Reportagens

Serra das Confusões, fera intocada

O maior cenário de caatinga do mundo é intenso. Não é qualquer um que consegue chegar neste lugar cheio de barreiras e segredos. Tampouco sair.

Carolina Mourão ·
5 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás


Foi ano passado que dois caçadores entraram com rifles nos domínios do parque em busca de animais raros. As famílias, afinal, acionaram o Ibama, que fez o resgate. Um deles não suportou e morreu de sede. O segundo foi encontrado ao lado, gemendo. Foi ano passado também que uma ciclista morreu desidratada numa prova de resistência no parque.

Com área mais de quatro de vezes maior que a cidade de São Paulo, no Parque Nacional da Serra das Confusões amador não tem a menor chance. São 502 mil hectares – a maior extensão de caatinga do mundo, o único bioma totalmente brasileiro. Orientar-se pela vegetação, cânions e cavernas, tudo muito parecido, não é fácil nem para o sertanejo. Lampião preferiu não arriscar a ficar condenado, vagando em círculos, e optou pelo Raso da Catarina, igualmente selvagem, onde Antônio Conselheiro também conspirou.

Ao olhar menos atento, parece que a imensa zona é morta, e que de lá a vida foi banida. Mas ela explode disfarçada onde os espinhos substituem as folhas. A serra abriga mais de mil espécies animais e vegetais que sobrevivem normalmente às extremas condições, adaptadas para economizar energia. Antropólogos dizem que até a baixa estatura do homem da caatinga é resultado de uma adaptação ao ambiente – quanto menor a área onde o sol incide sobre o organismo, melhor para se movimentar e sobreviver à incerteza da falta de água, e até mesmo para andar entre os espinhos.

Nas Confusões, a onça negra, raríssima pantera brasileira, também desenvolveu seus métodos. Da cor da noite, dizem que não fita diretamente a presa para não denunciar sua presença e jamais ser notada. Que, quando ocorre um ataque, não se sabe dizer o que foi ou de onde veio, e tudo está acabado em poucos minutos. As onças parda e pintada se misturam com a vegetação rasteira, suaves e invisíveis também de dia. Santuário de outros animais em extinção como o tamanduá-bandeira e o tatu-canastra, nas Confusões também vive o maior morcego das Américas, o Vampyrum spectrum, amarelo, que tem um metro de envergadura e é endêmico daquelas cavernas.

A importância desta área que está preservada é altíssima. Segundo o professor Paulo Sales, ecólogo da Universidade de Brasília, a caatinga, mais que o cerrado, é pouquíssimo estudada e está também em extinção. “Uma área deste tamanho com 4 paisagens diferentes de caatinga é um elo perdido entre o passado e o presente que vai trazer grandes surpresas científicas. Foram milhões de anos de seleção natural. Imagine o patrimônio genético deste lugar. A área também tem grande potencial econômico de pé e deve ser explorada, já de início, de forma sustentável”, ressaltou.

A paisagem da serra das Confusões é ancestral e conserva exemplares vegetais de 12 mil anos, época em que a região era úmida. Ainda hoje há lugares de água perene, como a gruta Riacho dos Bois. Lá, durante uma época do ano, no chamado inverno, o cenário torna-se mais inacreditável, tamanha contradição: atoleiros em plena caatinga.

Criado em 1998, o Parque Nacional da Serra das Confusões ainda não está aberto, porque não há infra-estrutura adequada para receber visitantes. José Wilmington Paes Landim Ribeiro, o Mitinha, filho de deputado e diretor no Ibama local, parece fazer de tudo para resolver a vida de quem se arrisca por lá, mas não encoraja os aventureiros. “A gente até desestimula as pessoas que querem vir, apesar da vontade de trazer o turista. Depois que chegam, se vêem numa situação diferente da que planejaram, sem apoio nenhum de infra nem planejamento de rotas, é desconfortável e perigoso”, afirmou. Recentemente Mitinha disponibilizou o próprio carro para fazer visitas a campo com pesquisadores da USP, que chegaram desavisados. A casa também não escapou: virou hotel base. Segundo ele, a situação do parque é muito difícil porque não há condições estruturais para fiscalizar e encaminhar os visitantes. Apenas ele faz o serviço em toda a área do parque, que por sorte tem acesso difícil. Segundo o diretor, para uma fiscalização segura e eficiente, seriam necessários no mínimo 20 fiscais divididos em 5 grupos de 4.

A Serra é quatro vezes maior do que a da Capivara, vizinha também no Piauí, e apresenta as mesmas características geomórficas, sendo provavelmente da mesma idade. Como também tem litogravuras nos paredões rochosos de grande valor histórico, científico e cultural, e por ser totalmente inexplorada, especialistas especulam que a riqueza das Confusões é comparável (senão maior) à do Parque vizinho, que já conquistou o título de Patrimônio Cultural da Humanidade por abrigar o Museu do Homem Americano e suas relíquias arqueológicas.

Os estudos de Niéde Guidón, responsável pelo Parque da Serra da Capivara, revolucionaram a teoria da ocupação humana nas américas. Niéde defende que o homem teria chegado há mais de 50 mil anos no continente, durante a última era do gelo, vindo de múltiplas rotas, já que o nível do mar estaria baixo. A teoria que vigorava até então defendia a chegada do homem há 20 mil anos. A fogueira de 40 mil anos encontrada por Niéde reforça a importância de se preservar toda a região para estudos.

Indiferente às especulações arqueológicas, a Serra das Confusões já seria um patrimônio incalculável pelo imenso domínio de caatinga intocada, e por isso mesmo o homem ainda não está preparado para ela. Nem ela para o homem. Aquilo ali não é mesmo lugar para gente.

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