“Nós temos um potencial colaborativo que muitas vezes é suprimido por conta dessas crenças de que estamos em competição.” É o que defende a socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes durante conversa com o geógrafo Bruno Araújo sobre a possibilidade de enxergar outros caminhos para a convivência em sociedade e com o meio ambiente.
Durante quase uma hora de discussões, Sabrina e Bruno comentaram sobre temas voltados para o capitalismo, a forma como o sistema moldou comportamentos e ações na sociedade e caminhos possíveis para reverter os problemas que o próprio ser humano criou para si. “A mudança individual não pode ser uma mudança sua como consumidor. Ela tem que ser uma mudança sua como agente político que se mobiliza para além do seu dia a dia. Acho que é conectar as lutas do indivíduo com as outras lutas porque não existe indivíduo descolado da realidade. Ninguém está vivendo numa bolha. Então, as contradições também são individuais, mas elas se conectam com as contradições da estrutura do sistema”, explicou Sabrina.
Sabrina Fernandes é economista política, doutora em sociologia e pós-doutoranda do Grupo Internacional de Pesquisa sobre Autoritarismo e Contraestratégias da Fundação Rosa Luxemburgo e da Universidade de Brasília. É produtora do canal Tese Onze, projeto de comunicação política e científica no YouTube. Publicou livros como “Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa” e é chefe do departamento de pesquisa do Instituto Alameda.
“A forma que a tecnologia e o conhecimento, inclusive industrial, é produzido hoje em dia, é voltado a impedir que a tecnologia realmente avance para todo mundo, porque ela só pode ser para mim, para eu poder lucrar mais. Não é inteligente, do ponto de vista coletivo, que isso ocorra. Então o próprio sistema de produção de tecnologia relacionado a, por exemplo, renováveis, hoje em dia é liderado pela indústria automobilística, porque a gente está sendo vendido que o carro elétrico individual que é o caminho, sendo que a carrocracia é parte do grande problema que a gente tem aí.”
Escute o episódio completo do podcast Planeta A no link.
Confira a entrevista abaixo:
Bruno Araújo: A crise climática está presente no nosso dia a dia. Enchentes, alagamentos, ondas de calor. Mas esse alerta da crise soa desde pelo menos a metade do século passado. Como é que a gente chegou até aqui? Quais são as estruturas responsáveis pela crise climática?
Sabrina Fernandes: O ecossocialismo é muito útil nesse processo porque a gente faz uso daquele conceito da ruptura metabólica, que é a compreensão de que tem algo no plano econômico e social que está indo contra ao metabolismo da natureza. Então a natureza tem um metabolismo próprio, nós somos natureza e fazemos parte desse metabolismo. A gente está provocando fraturas, rupturas, porque tem algo saindo do controle. E aí a gente faz um apanhado de que nos últimos séculos não são pequenos ajustes aqui e ali, a ruptura metabólica ocorre quando a natureza está sendo afetada e vai perdendo a sua capacidade de resiliência, de reconstrução e de renovação.
E isso a gente sabe que o sistema capitalista está no centro, só que o sistema capitalista não é algo puro e simples, ele é extremamente complexo, ele se utiliza de demais estruturas, ele tem vários tons. Então a gente está falando aqui de um capitalismo que é racista, de estruturas coloniais. Não por acaso, quando a gente começou esse debate do Antropoceno nas Ciências Sociais, para além de como ele é feito na geologia, um dos termos que foi trazido era o do Plantation, de falar do sistema de grandes plantações do período colonial e de escravização e o que isso já estava fazendo com o solo na época, o que já tinha em termos de desmatamento, que vinha com o genocídio indígena, que vinha com a escravização do povo negro.
Então a gente tem uma noção de que a crise é um projeto permanente do capitalismo e por isso acaba sendo muitas vezes normalizada. A gente vai soando o alarme, vamos avisando, mas tinha crise antes, está tendo crise agora e a gente segue aqui. Mas vale questionar quem é que está seguindo aqui também, quais são as pessoas que são largadas no meio do caminho, quem está pagando preço, quem está sendo sacrificado no processo.
