Estou à vésperas de embarcar para uma viagem singular: irei cruzar a pé, de fronteira a fronteira, um dos maiores países do mundo, os Estados Unidos. Parto da Califórnia, na fronteira com o México e pretendo chegar, quase cinco meses depois, no Canadá. Espero dar 6 milhões de passos pelo caminho. Cruzar deserto, sertão, montanhas, planícies, florestas e terrenos vulcânicos. Será uma viagem hercúlea, que já inspirou dezenas de livros e filmes. Minha cabeça está a mil enquanto tento planejar cada aspecto dessa jornada, mesmo certo de que é exatamente o imprevisível o que irá tornar essa viagem única. Penso em formas de eternizar as histórias que a viagem pode gerar: documentário, fotografias, podcast, livro, blog… Também não paro de pensar o quanto estarei mudado ao terminar – e como irei encarar os fatos caso não termine.
Se você, caro leitor, gosta do assunto caminhadas na natureza, certamente tem acompanhado o crescente movimento de criação de um sistema de trilhas de longo curso no Brasil. Aqui mesmo em ((o))eco essas iniciativas já foram tema de notícia várias vezes. É um movimento recente: a Transcarioca, que percurso 180 quilômetros na cidade do Rio de Janeiro, só foi inaugurada em 2017. Desde então trilhas antes informais e sem sinalização oficial, como a Transmantiqueira e a Transespinhaço, só pra citar duas, começaram a ganhar as marcações das botas em preto e amarelo.
O Sistema Brasileiro, assim como diversas outras trilhas de longa distância mundo afora, foi inspirado pelas ideias e realizações do conservacionista americano Benton MacKaye, que em 1921 propôs aquela que é a mãe de todas as trilhas: a Appalachian Trail (AT). Com mais de 3.500 quilômetros que cortam 14 estados norte-americanos, a AT foi responsável por criar, consolidar e oficializar o ainda crescente sistema de trilhas daquele país. Hoje existem nos Estados Unidos dezenas de longas trilhas, que cortam o país em todas as direções. Três delas se destacam e são chamadas de Tríplice Coroa das caminhadas: a já mencionada pioneira Appalachian Trail, com 3.540 quilômetros de trilhas demarcadas na costa leste, entre os estados de Georgia e Maine; a Pacific Crest Trail, com 4.540 quilômetros de trilhas na costa oeste, do México ao Canadá, cruzando os estados da Califórnia, Oregon e Washington; e a Continental Divide Trail que possui 5.000 quilômetros ainda não totalmente demarcados, também do México ao Canadá, mas que cruza as Montanhas Rochosas e os estados de Montana, Idaho, Wyoming, Colorado e Novo México, em um percurso que nunca fica abaixo dos 1200 metros de altitude.
Em 2017, com pouca experiência em trilhas e nenhuma experiência em camping, fui o primeiro brasileiro a completar em uma temporada a Appalachian Trail de ponta a ponta. [A brasileira Elaine Bisonho, radicada nos Estados Unidos, já havia feito a AT em 2005 e repetiu a trilha em 2011. Em 2017, a também brasileira Amanda Lourenço também completou a Appalachian Trail]. Foram 131 dias acompanhando os retângulos brancos que servem de marcação para trilha. No retorno, tive o privilégio de participar da primeira reunião para implementação da Transmantiqueira e dividir um pouco minha experiência.
Este ano, planejo percorrer os mais de 4.500 da Pacific Crest Trail (PCT) e desta vez quero dividir com um público ainda maior a experiência. Ao longo da minha jornada quero conversar com outros caminhantes, mantenedores, guardas florestais, voluntários e pessoas ligadas à trilha para aprender com eles e quem sabe inspirar a implementação de iniciativas similares no nosso próprio Sistema de Trilhas de Longo Curso.
Minha caminhada começa nesta quarta-feira, dia 15 de maio. E mesmo antes do meu passo inicial, a preparação e planejamento para realização da Pacific Crest Trail já me permitiu alguns aprendizados.
O primeiro é a atenção ao crescente número de pessoas interessadas em trilhas e travessias. De acordo com dados da Pacific Crest Trail Association, o número total de registros para se fazer a trilha quase quadruplicou em cinco anos, saltando de 1.879 em 2013 para 7.313 em 2018. Muito do sucesso da PCT é em virtude do filme Wild (Livre, em português, estrelado por Reese Whiterspoon). Inspirado no livro de mesmo nome de Cheryl Strayed, ele narra as aventuras da autora pela PCT nos anos 90. O livro foi um sucesso de vendas e o filme foi um sucesso de bilheterias, e como consequência a trilha viu sua popularidade explodir.
