No início de dezembro, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos promoveu uma série de eventos para comemorar seus 65 anos. A cerimônia principal foi a entrega da medalha Von Martius a 15 personalidades que se destacaram na história do Parque ou por sua contribuição à preservação da região. Entre os homenageados estava Luzia Freitas Caracciolo, a primeira mulher a escalar o pico Dedo de Deus, principal símbolo de Teresópolis e do Parque.
Aos 90 anos, Luzia definiu sua volta ao local como “um mergulho no tempo”. Há vários anos não visitava a Serra dos Órgãos, e ficou bem impressionada com o que viu. “É muito bom ver que o Parque está organizado. Facilita a ida de mais pessoas para um local tão lindo”, diz. “Bichos como o lagarto teiú estão voltando para a mata”, conta ela, municiada de folhetos institucionais e visivelmente interessada na preservação das áreas naturais que ela conhece de outros tempos, antes mesmo do Parque existir.
Luzia sempre gostou de praticar atividades esportivas. Quando tinha 20 anos, soube que um grupo de amigos pretendia escalar o Dedo de Deus. Eram todos homens, e ela decidiu ir também. “Não queria que uma estrangeira levasse o título de primeira mulher a subir o Dedo de Deus”, explica. Mas para ser aceita no grupo, ela precisou passar por uma fase de testes. Subiu primeiro a Pedra da Gávea, no município do Rio. Na semana seguinte, enfrentou a Chaminé do Morcego, no Morro do Cantagalo, também no Rio. “Foi uma escalada bem difícil. A gente não pensava nos riscos que corria. Desafiávamos o perigo para só depois perceber o que tínhamos feito”, lembra. E sempre de saia e calção por baixo, como as moças usavam então. “Mulher de calça era chamada de mulher-homem”, diz Luzia.
Aprovada no teste, ela embarcou alguns dias mais tarde com os amigos no trem para Teresópolis. Já na serra, o grupo de alpinistas pediu ao maquinista que desacelerasse, arremessou as mochilas e saltou para fora do trem. Eram 8 da manhã quando começou mais uma etapa da aventura de Luzia e seus amigos – desta vez de calça, já que não havia mais ninguém na trilha. Subiram a montanha com bastante dificuldade. No lugar das cordas de sisal, que davam segurança aos escaladores desde a conquista do pico, em 1912, o grupo já usava cabos de aço. Mas ainda não havia sapatilhas de escalada com solado de borracha. Escalava-se com sandálias de sola de corda trançada, chamadas “china-pau”. Para percorrer as trilhas, botas com pregos na sola.
Às 8 horas da noite de 30 de setembro de 1933, Luzia alcançou os 1.692 metros do cume do Dedo de Deus, acompanhada de quatro amigos: David Couto, Mario Barroso Filho, Morgan Thomas e Alfredo Mello. Eles eram conhecidos como o “Grupo do Prego” no Centro Excursionista Brasileiro (CEB), o mais antigo clube de montanhismo da América do Sul. Seu irmão e uma amiga alemã que os acompanhavam desistiram da escalada no Paredão Vilela e pernoitaram num platô. “Minha mãe só deixou que eu fosse nessa aventura se meu irmão e outra mulher estivessem comigo. A menina não agüentou e teve que parar”, explica.
Era noite de lua cheia e por sorte não fazia muito frio. Passaram a noite no topo, agitados e animados. “Minha água vazou do cantil e molhou o cobertor que levei. Mesmo se estivesse seco, eu não teria conseguido dormir. Ninguém dormia”. Às 2h da manhã, Luzia descobriu que sua conquista foi pioneira por um triz: um outro grupo atingiu o cume do Dedo de Deus. E nele, vinha uma mulher alemã.
Assim, Luzia Freitas Caracciolo tornou-se parte da história do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. O Parque, por sua vez, ficou gravado na história de Luzia, não só pela conquista daquela noite mas também porque ela acabou se casando com um de seus companheiros na escalada – Morgan Thomas. A lua-de-mel não poderia ter sido em outro lugar. Em julho de 1937, Luzia e Morgan voltaram ao cume do Dedo de Deus.
Foram muitas as suas escaladas na região. Em novembro de 1933, subiu pela primeira vez a Pedra do Sino, ponto culminante da Serra dos Órgãos, com 2.263 metros. Nos anos seguintes, voltou ao mesmo pico por mais oito vezes. Naquela época, ela recorda, “o Parque era considerado um lugar mais remoto”, o que explica as melhores condições dadas hoje à prática do montanhismo. “No abrigo 4 da Pedra do Sino havia camas, mas não colchões. Hoje o parque está preservado e tem infra-estrutura mais adequada”, explica. Luzia também esteve onze vezes na Pedra da Gávea e aventurou-se por muitas trilhas do Rio de Janeiro com amigos excursionistas. Também subiu duas vezes ao Pico das Agulhas Negras (2.792 metros), no Parque Nacional de Itatiaia (RJ).
Quando nasceu seu primeiro filho, em 1940, deixou de escalar. Mas não ficou parada por muito tempo. Primeiro passou a velejar com a família. Depois, quando seu marido vendeu o barco, ela assumiu o posto de tripulante no veleiro de sua amiga Margareth Schmidt – a primeira mulher a competir em vela no Brasil e tia dos atletas Torben e Lars Grael.
Esportista praticante até hoje, Luzia participou, em junho, do Campeonato Mundial de Masters de Natação em Riccione, na Itália. Voltou com cinco medalhas de ouro, nas modalidades de 200, 100 e 50 metros costas, e 100 e 50 metros peito. A dedicação aos treinos e competições acaba comprometida pelos afazeres da rotina: bordar, fazer bolos, cuidar da casa e de seus três cachorros. “Meu tempo é pouco para fazer tudo”, afirma. Mas não é uma queixa. “Mordomia deixa a gente mole. A gente não pode é parar”.
O chefe do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Ernesto Viveiros de Castro, considera Luzia um símbolo do parque e diz que ela ganhou a medalha comemorativa Von Martius por representar a classe dos montanhistas, muito importante para o Parque, e sobretudo as mulheres esportistas. A medalha foi instituída pelo Parque Nacional este ano. Além de Luzia, foram condecorados ex-funcionários e pesquisadores que atuaram na unidade, e Adriana Rosa e Silva, tataraneta de José Américo de Oliveira, conquistador do Dedo de Deus, em 1912.
A distinção recebeu este nome em homenagem a Friedrich Phillip von Martius. Nascido em Erlangen, na Alemanha, o pesquisador alemão chegou ao Brasil integrando a comitiva da arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina. Parte do acervo de Von Martius está no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, por onde ele passou durante a expedição científica que empreendeu por vários estados brasileiros ao lado do zoólogo von Spix, a partir de 1817. Sua mais importante obra – Flora Brasiliensis – tem 42 volumes com a descrição de 22.767 espécies da flora brasileira, 6 mil delas até então desconhecidas da ciência.
* Daniela Caride é jornalista e alpinista, com especialização em Ciências Ambientais. Trabalhou por sete anos na Gazeta Mercantil e hoje é consultora de comunicação corporativa.
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