Sabe uma reflexão que eu faço sobre esse tema da crise climática? É que crise me parece um nome muito utilizado para algo que saiu do normal ou saiu do caminho que deveria ser e a gente chegou numa crise. Mas do ponto de vista do capitalismo, a gente chega nesse momento de emergência climática porque o capitalismo deu certo, porque ele conseguiu se estruturar, se reproduzir e acumular riqueza na mão de poucas pessoas. Então, às vezes eu fico reflexivo sobre esse termo, se a gente usa crise climática, mas aí depois outras pessoas me alertaram que de fato há caminhos se rompendo do ponto de vista do olhar para a natureza mesmo, justamente nessa ruptura metabólica, aí sim há a crise. Mas do ponto de vista do percurso que o capitalismo faz, me parece ser um caminho natural.
Justamente nos volumes 2 e 3, do “O Capital”, Marx está tratando a crise como uma característica própria do capitalismo. Então eu acho que vale entender crise como algo que é normal, que é esperado, que faz parte do sistema capitalista, porque ele é um sistema de produção de crises, é um sistema de contradição. E ao mesmo tempo questionar que essas crises existem e elas têm consequências específicas, elas geram reajustes políticos, elas trazem esses rearranjos em relação ao autoritarismo, democracia, políticas econômicas que mudam como resposta a essa crise e que podem gerar outras crises.
É por isso que hoje em dia a gente fala muito do conceito de policrise, que é um conceito que ele vai ser utilizado por diferentes atores de forma muito variada. Você vai ter instituições globais e financeiras preocupadas com a policrise porque é mudança climática, é pandemia, é guerra… E aí uma crise econômica em tal lugar. Nossa, policrise. E aí eles vão montar um pacote de políticas econômicas para navegar nessa policrise. Só que o nosso objetivo de falar de alternativa sistêmica é superar o ciclo de crises. Então a gente entende que essas crises são múltiplas, que elas estão piorando umas às outras. Então se você tem algo como no Rio Grande do Sul, no Brasil, isso gera uma crise econômica também.
E uma crise econômica também pode gerar pressões que impedem de fazer a adaptação correta, de avançar numa pauta de mitigação, então realmente elas se retroalimentam aqui. O nosso objetivo não é simplesmente fazer pequenos ajustes, é criar uma alternativa sistêmica para que a gente saia desse ciclo de crises infinitas, que é um círculo vicioso realmente. E aí no nosso debate vale a pena trazer o ponto da crise, trazer a diferença colonial e geopolítica sobre crise, porque muitas vezes uma crise no norte global, é no sul global uma realidade. E ao mesmo tempo casar com essa discussão da emergência, do alarme, porque ele traz essa sensação de urgência que eu acho que é muito importante para a gente, porque a crise climática hoje claramente não é a mesma coisa que há 20 anos atrás. Então falar de emergência é algo que coloca a coisa numa perspectiva temporal interessante.
Uma coisa que muita gente está falando ultimamente com o avançar da crise climática é sobre a tal da “ecoansiedade”, essa sensação de que o futuro é incerto e que a gente vai ter daqui para frente uma vida com mais dificuldade, com mais complicações, justamente por conta dessa policrise que você comentou. É possível sair desse sistema de crises? A crise climática e esse outro conjunto de crises são solucionáveis?
É possível, é solucionável, existem sim coisas que a gente fala que estão chegando em pontos irreversíveis, que são pequenos marcos, que na verdade são gigantescos em escala planetária, mas são alguns marcos dentro de um conjunto muito maior de coisas.
Então você falar que teve uma perda que foi irreversível, que vai ter tal consequência, isso não significa que o mundo acabou ou vai acabar certamente. Significa que nós temos que rever nossas posições sobre mitigação social, sobre adaptação, sobre tecnologia, sobre distribuição, justiça, democracia, e assim de acordo com esses novos parâmetros que surgem dessa irreversibilidade ali. Mas ao mesmo tempo, a questão sistêmica é muito clara, é possível mudar, só que é muito difícil mudar. Existe uma confusão muito grande do meio político sobre possibilidades quando a gente discute utopia. A utopia não é algo que é impossível, é algo que não existe. Então deve ser construída, mas esse processo de construção não é simples.
