Reportagens

A solitária invernagem no Ártico

A velejadora e escritora Tamara Klink compartilhou o que viveu, viu e sentiu durante sua invernagem de oito meses no Ártico a bordo do Sardinha 2

Paulina Chamorro · André Casé ·
22 de novembro de 2024

“A gente é feito de natureza. Nascemos, respiramos, envelhecemos e morremos e não conseguimos ficar fora dela, porque a natureza está em nós mesmos”. A navegadora e escritora Tamara Klink conversou, diretamente do Porto de Ilulissat, na Groenlândia, com esta repórter em julho de 2024 e compartilhou os sentimentos, hábitos, medos, pensamentos e sonhos que teve ao longo dos oito meses em que invernou, completamente sozinha, no Ártico.

Filha de Amyr Klink, a velejadora concluiu o feito aos 26 anos e, até então, não houve registros de outra mulher que tenha invernado no Ártico, completamente só. Tamara foi viver seu sonho de infância e se deparou com seus mais profundos medos e pensamentos. Encontrou no silêncio a contradição das palavras e na natureza a incoerência do ser humano.

A bordo do barco Sardinha 2, ficou três meses sem ver o sol e quatro meses sem ver pessoas. Klink pescava o seu alimento e derretia pedaços de iceberg para se hidratar, ao passo em que se deparava com ossos de ancestrais e fazia amizade com raposas e pássaros. Viveu tudo isso debaixo de um céu estrelado e iluminado pelas cores das auroras.

Se viu insignificante diante do tamanho da natureza e percebeu o impacto das mudanças climáticas ao seu redor. De volta à terra firme, Tamara Klink compartilha, nesta entrevista, o que viu e viveu nesses oito meses e de que forma se percebeu não útil para a sociedade, ao mesmo tempo em que se entendia como parte da natureza nesta (não tão) solitária invernagem no Círculo Polar Ártico.

Paulina Chamorro: Eu tenho acompanhado a sua forma de se comunicar com o mundo durante essa invernagem. Essa busca pelo seu eu, né? Essa sua voz interior. E me trouxe uma dúvida se existe um paradoxo, ou uma dualidade, já que quanto mais a gente se aprofunda em nós, mais descobrimos o quanto insignificante somos perante a natureza. Mas ao ser a primeira mulher a realizar isso, ao mesmo tempo, você marca uma série de coisas, né? Ou seja, não é mínimo e não é insignificante. Como é que você vive essa emoção de ir tão profundo internamente e, ao mesmo tempo, representar algo tão grandioso para tantas pessoas?

A velejadora Tamara Klink durante a invernagem. Foto: Arquivo Pessoal/Tamara Klink

Tamara Klink: Tem muito mais coisas que existem fora das palavras do que dentro delas. O que eu sentia, e sinto agora ouvindo você, é que tem muito mais coisas sendo ditas nos espaços vazios, nos silêncios, nas repetições de palavras, na tentativa de reformular uma pergunta com outra perspectiva. E o que eu sinto é que as palavras são muito pobres. Ao longo da viagem, eu me comuniquei com o lugar que estava ao meu redor. E ele se comunicou? Comigo, provavelmente não. Talvez sim. As raposas, de alguma maneira, se comunicavam.  As aves também. E não havia palavras no meio. 

Acho que as palavras dão uma falsa impressão de que existem coisas que não existem e de que a gente pode controlar ou possuir coisas que a gente não pode, até a própria ideia de natureza. Para mim, não faz mais sentido separar a natureza do humano. A gente é feito de natureza, a gente respira, a gente morre, a gente envelhece, a gente nasce. Então a gente não consegue ficar fora, porque a natureza está em nós mesmos. Você falou também sobre ser a primeira ou ser última. 

A Groenlândia é um lugar habitado há muitos anos. Alguns milhares de anos. Então não dá para saber exatamente quem foi a primeira e quem foi a última. O que eu sei é que não encontrei registros de outras mulheres que tivessem feito isso, então não pude me apoiar nesses registros para fazer essa viagem. E as pessoas com quem conversei, e os que fizeram um estudo sobre isso, também não encontraram. A existência ou não desses registros não é a prova de que isso não aconteceu antes. Acredito que tenha acontecido, só não houve registros. O que eu mais sinto é assustada com esse poder que as palavras têm de ir abrindo caixinhas na nossa cabeça, trazendo imagens de memórias, de sonhos, de várias coisas. Acho que a minha própria resposta agora. Ela virou uma bagunça. 

