Reportagens

Em jogo, a jóia carioca

Projeto de Lei propõe novo zoneamento do Alto da Boa Vista, mas sua aprovação às pressas pode pôr a perder a última chance de preservar a maior floresta do Rio.

Eduardo Pegurier ·
12 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

A saúde e a integridade futura do Parque Nacional da Tijuca, a mais famosa floresta urbana do mundo, dependem do Projeto de Lei n.o 1307, que tramita na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Ele regulamenta a Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU) do Alto da Boa Vista.

O Parque, localizado no maciço da Tijuca, é a cara-metade das praias cariocas. Juntos, são a marca registrada do Rio, compondo sua paisagem única entre as grandes cidades do mundo. O projeto, na sua forma atual, muda o zoneamento do Alto da Boa Vista, bairro encravado no meio da floresta, flexibilizando as regras de edificação, moradia e uso comercial. Permite o loteamento de terrenos e a construção de condomínios. Novas atividades comerciais classificadas como de baixo impacto ambiental serão permitidas. Pousadas, clínicas, restaurantes, sedes de empresa e galerias de arte estarão entre os novos negócios autorizados. Os grupos envolvidos concordam com a direção da mudança, mas há controvérsia se o texto em pauta terá mesmo os efeitos pretendidos.

Enviado pela Prefeitura em abril de 2003, o projeto caminhava a passos lentos na Câmara. Mas logo após a reeleição do prefeito César Maia, em outubro, virou o centro das atenções. A bancada governista, seguindo orientação do prefeito, quer aprová-lo ainda em 2004. Se depender de ativistas locais e especialistas ligados aos estudos técnicos que precederam o projeto, ele só passa se, antes, forem aprofundados os estudos de impacto ambiental. Eles também defendem a ampla divulgação do texto e debates com os moradores do bairro.

Herança de um projeto de reflorestamento feito no Segundo Reinado, o Parque Nacional da Tijuca foi criado em 1961 com uma área de 3.973 hectares, divididos em três setores descontínuos: as grandes manchas verdes da Pedra da Gávea, Floresta da Tijuca e Corcovado-Sumaré. Entre elas, desde o início, existiam áreas habitadas, principalmente o bairro do Alto da Boa Vista. Em 1976 foi criada a cota 100, uma legislação que afetou diretamente essa área, já que limitou severamente a construção de qualquer edificação que ficasse acima de 100 metros do nível do mar. Finalmente, em 1992, o então prefeito Marcelo Alencar assinou o decreto de criação da Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana do Alto da Boa Vista.

A chamada APARU é uma carta de intenção urbana e ecologicamente correta, que ficou 12 anos na gaveta esperando regulamentação. Ela engloba uma área dentro do Parque propriamente dito e outra fora, concentrada na região do Alto da Boa Vista. Essa área externa e habitada conecta os três setores do Parque e é fundamental para a sua integridade ecológica. Ela corre o risco de ser irreversivelmente degradada, se a legislação prestes a ser votada tiver brechas que permitam construções acima da capacidade de suporte ambiental e urbano. A área também sofre um processo de favelização que precisa ser revertido para preservar a floresta. Este é um dos objetivos declarados da nova proposta de lei.

A situação atual já é dramática. Segundo Anja Oest, presidente da ONG Alto Sustentável, “como está, o Alto não agüenta mais cem casas”. Ela relata que o bairro sofre com todo tipo de problema de infra-estrutura. Falta água e saneamento. Mesmo as mansões tradicionais do bairro jogam seu esgoto em fossas. As favelas crescem e o desmatamento ilegal é galopante. À medida que a mata encolhe, aumentam os deslizamentos e as encostas de risco. Segundo números recentes, o maciço da Tijuca perde um quilômetro quadrado de florestas por ano. Nesse ritmo, em três décadas não terá sobrado nada.

A lista de problemas é longa. O trânsito que cruza o bairro é cada vez mais engarrafado e assaltos a residências, que eram raros há dez anos, hoje são corriqueiros. Aos problemas de segurança, somam-se o IPTU pesado da região e a rigidez da legislação atual, que proíbe quase todos os tipos de atividade comercial no bairro, com exceções pouco significativas, como asilos e colônias de férias. O resultado é a perda de valor das casas e a evasão dos moradores mais ricos. O abandono do bairro acentua sua vulnerabilidade à favelização e ao desmatamento.