Como a policrise, com esse sistema de alta complexidade, com todos esses parâmetros de incerteza que vão surgindo, principalmente quando a gente está tratando de processos que foram desencadeados, processos metabólicos que foram desencadeados, e a gente vai ter vários modelos, pode dar nisso, pode dar naquilo, mas no meio do caminho outras coisas vão acontecendo. E eu acredito que a forma mais inteligente da gente tratar isso é sempre manter o nosso horizonte de mudança total na forma que orientamos a nossa tática hoje. Para eu não ficar simplesmente, tapando o sol com a peneira ou enxugando gelo. O que a gente realmente precisa é casar a nossa atuação imediata, por exemplo, tem um colapso localizado, tem uma emergência ao redor de um desastre, de um grande conflito hoje.
A política que eu implemento aqui, ela tem que estar focada também lá na frente. A transição faz parte dessa conciliação. Entre o agora e o amanhã. E eu não vou conseguir fazer aquele amanhã que eu desejo virar realidade se ele não for coerente com a política que eu estou desenvolvendo hoje também.
E eu queria te fazer uma pergunta agora justamente sobre o que a Maurin chamou de distrações climáticas. Porque há setores críticos que apresentam alguns questionamentos em relação ao mercado de carbono e outras saídas, por exemplo, que passam por dentro da lógica da financeirização da natureza. Uma dessas perspectivas é o ecossocialismo. Quais são os conceitos centrais do ecossocialismo e como é que eles se conectam com as preocupações ambientais?
O ecossocialismo é uma grande resposta aos negacionismos existentes hoje. Então, a gente tem o negacionismo do capitalismo fóssil, mas a gente tem o negacionismo do capitalismo verde, a gente tem negacionismos relacionados a gênero, a raça, a questões nacionais, territoriais, o negacionismo da existência do direito legítimo do povo palestino… E o ecossocialismo se coloca como um horizonte de luta, um programa de totalidade. Então, a gente vai ter que lidar com todas essas coisas ao mesmo tempo. A gente vai ter que ter uma compreensão de que nós precisamos deixar os combustíveis fósseis no chão, mas não é só fechar a torneirinha. Então, a gente tem que entrar com políticas públicas mais avançadas em relação a diminuir essa dependência para poder propor algumas alternativas. E a gente sabe que isso só vai ocorrer se tiver um respeito às populações que estão naquele território.
Então, a gente vai combater as chamadas zonas de sacrifício já existentes, do modo do capitalismo convencional de agir, mas também prevenindo zonas de sacrifício verdes. Você tem que estar aqui, ó. É quase um polvozinho, tem que ter tentáculos. A gente tem que estar por todas as partes porque a gente sabe que eles atuam dessa maneira. As empresas de combustível fóssil, por exemplo, hoje em dia, fazem da diversificação do seu portfólio uma maneira de se vender como responsáveis, ESG, ODS, vão usar todos esses parâmetros para falar olha só, somos uma empresa do futuro. Mas, na verdade, elas não vão abrir mão daquilo que elas estão fazendo antes. O ecossocialismo está atento a isso aí. Ele está atento. Está atento a todas as armadilhas. Entende que a construção tem que ser popular.
Essa construção passa por todas essas interseccionalidades. Não tem um molde único. Tanto que a construção do ecossocialismo a partir do Sul é o que deve determinar ele no Norte. Para que eles não caiam ali nas fantasias de um modo de vida imperial ecológico, de não fazer ajustes na sua maneira de produzir lá fora, não fazer ajustes na questão geopolítica em si. Porque senão, o que vai acontecer? Eles vão fazer uma transição, a gente vai ficar para trás e a gente vai acabar entrando num sistema de “ecoapartheid”, que é uma versão distópica muito bizarra que a gente precisa evitar também.
Muitos dos críticos da esquerda falam que a gente não tem programa para a economia, que a gente olha muito para o social. Eu queria te fazer uma pergunta: Como que o ecossocialismo propõe uma reestruturação da economia com foco na justiça social?