Eu vi recentemente uma conversa nas redes de Ailton Krenak, em que ele falava sobre o barulho que o mundo tem e que, para encontrar a calma, precisamos visitar as florestas internas que nós temos para encontrar o que estamos realmente buscando. Tamara, sobre essa sua fala de que nós somos natureza, é um sentimento que você teve ao longo dessa viagem ou já existia antes e se intensificou?

Acho que a gente já sabe isso desde sempre. Eu acho que a gente só aprende na escola, nos livros, nas conversas, que a gente não é natureza e que a natureza é uma coisa que podemos admirar, contemplar ou salvar e destruir. A gente olha com essa distância e isso para mim é algo que é ensinado. Quando a gente existe, a gente sente sono como outros animais, até animais que não dormem do mesmo jeito que a gente. Até as baleias. Até as gaivotas. E a gente tem fome, a gente perde cabelo, a gente fica doente, a gente vence doenças e tudo que está ao nosso redor. Esse garfo aqui é feito de natureza e a transformação da natureza também faz parte da nossa natureza, quando a gente não existiria sem os objetos. Acho que isso é uma das características muito comuns dos humanos. Nós não somos a única espécie que produz utensílios, mas nós pensamos muito, até bem demais. E então não sei se foi uma catarse, isso foi uma descoberta. 

Acho que foi algo óbvio e que, quando eu passei a viver sem palavras, ficou mais evidente o quanto a mentira de humano de: um lado natureza e o outro o homem é insustentável. E acho que a tentativa de fazer cidades, de criar telas, de produzir livros, de criar salas de aula, de criar tempos, é uma tentativa de cristalizar essa mentira e tornar essa mentira uma verdade. Mas basta a gente se afastar do que perpetua essa lenda que a gente vê que não tem como separar humanos de natureza. 

Muita gente acredita que o nosso lixo, a nossa poluição, não vai nos atingir. Essa mentira institucionalizada que autoriza excessos, abusos, exploração, esvaziamento, destruição de florestas, destruição de fontes de água, poluição dos rios. A gente acha que não vai nos atingir, mas ficou muito claro que a gente vive num lugar onde a paisagem derrete ao nosso redor. Onde o mar para de congelar, as espécies que moravam mais ao sul do Planeta começam a ir cada vez mais ao norte. As baleias esse ano ficaram aqui na Baía de Disko até dezembro, o que é algo muito incomum. Geralmente as baleias iam embora muito antes, em outubro, porque navegavam em direção às águas mais quentes para ter seus filhotes. Agora elas ficam aqui por mais tempo.

Nós falamos aqui sobre uma alienação planetária como um sintoma, né? E talvez um resultado dessa crise climática que nós, como Planeta, vivemos como seres dessa teia da vida. E o que perdemos em não poder acessar o Planeta em que vivemos? O quanto estamos perdendo dessas conexões para não percebermos aonde estamos indo?

Acho que muita gente passa a vida inteira vivendo em ficções. E elas são muitas! A ficção que o tempo pode ser contado nos números que aparecem numa tela de relógio; a ficção de que a vida e o tempo de vida se conta em anos; a ficção de que o sucesso são distintivos, provas e nomes de lugares; a ficção de que a gente compra as coisas com dinheiro e não com tempo, renúncia e sorte. Tem muitas ficções. 

Eu sou escritora. Acho que faço parte da categoria de pessoas que também produz outras ficções e, pelo menos, as pessoas que nos leem acreditam que é uma ficção. Nós vivemos outras muitas ficções acreditando que elas são verdade. E o primeiro choque de voltar para esse Porto de Ilulissat [Groenlândia], voltei a ter internet ilimitada e parecia que nada tinha mudado. As coisas pareciam estar mais ou menos no mesmo lugar. O que eu vi de grande diferença era um prédio a mais de um lado. Ouvi dizer de algumas coisas que aconteceram em lugares distantes e, no tempo em que eu fiquei oito meses isolada, eu fiquei sem fazer nada considerado útil ou produtivo para a sociedade. Eu não trabalhei do jeito normal. Eu não transformei matéria. Eu não comprei nada. Não usei relógio. Não usei dinheiro ou cartão. E as pessoas que estavam aqui nessa cidade não pararam! Elas ficaram o tempo todo se movimentando, se deslocando, às vezes com pressa, vai e volta, vai até tal lugar e compra, depois compra mais objetos e joga fora. Nas redes sociais, um monte de coisa. 