Anja é pragmática. Ela defende regras urbanas mais flexíveis. E cita o exemplo das casas de festa, que prosperaram no Alto mas que, até recentemente, não tinham alvará. A atividade não é ideal, já que gera barulho e trânsito, mas sua legalização ajudou a manter as mansões do bairro. Outro exemplo de dureza desnecessária é o caso de uma moradora que herdou uma grande propriedade e, para mantê-la, quer transformá-la em uma pousada do tipo bed & breakfast. Mas isso é proibido pela legislação atual. “O turismo ecológico na região do Parque da Tijuca tem potencial para ser uma das grandes fontes de renda da cidade. Se o parque for bem mantido, seguro e oferecer amenidades atraentes, sua localização urbana e facilidade de acesso aumentará a duração da estadia e a qualidade dos turistas que vêm ao Rio”, sustenta Anja.

Um dos objetivos do projeto de lei que regulamenta a área de proteção ambiental é justamente flexibilizar as regras de uso. Nesse ponto há convergência. O que Anja teme é a votação às pressas, sem debate público e escondendo brechas para a construção desenfreada de condomínios. Se isso ocorrer, será um desastre, uma repetição da Barra da Tijuca, com a infra-estrutura de serviços básicos correndo atrás do crescimento urbano, tudo agravado pela destruição do entorno do Parque Nacional. Esse receio é compartilhado pela professora Ana Luiza Coelho Netto, do Geoheco, responsável pelo estudo que embasou o projeto de lei da Prefeitura.

Ana Luiza diz que a Prefeitura está usando um estudo incompleto para fazer o novo zoneamento. Sua equipe entregou em julho de 2000 a primeira fase do trabalho, suficiente para desenhar linhas gerais sobre as fragilidades e possibilidades de ocupação da área de preservação do Alto. Mas falta olhar em detalhe a estrutura fundiária e geológica local para que o novo zoneamento possa ser feito com segurança. “Aprovar com sofreguidão o projeto põe em risco todos os seus principais objetivos de defender a parte conservada, recuperar a degradada e proteger a vida das pessoas, que podem estar morando ou construindo em áreas sujeitas a deslizamentos”, afirma. E completa dizendo que a idéia de conter favelas construindo condomínios terá o resultado oposto: a chegada de mais gente com renda gerará empregos e demandará serviços que fomentarão mais ainda a favelização.

A Prefeitura rebate essas críticas. Todos os estudos técnicos foram acompanhados por Luiz Pizzotti, coordenador da Secretaria de Meio Ambiente do município. Ele afirma que a Prefeitura fez o dever de casa e terminou os detalhamentos fundiários e ambientais necessários para embasar o novo zoneamento. Esse esforço interno reuniu as secretarias do Meio Ambiente, Habitação, Urbanismo e Cultura, além da consultoria legal da Procuradoria do município. Segundo Pizzotti, a legislação flexibiliza, mas ainda regula com vigor as novas construções. Os condomínios que vierem a ser construídos obedecerão a regras ambientais rígidas e caras, como preservar e manter com os próprios recursos 90% da área do terreno intocada. Ele pondera que se a legislação for cumprida, não haverá muitos candidatos. “Legislação é uma bola de cristal. A que existia foi feita com a melhor intenção de preservar com grande rigidez, mas não evitou a favelização. Quando tudo é proibido, na prática acaba-se não coibindo nada. O novo projeto é voltado para os problemas atuais. É um marco na história da cidade. Confio nele, embora seja impossível prever todos os desdobramentos futuros”, pondera.

A degradação irreversível do Alto seria trágica para uma cidade já com tantos problemas. Ao contrário, chegar a um consenso que preserve a floresta do Parque Nacional da Tijuca e seu entorno, mantendo uma atividade econômica local vibrante e sustentável, como a hotelaria e o ecoturismo, seria uma injeção de ânimo muito bem-vinda. Há objetivos comuns nas intenções da Prefeitura e nos desejos dos ativistas do bairro, liderados pela Alto Sustentável. Uma coisa é certa, passou o tempo da aprovação silenciosa de mudanças de zoneamento na cidade. É preciso acompanhar com lente de aumento cada passo do projeto de lei na Câmara dos Vereadores. Ou o futuro será cinza.

  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

Leia também

Reportagens
27 de dezembro de 2024

Poluição química de plásticos alcançou os mais antigos animais da Terra

Estudos identificaram que proteínas geradas nas próprias esponjas marinhas eliminam essas substâncias prejudiciais

Reportagens
26 de dezembro de 2024

2024 é o primeiro ano em que a temperatura média da Terra deve ultrapassar 1,5ºC

Acordo de Paris não está perdido, diz serviço climatológico europeu. Confira a galeria de imagens com os principais eventos extremos de 2024

Salada Verde
26 de dezembro de 2024

Obra milionária ameaça sítio arqueológico e o Parna da Chapada dos Guimarães, no MT

Pesquisadores, moradores e empresários descrevem em documentário os prejuízos da intervenção no Portão do Inferno

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.