado a “conservação dos ecossistemas” com o “cumprimento das metas de desenvolvimento sócio-econômico local, regional e de todo o país”. Os benefícios econômicos da exploração florestal estão explícitos em termos como “diversificação industrial”, “desenvolvimento tecnológico”, “agregação de valor aos produtos e serviços da floresta” e “utilização da mão-de-obra local” (inciso V).
O anteprojeto também mexe com a estrutura do Ministério do Meio Ambiente, ao criar uma nova autarquia, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), eleito o órgão regulador de todas as atividades relacionadas às concessões florestais. Caberia ao SFB elaborar estudos de viabilidade sócio-ambiental de cada empreendimento, promover as licitações, fiscalizar o cumprimento dos contratos, acompanhar os planos de manejo e até estimular a produção e comercialização dos produtos florestais. O SFB mereceu um capítulo inteiro do anteprojeto, e suas atribuições estão descritas em 23 incisos do artigo 57. Ao Ibama restaria apenas aprovar os planos de manejo e colaborar com a fiscalização e proteção das florestas públicas (artigo 54). O presidente do Ibama, Marcus Luiz Barroso Barros, manifestou em ofício à ministra do Meio Ambiente sua preocupação quanto à “fragilização” do órgão e pediu a retirada do artigo 57 do anteprojeto, o que virtualmente impediria a criação do SFB.
Loteamentos – Os ambientalistas estão preocupados com o conteúdo do anteprojeto. A começar pela inclusão da Mata Atlântica como uma das áreas passíveis de exploração (artigo 3°, I). Especialistas não têm dúvidas de que a implantação de qualquer atividade comercial, mesmo limitada e controlada, representa uma ameaça para os 7% que ainda restam da mata original.
No que se refere à criação de reservas extrativistas a serem exploradas pelas comunidades locais, a expressão “assentamento florestal” também assusta. Ela aparecer no artigo 7°, “nos termos dispostos no artigo 189 da Constituição”, o que abre a possibilidade de destinar áreas florestais para a reforma agrária. O artigo 189 da Constituição fala disso: “Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos”. Em julho, a imprensa já havia divulgado a intenção do governo de assentar 100 mil famílias em áreas florestais. A tentativa de resolver um histórico problema social colocando em risco o patrimônio natural teve péssima repercussão.
“Já estou até vendo o cenário: famílias de assentados que nunca tiveram nenhuma relação com as áreas florestais (principalmente na Amazônia) são despejados de caminhão no meio da selva com um ‘boa sorte!’ e só. O que fazer? Os que não morrerem rapidamente em função de doenças tropicais e mesmo de fome (pois a caça não os irá sustentar por muito tempo), passarão a destruir impiedosamente a floresta para vender a madeira, como forma desesperada de tentar obter algum recurso que os manterá vivo. A queimada e o gado devem vir na seqüência, como vem acontecendo tradicionalmente. (…) Tudo leva a crer que, no mínimo, haverá prejuízos irrecuperáveis ao patrimônio natural da Nação”, escreveu Gustavo Gatti, da Fundação O Boticário, em e-mail.
O artigo 81 também parece anunciar um processo de loteamento das áreas florestais. Diz o texto: “As comunidades locais que ocupem florestas públicas e delas retirem o seu sustento a partir do uso sustentável de recursos florestais farão jus à legitimação de posse de área contínua de até 300 hectares por família, desde que não seja proprietário de imóvel rural”. Nada garante que as famílias teriam condições de realizar qualquer tipo de manejo florestal ou de promover o uso sustentável das florestas sem prejudicar o ecossistema local. “Isso pode determinar um desmatamento brutal com a dificuldade de manejo em 300 hectares de terra. E mais: pode iniciar um processo de ocupação desordenada da Amazônia, por exemplo, amparada por uma lei federal”, diz um especialista, que pediu anonimato.
Floresta S/A – Mas o cerne do anteprojeto é mesmo a concessão de áreas florestais para o setor privado. A nova lei causaria uma corrida de empresas nacionais e estrangeiras disputando a chance de explorar um território vasto, com generosos recursos naturais e grande biodiversidade.