Essas pessoas estão indo atrás do que? E ficou esse sentimento de que será que eu estou fora de alguma coisa importante? Será que eu perdi algo no caminho? Será que eu vivia de uma maneira errada? E aí parecia que o que eu tinha vivido era uma ficção, quando talvez seja a coisa mais verdadeira que dá para se viver, que é simplesmente existir sem as outras coisas que são as nossas falsas definições de sucesso, de conquista, de amor, de felicidade, de saúde. E acho que depois de oito meses, a gente pode dizer que não era uma ficção, era uma vida possível. E o sentimento que eu tinha antes de estar aqui era que, de certa maneira, eu estava ganhando vida ao invés de perder. Por mais que eu estivesse envelhecendo e eu via que eu estava envelhecendo, porque eu via as diferenças na minha pele, na cor do cabelo com fios brancos. Eu via meu corpo se transformar com o tempo, mas o sentimento que eu tinha era que eu estava ganhando vida. E que a vida não era possível de se contar com com anos de calendários de papel.

Seu veleiro e companheiro “Sardinha 2”, no meio do Ártico. Foto: Arquivo Pessoal/Tamara Klink

Eu lembro do pensamento de um de um escalador que falava que o mundo em que estamos vivendo está dominado por máquinas. E quase não resta no Planeta espaços livres para que a gente possa esquecer a sociedade industrial e testar nossas faculdades e energias primitivas. Ou seja, estar nesse estado um pouco mais simples e não fabricado, mais natural de ser, né? Viver e ter essa oportunidade. Tamara, eu queria que você nos contasse do trajeto. Você saiu da França e foi em  busca da Baía ideal para ancorar e aguardar essa transformação do tempo?

Eu saí da França em julho do ano passado, depois de ficar mais de 15 meses preparando o barco e a viagem. Eu levei aproximadamente um mês para chegar ao sul da Groenlândia. E levei mais um mês para subir a costa da Groenlândia até a Baía de Disko. Eu sabia que queria passar o inverno aqui [Groenlândia] e fiquei algumas semanas procurando Baías diferentes, que suspeitava que podiam ser bons abrigos. Escolhi um lugar, vim para esse Porto de Ilulissat para os preparativos finais. Então para comprar algumas ferramentas usadas para andar no gelo, que é um bastão de madeira com uma lâmina na ponta. Eu preparei um bastão com um anzol na ponta para buscar uma coisa que caiu no mar. E aí eu parti para o Fiorde que eu escolhi e, depois de três semanas, um caçador me disse que era um lugar péssimo. Aí eu fiquei chateada porque já tinha passado mais de um mês contando o tempo no começo do verão. E eu gostava muito daquele lugar, né? Eu achava muito bonito e eu já estava familiarizada com aquele ambiente. Esse caçador, que estava caçando no lugar onde eu estava, disse: “Vai embora daqui, porque tem muitos espíritos, pode ter urso. Quando você precisar ser resgatada, vai ser muito difícil alguém vir até aqui para te ajudar”. Mas eu não estava esperando ser resgatada, na verdade. E ele dizia: “Vai dar muito errado, porque você não tem força”. Tudo o que ele disse eu já tinha ouvido antes, mas sempre tem um medo a mais que a gente não tinha antes e que é acrescentado, porque as pessoas são generosas, né? [ironia] Todo mundo é muito generoso com os medos. E eu tive muita sorte, né? Muita gente foi generosa comigo, então eu fui adicionando esses muitos medos que eu ainda não tinha. Esse cara me disse que poderia vir um vento muito forte de Sudoeste, levantar muito o mar e quebrar as placas de gelo em muitos pedaços. Eu fiquei reflexiva durante dois dias, fiquei quase sem dormir pensando: “Meu Deus, se isso acontecer mesmo, eu perco meu barco”. Esse cara veio me dizer um monte de coisa e eu gostaria muito de ter com quem conversar, mas eu não tinha mais ninguém. Eu sabia que ninguém mais viria e eu decidi mudar para um lugar mais longe onde não tinha nenhum caçador. E onde era um pouco mais abrigado de ondas e de ventos. 