É interessante porque é aquele tipo de crítica que demonstra que a pessoa não mergulhou em nada do que ela está criticando. Nós temos uma perspectiva a partir do ecossocialismo de que a transição socioecológica ou a transição ecossocial nos aponta em rumo de quais são as indústrias realmente estratégicas, que tipo de emprego tem que ser criado. E aí a gente vai ter política para garantia de empregos, a gente vai ter política para redução da jornada de trabalho. Essa é uma pauta essencialmente ecossocialista. Então, a semana de trabalho de quatro dias é algo que a gente fala assim, legal, mais para frente a gente quer menos ainda. Por quê?
A gente vai ter que discutir o que é supérfluo, o que vai ser produzido, o que não vai ser produzido, por qual razão. Hoje em dia, o nosso sistema econômico é muito voltado a essa produção de commodities. Então, nós temos que ter uma compreensão de que setores e indústrias devem decrescer para dar espaço para outras também. E aí isso força o ecossocialismo a ter políticas sobre a lei. O ecossocialismo até é política sobre transporte, entendendo quais são os ganhos econômicos que nós temos quando a gente tem transporte público de qualidade, eletrificado, que também é gratuito, que é para todo mundo e que vai transformar nossa relação com as cidades, vai transformar o espaço urbano de uma maneira que ele também ganha em termos de adaptação.
Então, lá na frente a gente economiza dinheiro, porque a gente está pensando em eficiência logo agora. E aí tem a prevenção de desastres com isso aí. Tem coisa mais inteligente economicamente do que fazer transição agora? Não tem, porque a gente está nos poupando de muito que podemos gastar lá na frente em termos de perdas e danos, sem nem contar as coisas que não são contabilizáveis, como a morte, o fim de ecossistemas, a morte de pessoas, o trauma nas pessoas que vem com essas perdas e danos dos desastres ecológicos criados através do sistema. Então, o ecossocialismo tem um plano econômico que é muito mais voltado à criação de vida. E aí a gente vai ter que ter outras prioridades no meio do caminho.
Então, ele realmente se propõe a mudar tudo que está aí. Não é simplesmente fazer alguns ajustes que são específicos. A questão pública é essencial. Você não vai encontrar nenhum ecossocialista que não vá defender que todas as empresas que a gente tem hoje de energia sejam públicas. Inclusive a Petrobras, realmente pública. Não na forma que é hoje, mas realmente 100% pública, servindo a interesses soberanos nacionais. Porque a gente entende que se a gente vai ter um plano de defasagem de petróleo e o petróleo estiver sendo controlado por interesses privados, a nossa possibilidade de fazer isso vai ser muito menor. E é por isso que a gente sempre está junto com os trabalhadores da Petrobras quando tem greve. É por isso que a gente está junto nessa defesa de políticas mais democráticas. Mas isso não significa que a gente vai se esconder na hora de fazer a crítica correta à presidenta da Petrobras, que está defendendo uma política de petróleo que é um horizonte catastrófico para o planeta, não somente para o Brasil.
Há uma disputa no governo, né? Colocada de um lado os setores ambientalistas, sobretudo com Marina e Sônia Guajajara, e de outro lado o setor desenvolvimentista, que argumenta que ainda há espaço para desenvolvimento do Brasil diante de uma suposta responsabilidade menor do ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa, da geração da crise climática. Qual é a sua perspectiva em relação, não só ao Brasil, mas olhando o sul global? O caminho para essa transição é um caminho em que de fato há margem para desenvolvimento nos países do sul global? Ou é um outro caminho?
Uma coisa que precisa ficar bem evidente desde o começo é que o desenvolvimentismo tem várias facetas. Ele pode ser um nacional-desenvolvimentismo voltado a políticas mais de um horizonte socialista, ou um nacional-desenvolvimentismo voltado a um Estado forte que vai ter investimento social, ou ele pode ser um desenvolvimentismo se casando com políticas um pouco mais liberais. O Alfredo Sá de Filho tem toda uma discussão sobre essas contradições no processo, mas todas essas facetas são negacionistas em termos da ruptura metabólica, em termos da mudança climática, e são negacionistas porque tem uma visão de desenvolvimento que é envasada na ruptura metabólica, que não é o que a gente propõe.
