A saúde e a integridade futura do Parque Nacional da Tijuca, a mais famosa floresta urbana do mundo, dependem do Projeto de Lei n.o 1307, que tramita na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Ele regulamenta a Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU) do Alto da Boa Vista.
O Parque, localizado no maciço da Tijuca, é a cara-metade das praias cariocas. Juntos, são a marca registrada do Rio, compondo sua paisagem única entre as grandes cidades do mundo. O projeto, na sua forma atual, muda o zoneamento do Alto da Boa Vista, bairro encravado no meio da floresta, flexibilizando as regras de edificação, moradia e uso comercial. Permite o loteamento de terrenos e a construção de condomínios. Novas atividades comerciais classificadas como de baixo impacto ambiental serão permitidas. Pousadas, clínicas, restaurantes, sedes de empresa e galerias de arte estarão entre os novos negócios autorizados. Os grupos envolvidos concordam com a direção da mudança, mas há controvérsia se o texto em pauta terá mesmo os efeitos pretendidos.
Enviado pela Prefeitura em abril de 2003, o projeto caminhava a passos lentos na Câmara. Mas logo após a reeleição do prefeito César Maia, em outubro, virou o centro das atenções. A bancada governista, seguindo orientação do prefeito, quer aprová-lo ainda em 2004. Se depender de ativistas locais e especialistas ligados aos estudos técnicos que precederam o projeto, ele só passa se, antes, forem aprofundados os estudos de impacto ambiental. Eles também defendem a ampla divulgação do texto e debates com os moradores do bairro.
Herança de um projeto de reflorestamento feito no Segundo Reinado, o Parque Nacional da Tijuca foi criado em 1961 com uma área de 3.973 hectares, divididos em três setores descontínuos: as grandes manchas verdes da Pedra da Gávea, Floresta da Tijuca e Corcovado-Sumaré. Entre elas, desde o início, existiam áreas habitadas, principalmente o bairro do Alto da Boa Vista. Em 1976 foi criada a cota 100, uma legislação que afetou diretamente essa área, já que limitou severamente a construção de qualquer edificação que ficasse acima de 100 metros do nível do mar. Finalmente, em 1992, o então prefeito Marcelo Alencar assinou o decreto de criação da Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana do Alto da Boa Vista.
A chamada APARU é uma carta de intenção urbana e ecologicamente correta, que ficou 12 anos na gaveta esperando regulamentação. Ela engloba uma área dentro do Parque propriamente dito e outra fora, concentrada na região do Alto da Boa Vista. Essa área externa e habitada conecta os três setores do Parque e é fundamental para a sua integridade ecológica. Ela corre o risco de ser irreversivelmente degradada, se a legislação prestes a ser votada tiver brechas que permitam construções acima da capacidade de suporte ambiental e urbano. A área também sofre um processo de favelização que precisa ser revertido para preservar a floresta. Este é um dos objetivos declarados da nova proposta de lei.
A situação atual já é dramática. Segundo Anja Oest, presidente da ONG Alto Sustentável, “como está, o Alto não agüenta mais cem casas”. Ela relata que o bairro sofre com todo tipo de problema de infra-estrutura. Falta água e saneamento. Mesmo as mansões tradicionais do bairro jogam seu esgoto em fossas. As favelas crescem e o desmatamento ilegal é galopante. À medida que a mata encolhe, aumentam os deslizamentos e as encostas de risco. Segundo números recentes, o maciço da Tijuca perde um quilômetro quadrado de florestas por ano. Nesse ritmo, em três décadas não terá sobrado nada.
A lista de problemas é longa. O trânsito que cruza o bairro é cada vez mais engarrafado e assaltos a residências, que eram raros há dez anos, hoje são corriqueiros. Aos problemas de segurança, somam-se o IPTU pesado da região e a rigidez da legislação atual, que proíbe quase todos os tipos de atividade comercial no bairro, com exceções pouco significativas, como asilos e colônias de férias. O resultado é a perda de valor das casas e a evasão dos moradores mais ricos. O abandono do bairro acentua sua vulnerabilidade à favelização e ao desmatamento.
