Reportagens

Controvérsias atômicas

Inglaterra planeja construir 45 novas usinas nucleares. Alemanha promete fechar todas as suas. Os riscos ambientais dessa fonte de energia são pouco conhecidos.

Mariano Senna da Costa ·
19 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

Quem vê os protestos de ambientalistas e os discursos de políticos verdes a respeito da energia atômica, pensa que essa tecnologia está condenada a sumir. Mas, entre os especialistas, surgem apostas de um futuro promissor.

Em setembro, o premier britânico Tony Blair discursou a respeito da ameaça do aquecimento global. Ao mesmo tempo, o Departamento de Comércio e Indústria (DTI), controlador do sistema elétrico nacional, divulgava um plano para cortar 60% das emissões de gás carbônico até 2050. “Nossos possíveis cenários para atingir as metas dos cortes de emissões incluem formas nucleares e não-nucleares de geração”, explicou um porta-voz. E as nucleares não são nada desprezíveis. Estudos do mesmo órgão avaliam que podem vir a ser construídas 45 novas usinas nucleares na Grã-Bretanha, aumentando a participação atômica dos atuais 20% para metade do abastecimento energético total do país.

Também a França, onde 80% da produção de energia vem da fonte nuclear, não dá sinais de que pretenda limitar o uso dessa tecnologia. Mas outro país líder da União Européia tem planos inversos. A Alemanha quer fechar todas as suas usinas nucleares. O assunto está vinculado à área ambiental do governo, mais precisamente ao Ministério do Meio Ambiente e de Segurança dos Reatores. Ele é ocupado por Jurgen Trittin, membro do Partido Verde, que historicamente se opõe à energia atômica. A primeira usina foi fechada em maio deste ano. O plano é encerrar as atividades das 17 que restam até 2025. Hoje elas garantem 18% da eletricidade do país.

No mundo, a importância da energia atômica deve declinar. Para os próximos 25 anos, a Agência Internacional de Energia (IEA) prevê que a produção total de energia dobrará, mas a atômica crescerá só 4%, reduzindo sua participação relativa. Hoje, a energia nuclear gera 2,7 terawatts-hora (1 terawatt equivale a 1 trilhão de watts), 17% do total.

A tendência de redução não nos livra do passivo ambiental causado pela energia atômica. “Falam que vão descobrir uma solução para a armazenagem dos resíduos, mas estão pesquisando há meio século, gastando bilhões todos os anos, e ainda não sabem como fazer. Acho que nunca vão encontrar uma solução”, opina o engenheiro ambiental belga Pierre Paludgnach, especialista em planejamento energético. O lixo atômico é apenas a parte mais visível do problema. Não há estudos suficientes sobre os impactos ambientais que esta tecnologia pode causar. Em parte porque seu uso militar justifica o rótulo de “top-secret” até nas atividades civis. O estrago só costuma ser conhecido depois que acontece um grande desastre, seja intencional — como as bombas de Hiroshima e Nagasaki — ou acidental, como Chernobyl.

Mas alguns desastres, mesmo depois de descobertos, permanecem longe da grande mídia. Em outubro de 1998, a Universidade de Bremen, na Alemanha, analisou o solo na região do complexo atômico de Sellafield, na costa Oeste da Inglaterra. Amostras recolhidas a 11 km de distância apresentavam a presença de elementos radioativos, como o isótopo americium-241, cobalto-60 e césio 137, em proporções até 20 vezes maiores que as apresentadas a distâncias bem menores – na ordem de centenas de metros – do antigo reator de Chernobyl, na Ucrânia.

Para Jean McSorley, coordenadora da campanha nuclear do Greenpeace na Inglaterra, a descoberta não foi nenhuma novidade. Há mais de 20 anos ela coleciona dados sobre a “miscommunication”, ou desinformação, da indústria atômica mundial. Em 1990, publicou o livro Living in the Shadow (“Vivendo nas Sombras”). A obra conta a história de alguns habitantes da região de West Cumbria, às margens do mar da Irlanda, onde foi implantada a usina de Sellafield. Em resumo, o livro relata como os efeitos do complexo na saúde e no meio ambiente locais são encobertos por um poderoso aparelho político e econômico. Valendo-se da complexidade do assunto e das incertezas da ciência, oculta-se os “desconhecidos” impactos na saúde e no meio ambiente e valoriza-se a importância da indústria para o emprego e a riqueza nacional.