Não quer dizer que a gente, quando a gente fala de críticas ao desenvolvimento, alternativas ao desenvolvimento, não quer dizer que a gente não queira melhorias de vida para as pessoas, não queira crescimento, não queira desenvolvimento qualitativo, que a gente não entende que para poder alimentar pessoas numa região tem que ter um crescimento da safra X, Y, Z. Não quer dizer nada disso. A gente quer, só que a gente vê que o parâmetro, o modelo de desenvolvimento que é vendido, ele é um modelo essencialmente produtivista, capitalista, voltado ao mercado, e muitas vezes forças socialistas e comunistas não têm crítica suficiente a isso e acham que só existe uma forma de desenvolver.
E a única diferença que a gente vai ter é que esse desenvolvimento aqui, ele gera subdesenvolvimento porque ele está na mão dos capitalistas e o nosso, como vai estar na mão do Estado ou dos socialistas, vai ser desenvolvimento de verdade. Não existe desenvolvimento em terra arrasada. Esse tem que ser o nosso principal parâmetro. E aí, no diálogo com o governo, como o governo que a gente tem hoje, do governo Lula, que tem suas enormes contradições que partem tanto da questão da correlação de força institucional, no país onde a extrema-direita segue firme e forte, a gente tem um centrão que manda em todas as coisas, mas eu, particularmente como Sabrina, eu acho que eu seria um pouco mais feliz se a gente estivesse dialogando com o governo em relação a esses limites, com o governo admitindo esses limites e não simplesmente colocando na culpa dos outros lá. A gente tem uma margem de autonomia aqui. E na nossa margem de autonomia, a gente tem que ser muito claro sobre os parâmetros científicos. Não existe orçamento climático de emissões para seguir expandindo petróleo. Não existe, seja petróleo na Venezuela, no Brasil, do Irã, dos Estados Unidos, da Noruega. Porque a atmosfera é uma só. Não vai ter uma diferença. Então, eu gosto de trazer esse exemplo, porque eu gostaria que ele fosse abraçado por governos do sul global.
Um bom tempo atrás, quando era o governo do Corrêa no Equador, houve um debate sobre a exploração de petróleo na UNE. Esse debate, inclusive, ressurgiu ano passado, no governo de direita no Equador, com um referendo para a população escolher se ia ter exploração ou não. A campanha ganhou contra a exploração de petróleo dessas novas perfurações no ano passado, mas você vê que é requentado, né? É que nem Belo Monte, as coisas voltam. A gente tem que estar sempre alerta. Mas lá atrás, naquela época, quando o Corrêa começou a sentir essa pressão dos movimentos indígenas e ambientais da Amazônia, de que não era para explorar no Yasuni, e ele falou “nossa, mas o Equador precisa desse petróleo para desenvolver”. Eles começaram a falar assim “ah, então os países ricos tinham que pagar a gente para não perfurar”. Ele fez uma certa campanha sobre isso, mas não tinha aquele momento do negócio avançar. O esforço naquilo ali. E eu falo, imagina quão poderoso seria se em vez da gente ficar virando para a Noruega ou esses outros países, pedindo dinheiro para um fundo de conservação, a gente falar: a responsabilidade é de vocês, paga a gente para não ter que desenvolver. A gente precisa. Custa tanto, custa tanto. Vamos fazer uma grande aliança aqui, fazer um bloco histórico, de contra-hegemonia, fazer um bloco histórico de países do sul global que tem grandes reservas de petróleo. E falar, olha, a gente não quer explorar esse petróleo, porque a gente sabe que a exploração do petróleo na fossa do rio Amazonas não é só algo que vai atingir profundamente a biodiversidade da região, mas também vai colocar a população da margem costeira ali em risco, em caso, por exemplo, de um acidente.
