Reportagens

A Baía de Guanabara não está morta

Documentarista registra a diversidade da vida marinha que resiste, apesar da poluição. Filme será exibido durante Conferência dos Oceanos, na ONU

Daniele Bragança · Márcio Lázaro ·
4 de junho de 2017 · 8 anos atrás

Apesar das inúmeras agressões e de sua morte já ter sido propagandeada (e até ensaiada), a Baía de Guanabara resiste e ainda respira, sem a ajuda de aparelhos. Foi essa abordagem que o biólogo, pescador aposentado e documentarista Ricardo Gomes, 48 anos, procurou registrar, durante os quase dois anos em que mergulhou em busca da fauna marinha escondida nas águas turvas da baía oceânica.

A tarefa quase sempre era solitária e um tanto escura: Ricardo preferia mergulhar a noite, carregando sozinho 50 kg de equipamento, com o objetivo de capturar o cotidiano dos animais que a população ignora que ainda existem ali.

A dedicação valeu a pena: na próxima quarta-feira (07), o filme “Baía Urbana” estreará oficialmente na Conferência dos Mares, na ONU, em Nova York. A conferência discutirá o  objetivo de desenvolvimento sustentável nº 14 (ODS 14), que prevê a conservação e o uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos. O filme aborda três problemas sérios que afetam os oceanos: a poluição, a acidificação oceânica e o aquecimento global.

Ricardo e sua obsessão: filmar a Baía de Guanabara. Foto: Divulgação.
Ricardo e sua paixão: filmar a Baía de Guanabara. Foto: Divulgação.

“A Baía de Guanabara é um grande reflexo do oceano como um todo. Em Ipanema tem um emissário submarino jogando esgoto ali de toda a zona sul e boa parte do centro da cidade direto ao mar sem nenhum tratamento. O esgoto salta ali a 4 quilômetros da praia. Mas ele acaba indo, parte dele, para mar aberto, você não vê muito esse esgoto na praia. A Baía de Guanabara,  como mais fechada, a gente vê melhor o mal que a gente está fazendo para o oceano”, diz Gomes.

Raias-borboletas

A poucos metros da Praça XV, em pleno centro carioca, uma aglomeração de raias-borboletas (Gymmura altavela) dominou o cenário de uma das partes mais poluídas da cidade. A cena, inverossímil, foi filmada por Ricardo após receber um alerta de um pescador. Às 21h de um domingo, maré cheia, mais de 100 raias-borboletas se agruparam num encontro difícil de acreditar, bem embaixo das barcas.

“Eu desci ali embaixo das barcas, no domingo, à noite, e foram mais de cinquenta, cem arraias, raias-borboleta, cada uma do tamanho de um fusca, com dois metros e meio de envergadura. E eu estava sozinho, fiquei me lembrando daquele australiano documentarista [Steve Irwin] que morreu com o ferrão de arraia. Eram tantas que eu não achava um lugar na areia para apoiar a mão”, conta Gomes.

As raias-borboletas estão classificadas na categoria Vulnerável na lista vermelha da IUCN. Encontrá-las reunidas numa das baías mais poluídas do país é apenas umas das surpresas que Ricardo conseguiu registrar no filme.

Tartaruga-verde nadando na Urca. Foto: Ricardo Gomes.
Tartaruga-verde nadando na Urca. Foto: Ricardo Gomes.

As raias foram a deixa que faltava para chamar atenção para o potencial econômico  que toda essa biodiversidade pode render. A Baía de Guanabara é a quinta maior baía do mundo em elasmobrânquios, sub-ordem que compreende os tubarões e as raias, e só entra nessa disputa por causa das sete espécies de raias que moram ali.

“Têm países que exploram turismo subaquático, que as raias são as grandes estrelas. Uma raia viva, ela vale mais de US$ 20 mil dólares por ano, um dinheiro gerado com o turismo. E aqui vale R$ 100 reais e acabou. A raia pode viver até cem anos. Multiplica. Se ela vive cem anos, ela vale US$ 2 milhões de dólares. Esse paradoxo, todo o potencial econômico perdido é muito fácil das pessoas entenderem”.

Atrás da maré cheia

Baía Urbana foi quase todo filmado à noite, quando a maré subia. É quando a qualidade da água melhora e se consegue controlar a iluminação para filmar, sem interferência da luz solar. Para Gomes, é mais fácil se aproximar da fauna marinha nesse horário.  