O chamado Black Report, um dos estudos oficiais sobre saúde feitos na Inglaterra no início dos anos 80, mostrou que a região em volta de Sellafield apresentava uma taxa de leucemia em crianças 10 vezes maior que a média nacional. “A radiação é a única causa cientificamente comprovada de leucemia infantil”, lembra McSorley. E seus efeitos podem se estender no tempo. Em Londres, na primeira Conferência Internacional sobre Leucemia Infantil, realizada em setembro, cientistas da Universidade de Leicester apresentaram evidências da transferência de pai para filho dos efeitos da radiação. “Nossos experimentos com ratos mostram que a instabilidade genética provocada pela radiação pode ser transmitida para as futuras gerações”, declarou o professor Yuri Dubrova, autor do estudo.

Esporadicamente, a imprensa se refere às descargas radioativas e acidentes de Sellafield. “BNFL continua liberando gás assassino” foi o título de uma reportagem do jornal The Guardian em 3 de setembro deste ano. BNFL é a sigla para British Nuclear Fuels Ltd., a estatal que controla Sellafield e outros 17 complexos nucleares no país, além de outras 36 operações nucleares em 15 países. O “gás assassino” é o krypton-85, um dos subprodutos do reprocessamento do combustível nuclear, onde se mergulha o combustível já usado em ácido, para recuperar plutônio e urânio. Sellafield lança 500 metros cúbicos desse gás todos os dias na atmosfera. Segundo estimativas do governo, isso provoca 100 novos casos de câncer por ano, dois deles fatais.

Mesmo com as evidências da relação entre a energia atômica e doenças como o câncer, apenas algumas ONGs dedicam-se a ir à raiz do problema e apontar a indústria nuclear. Em 12 de outubro, um artigo da revista New Scientist cruzou os dados de um relatório do ministério britânico com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (WHO) e as da Organização Mundial para Alimentação e Agricultura (FAO). O relatório, chamado “Radioactivity in Food and the Environment / RIFE-8, 2003”, mostrava uma abrangente contaminação por plutônio nos frutos do mar retirados da costa noroeste inglesa e da costa sudoeste escocesa. “A culpa pela contaminação está certamente nas atividades de Sellafield”, acusou Janine Allis-Smith, ativista do CORE (Cumbrianos Contra o Ambiente Radioativo, na sigla em inglês). Em alguns locais, a quantidade de material radioativo encontrado ultrapassava em 200 vezes o limite proposto pela WHO e a FAO, que entrará em vigor a partir em 2005. Isso significará o banimento de todos os frutos do mar daquela região.

No site da BNFL nada faz crer que a indústria nuclear possua tais riscos. “Asseguramos nossas atividades, produtos e serviços cumprindo a legislação e seguindo os padrões ambientais estabelecidos. Todos os nossos complexos nucleares na Grã-Bretanha, assim como nossa usina de fabricação de combustível atômico na Suécia, têm certificação ISO 14001, padrão internacional de gerenciamento ambiental”, diz a home-page da empresa.

Analisar o exemplo de Sellafield é fundamental para entender o comportamento da indústria nuclear. O complexo começou a ser construído em 1947, para servir à produção de plutônio das bombas nucleares inglesas. Ao longo do tempo, sofreu diversas modificações para continuar atendendo ao bilionário mercado bélico e civil da energia atômica. Em 1957, por uma pane no sistema de resfriamento do reator, o combustível atômico se incendiou. Para controlar o fogo, após diversas tentativas, os técnicos usaram água, gerando uma enorme quantidade de vapor radioativo, jogado na atmosfera. Semanas após o incidente, todas as propriedades da região receberam a visita de agentes do governo e técnicos da BNFL, ordenando que o leite produzido pelas vacas da região fosse jogado fora. Eles também recolheram análises da terra e de plantas, recomendando que ninguém comesse, até segunda ordem, os legumes colhidos ali. Ninguém nunca soube quais foram as conseqüências do acidente. Os resultados das análises não foram divulgados.

O episódio, conhecido como “Fogo de Windscale”, é até hoje considerado o segundo maior acidente nuclear da história, perdendo apenas para Chernobyl. Apesar da gravidade do ocorrido, um inquérito oficial apontando as falhas de segurança do complexo só veio em 1977, vinte anos depois.