A gente sabe que, a cada novo poço a ser perfurado, a gente não perfura hoje e começa a dar lucro amanhã. É um processo. Então, imagina, todos esses poços sendo leiloados agora e novas perfurações para emissões que vão começar a surgir daqui 10 e 15 anos. O lucro vai estar lá na frente ainda. Os royalties que a gente vai tirar não é nem para esse governo, nem se o governo atual for reeleito. Então, é um negócio muito a longo prazo, não faz sentido. Então, por que não? Pague para a gente não perfurar agora, o dinheiro vem agora e a gente investe agora em transição. Atrelar isso à transição. Então, eu acho que um reconhecimento dos limites deveria vir com políticas públicas para esses limites e não para passar pano para fazer as mesmas coisas de antes. Tem alguns ajustes a serem feitos. Obviamente, é muito melhor a gente estar num governo Lula que, pelo menos, tem a Marina Silva e não o Ricardo Salles. Mas a gente entende que a centralidade é necessária e que nos foi prometida quando teve toda aquela comoção, o Brasil voltou e o Lula foi para a COP, logo após ser eleito e andando todo bonito lá com as nossas lideranças indígenas, nos prometeram muito mais do que estão entregando em política climática.
É verdade. E na COP passada ainda teve aquela polêmica do Lula entrar na OPEP+, no meio da COP, do Lula na reunião com os brasileiros defender a exploração de petróleo na Foz do Amazonas justamente com esse discurso de que ainda haveria margem de exploração de petróleo no sul global, reeditando uma frase, inclusive, se eu não me engano, do próprio Paulo Guedes, ministro da Fazenda do Bolsonaro, que falou “olha, daqui a 30 anos o petróleo não vai ser mais explorado. Então, o que a gente precisa fazer? Explorar logo. Vamos acelerar enquanto eles vão comprar porque lá no futuro não vai ter mais”. Talvez nem tivesse futuro. Talvez nem tenha futuro. Agora uma pergunta que também sempre fazem muito para mim, imagino que para você, para todo mundo que está dentro dessa luta, é o que fazer? O que as pessoas que concordam com isso que você trouxe, com o ecossocialismo, com as críticas a esse modelo, o que elas podem fazer? Como é que elas podem se organizar e se mobilizar para fazer um enfrentamento, tanto do ponto de vista individual, mas sobretudo entendendo que a crise está numa escala de estrutura, de sistema. Quais são os caminhos então que a gente precisa adotar para enfrentar essa crise e construir esse novo mundo?
Uma coisa muito boa de ser marxista é que a gente não é preso a ideias binárias do mundo. A gente entende que existem contradições e que dá para fazer mais de uma coisa, de uma vez. E que algumas são mais limitadas, outras vão ter mais potencial, mas uma não nega a outra. Então essa questão da agência do indivíduo e a formulação coletiva e estrutural caminham juntas e a gente vai se reconhecendo nesse processo. A gente encontra, por exemplo, a situação do transporte. É muito mais fácil para a população ser mais coerente, e não ser dependente de carro individual, onde você tem um transporte público de qualidade, que abrange todo mundo, que é seguro, que roda mais horas por dia, roda no final de semana, em que você tem uma valorização da periferia, você tem uma descentralização do mundo do trabalho, muito mais fácil. Onde você não tem isso, o carro se torna também uma necessidade. Então não é só a ideologia que te vem de que você tem que ter um carro. Faz a diferença para quem precisa deslocar meia hora de carro, ou três horas de transporte público. Então aí que você vê um limite, que é uma contradição individual da pessoa, mas que ela é muito condicionada pelo sistema também.
Então nós temos uma necessidade de trabalhar as duas coisas ao mesmo tempo. Até porque no âmbito individual, onde você vê a possibilidade de mudar, e muda, isso inspira outras pessoas, isso gera debates. Eu sempre trago isso sobre o ponto de vista do veganismo, não vou nem entrar na questão do antiespecismo em si, porque é uma outra coisa. Mas do ponto de vista climático, nós temos um sistema de produção de proteína animal que é insustentável. Ele usa muito o território, desmata muito… Tem cálculos que já foram feitos que, por exemplo, se o planeta todo virasse vegano, a gente conseguiria produzir alimentação para 24 bilhões de pessoas. A mudança do sistema agroalimentar é gigantesca mas não é isso que todos vão ver agora, não é o que vai acontecer agora. Mas as pessoas vão veganizando aqui, trazem provocações, estão fazendo alguns debates, elas vão lidar com problemas no seu dia a dia para fazer as suas próprias adaptações aqui e ali, e isso vai gerando tensões no sistema. É interessante olhar por esse lado.