Anja é pragmática. Ela defende regras urbanas mais flexíveis. E cita o exemplo das casas de festa, que prosperaram no Alto mas que, até recentemente, não tinham alvará. A atividade não é ideal, já que gera barulho e trânsito, mas sua legalização ajudou a manter as mansões do bairro. Outro exemplo de dureza desnecessária é o caso de uma moradora que herdou uma grande propriedade e, para mantê-la, quer transformá-la em uma pousada do tipo bed & breakfast. Mas isso é proibido pela legislação atual. “O turismo ecológico na região do Parque da Tijuca tem potencial para ser uma das grandes fontes de renda da cidade. Se o parque for bem mantido, seguro e oferecer amenidades atraentes, sua localização urbana e facilidade de acesso aumentará a duração da estadia e a qualidade dos turistas que vêm ao Rio”, sustenta Anja.
Um dos objetivos do projeto de lei que regulamenta a área de proteção ambiental é justamente flexibilizar as regras de uso. Nesse ponto há convergência. O que Anja teme é a votação às pressas, sem debate público e escondendo brechas para a construção desenfreada de condomínios. Se isso ocorrer, será um desastre, uma repetição da Barra da Tijuca, com a infra-estrutura de serviços básicos correndo atrás do crescimento urbano, tudo agravado pela destruição do entorno do Parque Nacional. Esse receio é compartilhado pela professora Ana Luiza Coelho Netto, do Geoheco, responsável pelo estudo que embasou o projeto de lei da Prefeitura.
Ana Luiza diz que a Prefeitura está usando um estudo incompleto para fazer o novo zoneamento. Sua equipe entregou em julho de 2000 a primeira fase do trabalho, suficiente para desenhar linhas gerais sobre as fragilidades e possibilidades de ocupação da área de preservação do Alto. Mas falta olhar em detalhe a estrutura fundiária e geológica local para que o novo zoneamento possa ser feito com segurança. “Aprovar com sofreguidão o projeto põe em risco todos os seus principais objetivos de defender a parte conservada, recuperar a degradada e proteger a vida das pessoas, que podem estar morando ou construindo em áreas sujeitas a deslizamentos”, afirma. E completa dizendo que a idéia de conter favelas construindo condomínios terá o resultado oposto: a chegada de mais gente com renda gerará empregos e demandará serviços que fomentarão mais ainda a favelização.
A Prefeitura rebate essas críticas. Todos os estudos técnicos foram acompanhados por Luiz Pizzotti, coordenador da Secretaria de Meio Ambiente do município. Ele afirma que a Prefeitura fez o dever de casa e terminou os detalhamentos fundiários e ambientais necessários para embasar o novo zoneamento. Esse esforço interno reuniu as secretarias do Meio Ambiente, Habitação, Urbanismo e Cultura, além da consultoria legal da Procuradoria do município. Segundo Pizzotti, a legislação flexibiliza, mas ainda regula com vigor as novas construções. Os condomínios que vierem a ser construídos obedecerão a regras ambientais rígidas e caras, como preservar e manter com os próprios recursos 90% da área do terreno intocada. Ele pondera que se a legislação for cumprida, não haverá muitos candidatos. “Legislação é uma bola de cristal. A que existia foi feita com a melhor intenção de preservar com grande rigidez, mas não evitou a favelização. Quando tudo é proibido, na prática acaba-se não coibindo nada. O novo projeto é voltado para os problemas atuais. É um marco na história da cidade. Confio nele, embora seja impossível prever todos os desdobramentos futuros”, pondera.
A degradação irreversível do Alto seria trágica para uma cidade já com tantos problemas. Ao contrário, chegar a um consenso que preserve a floresta do Parque Nacional da Tijuca e seu entorno, mantendo uma atividade econômica local vibrante e sustentável, como a hotelaria e o ecoturismo, seria uma injeção de ânimo muito bem-vinda. Há objetivos comuns nas intenções da Prefeitura e nos desejos dos ativistas do bairro, liderados pela Alto Sustentável. Uma coisa é certa, passou o tempo da aprovação silenciosa de mudanças de zoneamento na cidade. É preciso acompanhar com lente de aumento cada passo do projeto de lei na Câmara dos Vereadores. Ou o futuro será cinza.
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