Políticos, empresários e até alguns sindicalistas apóiam a construção de novas usinas atômicas na Grã-Bretanha. Se não pelo desenvolvimento da nação, que seja pelo aquecimento global. Em maio, receberam o reforço de Sir James Lovelock, o ecologista criador da teoria de Gaia. Segundo sua visão apocalíptica, “Não há tempo para pensar. Energia nuclear é a única salvação contra o aquecimento global”, declarou. Logo vozes contra e a favor da tecnologia dos átomos pulularam em várias partes da mídia. No solo inglês, mais uma vez, será travada uma batalha decisiva.

A indústria nuclear ainda recebe subsídios indevidos. Em setembro deste ano, a Comissão Européia para Competitividade autorizou o governo britânico a dar um subsídio de 9 bilhões de dólares para a British Energy (BE), operadora de reatores atômicos. O dinheiro visa cobrir custos de gerenciamento do lixo atômico e remediar os passivos das usinas. Porém a maior parte da imprensa britânica esqueceu que, em 1996, quando a BE foi privatizada, a responsalidade contratual pelos resíduos era dos novos controladores. “É escandaloso que os contribuintes continuem pagando, periodicamente, pelas operações de um sistema perigoso de geração, que já se mostrou incapaz de viabilizar-se sem o massivo financiamento governamental”, critica McSorley. Segundo ela, a decisão serve como precedente para outros países da União Européia continuarem subsidiando suas indústrias nucleares.

Enquanto a discussão sobre a tecnologia atual, a fissão (ou quebra) atômica, parece não ter fim, o próximo passo já está sendo dado. É o projeto do Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER). Avaliado em 5 bilhões de euros, reúne União Européia, Estados Unidos, Rússia, China, Japão e Coréia do Sul, com o objetivo de desenvolver a fusão nuclear. A base de funcionamento do novo processo é a água. Dela se extrai o hidrogênio, que passa por reações químicas e físicas até se transformar em hélio, deutério e trício (formas pesadas de hidrogênio), gerando grande quantidade de energia. Além da maior eficiência energética, o reator de fusão terá a vantagem de produzir muito menos lixo radioativo que as usinas atuais. Mas a aplicação comercial desta nova tecnologia ainda vai demorar. O ITER planeja concluir seu desenvolvimento até o ano 2050.

A fusão nuclear é vista como solução de longo prazo para problemas energéticos, limitando a poluição e permitindo o uso ilimitado da água do mar como combustível. “Desde que começaram as pesquisas sobre fusão atômica para o uso civil, em 1970, a potência energética obtida com o método melhorou milhares de vezes”, conta o professor Alexandre Marian Bradshaw, diretor do Instituto Max-Planck de Física Plasmática. Ele acredita que novas descobertas devem acontecer, alterando todo o contexto da produção de energia atômica atual. Em março, a revista Science publicou o trabalho de uma equipe de pesquisadores do Tennessee, Estados Unidos, que assegura ter chegado perto desse sonho. Alguns especialistas esbravejaram, dizendo que a publicação foi, no mínimo, prematura.

Mas a segurança ambiental da nova técnica é uma incógnita. Em julho, dois grupos ambientalistas anunciaram que processariam o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE), por violação da lei federal na operação de limpeza da contaminação química e nuclear no campo da companhia de aviação Boeing, na Georgia. Segundo o Conselho de Defesa dos Recursos Naturais e o Comitê de Pontes, o local, palco de uma fusão nuclear militar em 1959, mesmo após ter sido saneado, ainda representa uma ameaça à saúde humana e ao meio ambiente. Observadores estão pedindo a revisão dos estudos de impacto ambiental na área. A Boeing não se manifestou sobre o caso.

No Brasil, a política nuclear divide até os Ministérios responsáveis. Segundo fontes do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), “o Programa Nuclear Brasileiro (PNE) é uma das prioridades do Governo Federal”. Uma Comissão Interministerial, coordenada pelo MCT, deve apresentar até o fim de novembro um relatório com propostas para o PNE. As diretrizes do Programa ainda são desconhecidas, mas a assessoria do Ministério garante que o Governo “pretende expandir a produção de energia nuclear”. Não é o que pensa o Ministério das Minas e Energia. A ministra Dilma Roussef declarou que as usinas atômicas não estão entre suas prioridades. Segundo ela, a expansão da produção de energia virá do investimento em novas hidroelétricas.

* Mariano Senna da Costa é jornalista e editor-executivo da agência de notícias Ambiente Já. Atualmente vive na Alemanha, cursando mestrado em Mídia Digital na Universidade de Lübeck.

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