Mas também não adianta: transformei aqui na minha dietazinha vegetal, sou melhor do que todo mundo, venho com aquela superioridade moral… E é muito fácil se você não tem que mudar mais nada. Na sua vida não tem que ter uma posição política, é por isso que está cheio de vegano de direita. Então, nós precisamos conciliar essas políticas. A política tem que vir com uma política de demarcação de território indígena, com uma política de reforma agrária, popular, ecofeminista, agroecológica. A gente tem que vir com uma perspectiva de compreensão de que a alimentação não está separada da indústria farmacêutica. Então, a gente tem que bater aí em como é o nosso desenvolvimento de químicos, nosso desenvolvimento das drogas, que são de vários tipos que a gente encontra por aí, porque muitas são para lidar com as doenças que o próprio sistema produz. Então, a gente tem que usar essas nossas mudanças individuais ou a pressão por uma mudança individual para expandir o nosso horizonte e entender melhor a política estrutural também. Senão, a gente vai ficar fechadinho numa bolha e vai ser coisa de pessoas mais privilegiadas que têm um certo acesso ao sistema de consumo. A mudança individual não pode ser uma mudança sua como consumidor. Ela tem que ser uma mudança sua como agente político que se mobiliza para além do seu dia a dia. Acho que é conectar as lutas do indivíduo com as outras lutas porque não existe indivíduo descolado da realidade. Ninguém está vivendo numa bolha. Então, as contradições também são individuais, mas elas se conectam com as contradições da estrutura do sistema.
O capitalismo tem na escassez e na propriedade privada duas das suas bases. Qual o papel da propriedade coletiva e da visão do que hoje é recurso natural como bem comum para a construção do ecossocialismo e desse mundo do futuro?
Tem uma discussão muito interessante assim da vantagem de ter estudado economia é que eu tive que entender muito da cabecinha do lado de lá, do que a gente aprende de doutrina e macroeconomia, microeconomia, teoria econômica básica e tal.
E muito da crença que existe no mundo dos economistas padrão tem a ver com aquela ideia da tragédia dos comuns. Daquela ideia do “se virou de todo mundo, virou bagunça. É por isso que não pode, você tem que privatizar, você tem que criar esses cercamentos”. Tem um livro do Ian Angus, que eu acho que ele não saiu ainda em português, tem o do Antropoceno, mas tem um outro que eu até escrevi um endosso para o livro em que ele trata da questão dos comuns do ponto de vista ecossocialista. Primeiro ele desmonta a farsa como um mito da tragédia dos comuns, que é ensinado na economia, mas que é um negócio basicamente ensinado, que foi inventado para justificar o cercamento historicamente no modelo jurídico de apropriação, então de formação da propriedade privada. Porque o que a gente vê, na realidade, é que se você tem uma tutela comum do espaço, e a partir disso aí você vai gerando sistemas de governança que são equilibrados, equitativos, democráticos, você tem uma tendência a se sentir dono daquilo ali e cuidar daquilo ali, e vigiar, e tutelar realmente. Então nós temos um potencial colaborativo que muitas vezes é suprimido por conta dessas crenças de que estamos em competição. Porque, Bruno, você falou da escassez como um pilar do capitalismo, essa escassez produzida é muito importante para o capitalismo tratar aquilo ali como bens exclusivos, então você não vai ter acesso, só alguns que podem ter. Então a partir disso aí você vai ter políticas privadas para aquilo que você acha que tem competição com todo mundo.
Esse processo de comunização é algo muito discutido no ecofeminismo, porque um dos pilares do ecofeminismo é a socialização do trabalho. E é isso, a gente vai socializar o trabalho doméstico, privado, e a gente vai trazendo visibilidade. Quando a gente traz visibilidade, você consegue planejar, organizar e distribuir melhor. Então a vantagem do bem comum em relação à natureza, é que ele está às claras. E estando às claras, a gente pode ter um planejamento muito mais adequado do que quando a gente está partindo desses modelos de cercamento, de privatização, que existem há séculos, que gera uma tendência de “isso aqui o meu competidor não pode saber, isso aqui é só meu”.