Mesmo que apenas 20% desse público termine a jornada, o impacto desta pequena cidade se deslocando por áreas de vegetação e ecossistema frágil pode trazer consequências desastrosas. Por causa disso, a Pacific Crest Trail Association (PCTA), a associação que gerencia a trilha, limita o número de pessoas. No máximo 50 pessoas podem começar a trilha a cada dia no marco inicial, na cidade de Campo, sul da Califórnia. Para ser um dos contemplados é preciso entrar em uma espécie de loteria online: em um determinado dia do ano (normalmente na primeira semana de novembro) a Associação abre as inscrições em seu site. É preciso escolher o dia em que você pretende começar e caso o limite já tenha sido atingido você não tem escolha a não ser escolher um dia diferente. No meu caso, eu já estava online 20 minutos antes do horário divulgado. Entrei em uma fila virtual (era o número dois mil e qualquer coisa quando cheguei) e quando minha vez chegou, quase uma hora depois, não consegui a data que tinha planejado inicialmente: 7 de maio. Todas as datas anteriores, desde o início de março, já estavam preenchidas.
O fato de você conseguir escolher um dia para começar a trilha não garante que você irá receber automaticamente a autorização – que você precisa imprimir e ter em mãos durante todo o tempo da caminhada. A autorização só chega depois de você baixar e ler duas apostilas sobre princípios básicos de educação e segurança na trilha. O princípio do Leave No Trace (Sem Rastros) é enfatizado durante todo o tempo no site da PCTA. Ele prega princípios simples para minimizar o impacto na trilha, como não fazer fogueiras; enterrar suas fezes e carregar de volta seu papel higiênico; acampar em áreas demarcadas; proteger a qualidade da água, evitar lavar roupas e utensílios nos riachos e respeitar outros caminhantes e habitantes das cidades que a trilha cruza.
A preocupação com o meio ambiente também transparece nas outras autorizações que você precisa carregar durante todo o tempo. Além da sua permissão para começar a trilha em um dia específico, é preciso assistir alguns vídeos e responder uma série de perguntas para se obter uma autorização para uso de fogo no estado da Califórnia. Mesmo que você não planeje fazer fogueiras, a autorização é necessária inclusive para o uso de fogareiros a gás. A preocupação é justificável: incêndios devastadores já arrasaram porções significativas do estado (em 2018, quase 7 mil km² da Califórnia foram destruídos pelo fogo).
Antes mesmo de começar minha jornada consigo sentir a importância dos voluntários da PCT. Campo, onde a trilha começa, é uma pequena localidade com menos de 3.000 habitantes quase na fronteira com o México. Sem aeroporto ou rodovias, chegar ali é complicado, mesmo para os americanos. Por causa disso, um casal de voluntário de San Diego, a 100 quilômetros dali, se prontifica a receber os caminhantes e a levá-los até o início da trilha na manhã seguinte. Não aceitam pagamentos e caso você insista em pagar, eles sugerem que faça uma doação à Pacific Crest Trail Association. Conhecidos como Scout e Frodo, seus nomes de trilha, o casal faz esse trabalho há 15 anos e apenas em 2018 eles receberam mais de 1.100 caminhantes. É com eles que irei ter a primeira conversa sobre a trilha e entender as motivações, interesses, incentivos e razões para se voluntariar em uma trilha de longo curso. Veremos o que a gente pode aprender com a história deles.
Quanto a você, espero que a gente se encontre por aqui novamente em breve. Caso tenha alguma dúvida sobre a Pacific Crest Trail, minha jornada ou trilhas de longa distância em geral é só deixar um comentário abaixo. Você também pode me encontrar no Instagram como @distancialonga. ou no YouTube em /jeffsantos. Até breve, boa caminhada e lembre-se: solvitur ambulando (do latim, “caminhando tudo se resolve”).
*Jeff “Speedy Gonzalez” Santos é autor do blog www.longadistancia.com.
Instagram: @distancialonga.
YouTube: /jeffsantos
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Assim como te acompanhei virtualmente e diariamente na AT em 2017, te acompanharei agora nesta longa jornada! Que tudo dê certo e tenhamos muitos relatos para ler, assistir e ouvir. Abração!