Se filmar de dia é mais difícil por causa da iluminação, de noite a dificuldade está na segurança do mergulhador. Não foram poucos os perrengues que Ricardo Gomes passou, sozinho, registrando a vida marinha. Ele destaca uma situação de quase não volta.

“Às vezes a maré cheia batia meia-noite, onze e meia da noite, uma da manhã. Eu ia nesse horário, fazer mergulhos solitários, nadando dois quilômetros pela enseada de Botafogo, encostando o Pão de Açúcar, sem nenhum tipo de segurança. Ia sozinho, confiando no meu equipamento (…). Na penúltima filmagem do filme, eu estava na ponta do Pão de Açúcar, tipo 22h da noite, e fui para o fundo para retornar à praia pela areia, para ver se eu conseguia filmar os linguados”, explica

Após nadar por cerca de 40 minutos pelo fundo, Ricardo achou que já estava próximo da praia, mas não estava. Quando subiu a superfície, viu que estava chegando na boca da Barra, na ponta do Pão de Açúcar, e por mais esforço que fizesse, a correnteza não deixava ele avançar um milímetro. “A correnteza estava me puxando para um lado e eu nadando para outro. Eu pensei ‘vou me afogar aqui, quase acabei o filme e vou morrer afogado aqui. Vou deixar a correnteza me levar e vou sair lá em Niterói’”.

Moréia Verde surge de um buraco qualquer. Foto: Ricardo Gomes.
Moréia Verde surge de uma toca no fundo da Baía. Foto: Ricardo Gomes.

Foi quando ele decidiu ir pelo fundo se arrastando pelas pedras até sair da área de correnteza. Deu certo. Naquela madrugada solitária e de susto, o documentarista foi recompensado com uma cena que está registrada no final do filme.

“Retornando para a praia, nas pedras, eu parei e filmei um polvinho bem pequenininho. Quando vi, o polvinho esticou um tentáculo, esticou uns 80 centímetros. Eu nunca vi um tentáculo de polvo ficar tão esticado. Quando percebi, ele estava tentando tatear o meu dedo, eu virei e filmei a hora que o polvo veio com o tentáculo dele e encostou na minha luva furada, foi tipo “contatos imediatos do terceiro grau”, outro planeta”, ri.

Legados do Baía Urbana

Agora, Ricardo Gomes pretende abrir, com o economista Ariel Kozlowski, o Instituto Mar Urbano, para fazer a ponte entre a ciência e a grande massa da população: “Queremos popularizar a ciência, fazer com que as decisões governamentais sejam baseadas na ciência, não por causa dos cientistas fazendo pressão aos governantes, mas porque a população vai ficar sabendo que aquele conhecimento científico pode mudar a vida delas para melhor”, afirma.

Linguado camuflado. Foto: Ricardo Gomes.
Linguado camuflado. Foto: Ricardo Gomes.

A ideia é mergulhar nos mares urbanos do Brasil inteiro, e trazer à tona a biodiversidade escondida nesse litoral. “Parece que a gente conhece mais de Marte do que da Praia de Copacabana. Então, a gente tem que caminhar tudo ao mesmo tempo, junto com a ciência, com a tomada de decisão, tem que estar mostrando a riqueza do mar para as pessoas se inspirarem e entenderem todo o potencial econômico que o oceano saudável poderia trazer para a grande massa da população”, explica.

Por Nina

No meio das filmagens do documentário “Baía Urbana”, a minha filha nasceu, a Nina. Quando eu comecei a fazer esse filme, a minha intenção era salvar a Baía de Guanabara. Quando a Nina nasceu, eu vi que não, esse filme é pra ela, esse filme é para as crianças que estão hoje aqui e que não vão ter futuro se a gente não trouxer o oceano para a nossa sala de jantar. Se a gente não trouxer o oceano para perto do nosso coração, se a gente não colocar o oceano no lugar que ele tem que estar, no lugar das coisas imateriais da nossa vida. No lugar onde a gente coloca o nosso filho, no lugar onde a gente colocar o nosso pai, no lugar onde a gente coloca aquilo que é mais importante da nossa vida”, finalizou.

 

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  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

  • Márcio Lázaro

    Jornalista, repórter cinematográfico, editor de vídeo e imagens, mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (UFRJ).

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Comentários 2

  1. José Truda diz:

    Ricardo Gomes faz parte de uma geração de novos ambientalistas que tem muitíssimo a contribuir nesse Brasil de ignorância e descaso para com o que resta de nossa biodiversidade. Tomara que esse trabalho valiosíssimo sobre a Baía da Guanabara seja somente o começo de muitos trabalhos similares ao longo de nossa combalida costa.