Os governos estaduais e municipais devem receber os novos empreendimentos de braços abertos, uma vez que ficarão com parte dos lucros do chamado “preço florestal”, ou seja, a taxa que as empresas terão que pagar pelo direito de produzir nas florestas. Sabendo-se disso, é no mínimo temerário o artigo 17, que concede a prefeituras e governos estaduais a possibilidade de demarcar as áreas florestais que serão destinadas à exploração comercial em seu território.
A seleção dos pedidos de concessão será feita pelo SFB, baseada em dois critérios: melhor preço e melhor técnica. O impacto ambiental é apenas um dos três itens a serem levados em conta no segundo critério. Os outros são os benefícios sociais diretos e a “eficiência” (art. 27), o que reforça as prioridades socioeconômicas do projeto.
Os prazos variam: a concessão pode durar o tempo de um ciclo de colheita ou até 60 anos, praticamente instituindo a propriedadee da área pela empresa.
Tantos pontos obscuros acenderam o sinal de alarme entre os defensores do meio ambiente. Na edição do dia 7 de agosto do jornal Folha de S. Paulo, o professor emérito da Unicamp Rogério Cezar de Cerqueira Leite mostrou-se contra a exploração florestal proposta pelo governo. “As madeireiras indonésias e brasileiras não estão sendo suficientemente devastadoras, posto que o Ministério (da devastação) do Meio Ambiente resolveu alugar a Amazônia para madeireiras ‘sustentáveis’. Há, é verdade, uma vestimenta ecológica perfumada”, escreveu.
Contrapondo o raciocínio de Rogério Cerqueira Leite, dois técnicos do Ministério do Meio Ambiente defenderam, na mesma edição da Folha, a idealização do projeto. O governo alega que as mudanças seguem uma tendência mundial. “É importante destacar que praticamente todos os países com florestas do mundo possuem uma lei para regular o acesso e o uso dos seus recursos florestais. No caso da Amazônia, onde mais de 45% das terras são devolutas, a regulamentação proposta nesse projeto de lei é essencial para assegurar o controle e a soberania sobre o enorme patrimônio florestal público do Brasil”, afirmam João Paulo Ribeiro Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas, e Tasso Rezende de Azevedo, diretor de Florestas do Ministério do Meio Ambiente.
Anti-exemplo americano – Nem sempre seguir os modelos de outros países é receita de sucesso. O Serviço Florestal Americano (US Forest Service), sistema que aparentemente inspirou a iniciativa do governo brasileiro, foi concebido no fim do século XIX e até hoje é duramente condenado pelos ambientalistas. Segundo Bill Bryson, no livro A walk in the woods, “o que o Serviço Florestal mais fez foi construir estradas”. As florestas nacionais americanas têm mais de 600 mil quilômetros de estradas, abertas para possibilitar às madeireiras alcançar áreas antes inacessíveis.
Bill Bryson fala também da diversidade de atividades comerciais, recreativas, esportivas e turísticas autorizadas pelo Serviço Florestal nas florestas americanas. Disputando espaço com as madeireiras, há empresas de mineração, estações de esqui, competições de carro “off-road”, extração de gás e óleo, empreendimentos turísticos. “O que parece incompatível com a tranqüilidade necessária às florestas”, conclui o autor, dando-nos uma idéia do que pode acontecer por aqui se implantada a flexível proposta de “incrementar métodos de uso múltiplo sustentável dos produtos e serviços florestais, bem como a pesquisa científica” (art. 49).
Por fim, não custa levar em conta a informação de que, no país da eficiência capitalista, cerca de 80% dos acordos comerciais de que o Serviço Florestal Americano tomou parte deram prejuízo. Sinal de que talvez nem mesmo os argumentos financeiros para liberar a exploração de florestas públicas sejam assim tão sustentáveis.
Leia a íntegra do anteprojeto de lei (PDF).
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