E foi aí que eu passei o inverno, um Fiorde onde eu nunca tinha estado antes. Eu nunca tinha ouvido falar desse lugar. Tinha montanhas muito altas, não era muito grande e não tinha lagos para beber água líquida. Eu sabia que ia ter que beber só água congelada. Não tinha muitos lugares para caminhar também! O sol já tinha se escondido três semanas antes. Então não ia ter sol e ia demorar para ele aparecer com aquelas montanhas altas.

Por oito meses, a velejadora viveu o Ártico de forma solitária. Foto: Arquivo Pessoal/Tamara Klink

Fui para lá e foi lá onde o inverno aconteceu. Levou um mês e pouco para o mar congelar e, quando o mar congelou, finalmente, depois de muitos descongelamentos, finalmente começou. E aí foi um alívio porque eu lidava com medos, né? A gente vive muitas coisas dentro da cabeça antes do medo se tornar uma coisa real. E isso tem um desgaste energético grande. Quando o mar congelou, eu tinha apenas que lidar com o que acontecesse. As grandes decisões já estavam tomadas e foi um certo alívio. E aí começou o momento que eu imaginava que seria o mais duro da viagem, porque era inverno, frio, menos trinta, menos quarenta graus. Se ficasse parado do lado de fora, durante uma hora sem se mexer, congela ou tem hipotermia. Não adianta a gente caçar para sobreviver, porque com menos trinta graus você precisa de energia para transformar coisas sólidas em líquidas. Eu achei que essa seria a parte mais difícil mesmo, mas no fim, até que não, porque a preparação envolve tantas perguntas que a gente não sabe responder, tantos medos e projeções negativas. Ainda mais quando se é uma mulher ouvindo os discursos protetores de: “Estou só te aterrorizando para te proteger. É para o seu bem.” Então quando a gente só vive, tudo é mais tranquilo e mais simples e foi muito legal. 

E sobre viver de forma mais simples, eu sentia que meus sentidos estavam muito melhores do que antes. Senti que eu podia confiar muito mais no instinto treinado de autopreservação, sobrevivência, de saber de onde vem o bicho, de dar atenção para o que eu percebo do corpo: “Hoje eu estou com dor de cabeça, com certeza eu precisava ter bebido mais água ontem.” Então é fazer coisas por nós e eu percebia muito mais o corpo, que é uma ferramenta muito poderosa e que é uma máquina, né? Uma máquina que já é feita de outra maneira.

O que você leu durante o tempo em que esteve só?

Eu gostei muito de ler Grande Sertão Veredas. Acho que é um livro que demanda uma certa coragem no nosso tempo. No ritmo urbano, é muito difícil ter a ousadia de ler um Grande Sertão Veredas, quando a gente parece estar medindo o livro por tempo perdido de leitura, mas foi uma boa leitura. 

Eu li Hermann Hesse, Sidarta Ribeiro, Nietsche, Socorro Acioli. Li “Chuva de Papel”, da Martha Batalha. Tem muito livro legal e são muito variados. Parecia mesmo que os personagens estavam lá. Quando acabava o livro, eu ficava muito chateada. Parecia que era uma despedida, tipo de rodoviária, que você não sabe se vai ver a pessoa. Era puxado para mim. E parecia muito real, porque era, né? Quando a gente vive as coisas na imaginação, elas são reais na nossa cabeça. 

O livro que eu gostei muito de ler no inverno foi em francês. Espero que tenha uma tradução logo. É da Lucie Azema: Les femmes aussi sont de voyage, que significa as mulheres também são da viagem. E ela fala duas coisas que eu senti que foram muito presentes na preparação e que eu acredito que sejam presentes na vida de muita gente que é colocar algumas mulheres que fazem algumas coisas como exceção. Isso é muito traiçoeiro. Eu tenho certeza que muitas outras mulheres são muito mais capazes do que eu de ficar isoladas no ambiente selvagem durante muito mais tempo em condições muito mais rudes do que essa. Eu não sou nenhuma exceção e não tenho nenhuma capacidade física melhor do que outras mulheres. Inclusive tenho muitas vulnerabilidades físicas na mão. Então é muito traiçoeiro ser colocada nessa nessa posição de exceção, porque parece que a gente não pode por muitas razões. Parece que a gente para de servir de exemplo do que é possível e começa a ser excluída do campo das coisas possíveis. E parece que o que uma mulher faz é inimitável, quando é imitável e muito superável. E outra coisa que ela fala que me marcou é sobre essa invisibilização sistemática dos relatos femininos, da voz feminina e do ponto de vista feminino. A gente tem uma visão do Planeta que foi construída do ponto de vista masculino e que foi sustentada também pela mão de muitas mulheres que estavam, literalmente, sustentando, gestando, parindo, criando e alimentando os homens que estavam construindo as narrativas que hoje são as dominantes. Então a gente tem a nossa própria visão do Planeta. Ainda tem muito a mudar, a crescer e a se enriquecer com outras narrativas de uma grande parte das pessoas, dos perfis e das vozes do planeta que foram excluídas e que não precisam mais ser excluídas graças às ferramentas de hoje. 

Tamara, quais foram os pensamentos mais e menos altruístas que você teve nesse período de solitude?

Os pensamentos menos altruístas talvez tenham a ver com alimentação. A gente pesca um peixe e se sente meio mal por matar para comer e encontrar dentro da boca do bacalhau uma sardinha que ele também estava comendo. Encontrar um caçador que vai caçar foca e achar aquilo cruel e injusto com a foca. E lembrar que a foca também come outros animais e que, se ele não comer foca, ou ele morre ou ele comerá outros seres vivos ou plantas. Então os pensamentos menos altruístas têm a ver com alimentação! Eu estou escolhendo entre perpetuar a minha vida ou a vida de um bacalhau. 

E os pensamentos mais altruístas têm a ver com qual o sentido de voltar para os outros, para a vida em conjunto, quando a gente se sente feliz e bem sozinho? Quando a gente gosta de estar só no lugar que a gente conhece e no lugar onde a gente se sente inteiro e se sente vivo, que é como eu me sentia no Fiorde que eu escolhi. E na hora de voltar, eu sentia que eu poderia continuar vivendo isolada e que seria muito bom e muito divertido. E que, caso eu morresse, para mim não seria um problema, porque eu não poderia saber o que aconteceu depois. Mas se eu ficasse lá, provavelmente a minha vida serviria para alimentar raposas, talvez corvos, talvez águia e peixes. Mas eu gostaria que a minha vida servisse também para melhorar e tornar mais agradáveis as vidas de outros seres da minha espécie. Eu acho que foi um pensamento que, para mim, era lógico, mas agora eu considero altruísta.

Na noite quase intermitente dessa engrenagem que você tanto sonhou, o que mais se transformou em seus sonhos quando você dormia?

Eu precisaria ler o meu diário de sonhos para saber exatamente. Mas uma coisa que eu anotava no diário de sonhos, quase todos os dias, é que parecia que os sonhos eram mais verídicos e mais honestos com o que eu estava vivendo, com o que eu estava pensando e sentindo, do que com meus diários descritivos do que eu tinha vivido de fato. No sonho apareciam questões que eu não tinha verbalizado. Eu parecia ter que escolher entre realidades diferentes. Eu parecia ter que escolher entre viver na cidade, ter horários e construir uma disciplina ou viver com raposas, conforme os meus desejos, minhas necessidades e o meu instinto. E no fim da engrenagem as questões que apareciam eram sobre dar-se conta de que eu já tinha vivido. 

Por exemplo, em um sonho eu encontrava o Gui, que foi uma pessoa que me ajudou na viagem, que é um amigo e também passou um inverno no gelo aqui alguns anos antes. E eu começava a fazer perguntas para ele: “Qual é o comprimento da corrente de âncora que você acha que eu deveria levar? Quantos cabos você acha que eu deveria levar? Será que esse sistema de chaminé do aquecedor vai funcionar?” E aí depois eu pensava: “Calma. Por quê eu tô fazendo essas perguntas? Eu já vivi o inverno. Já aconteceu isso aqui para mim.” Eu ainda não tinha vivido, porque ainda pensava no retorno, eu pensava em voltar para uma posição onde eu ainda não tinha vivido ainda. E onde eu ainda estava me preparando para partir, que era o que eu conhecia. O estado do qual eu parti é esse de muitas perguntas, muitas dúvidas, muita insegurança, de estar indo para algo que eu não sei como vai ser. E eu não podia retornar para isso porque eu já tinha vivido. Agora eu só poderia voltar a estar de novo num estado parecido se eu pensasse em ir para um outro lugar depois. Mas são poucas estações no ano e poucos lugares no Planeta para refazer, para me reencontrar nessa situação de iniciante. É uma situação que eu gosto quando eu sou iniciante.

*Edição: André Casé.

*Com colaboração de Mariana Carvalho

  • Paulina Chamorro

    Jornalista com mais de duas décadas de atuação em temas socioambientais

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