E é isso, o tanto de ineficiência que você tem nesse sistema, porque você tem competição, porque o que eu tenho que ter, o outro não pode ter. A forma que a tecnologia e o conhecimento, inclusive industrial, é produzido hoje em dia, é voltado a impedir que a tecnologia realmente avance para todo mundo, porque ela só pode ser para mim, para eu poder lucrar mais. Não é inteligente, do ponto de vista coletivo, que isso ocorra. Então o próprio sistema de produção de tecnologia relacionado a, por exemplo, renováveis, hoje em dia é liderado pela indústria automobilística, porque a gente está sendo vendido que o carro elétrico individual que é o caminho, sendo que a “carrocracia” é parte do grande problema que a gente tem aí. Inclusive vai sair no próximo semestre pela UBU, um livro de Paris Max explicando como o Vale do Silício tem controlado a nossa forma de pensar o transporte. E isso tem um interesse muito direto em juntar as Big Tech com a exploração de minérios estratégicos de transição energética. Esses minérios precisam realmente ser minerados? Uma forma da gente conciliar e evitar grandes zonas de sacrifício, zona de sacrifício verde inclusive, é através de uma escolha melhor de para onde eles vão ser aplicados. E não vai ser em bateria da Tesla que eu gostaria que fosse aplicado, mas sim para lidar com a intermitência para a indústria, para residências, para campus universitários, para hospitais na relação e armazenamento de energia ali, quando o sol não está brilhando, quando o vento não está soprando…
E aí você gera uma eficiência que você não precisa ter um grande mega parque eólico que vai gerar mais danos para outras pessoas também. Ou seja, todo mundo ganha quando a gente não está produzindo a partir desse sistema privado, excludente, de falsa escassez.
E você tocou no tema do ecofeminismo, queria emendar uma pergunta que é: como o ecossocialismo incorpora na construção desse novo mundo as perspectivas de gênero e as perspectivas de raça?
Muito importante entender que dentro da esquerda existe uma pressão muito forte para a esquerda se tornar mais antirracista, mais feminista, para combater a transfobia nas suas fileiras, tudo isso. Mas aí parece que você está chegando num grupo que é fechado, agora você tem que absorver outras coisas. O ecossocialismo entende que se não tem ecofeminismo, o ecossocialismo não funciona.
Ele tem que funcionar a partir de um pilar, por quê? São as mulheres que são mais afetadas quando você tem uma crise climática, porque é ela que vai ter o fardo ali do cuidado das crianças, do cuidado dos idosos, do cuidado em geral. A gente tem dados que mostram que lugares onde você tem uma seca muito forte por conta de eventos climáticos extremos, normalmente é a mulher que fica com menos água no final do dia, porque todo mundo ali vai ser abastecido primeiro. Você vai ter vários tipos de violência, muitas vezes são reproduzidas, então não tem opção. Se a gente quiser uma justiça socioecológica, não tem uma opção que não seja através do ecofeminismo. E isso se casa, por exemplo, na discussão de soberania alimentar, que eu acho que é muito poderosa.
Não é uma coincidência que a maioria dos movimentos por soberania alimentar e reforma agrária popular do planeta são movimentos liderados por mulheres, com um grupo muito forte de mulheres fazendo esse debate. Talvez em alguns lugares não pela lente da palavra feminismo, mas às vezes pela lente da organização comunitária de mulheres, às vezes pela lente de melhor distribuição das tarefas. Então tem muito a ser aproveitado nesse sentido, não como uma forma opcional para o ecossocialismo. Ou o ecossocialismo, ele realmente traz essas perspectivas para o centro, ele não tem função de existir.
Matheus Vasconcelos: Pergunta do editor. Pergunta surpresa! Sabrina, um dos vídeos que você fez que eu mais adoro, acho que foi aquele vídeo de 2018 que você fez uma versão alternativa se fosse outro presidente que não o Bolsonaro que assumisse. Esse acho que é um dos meus vídeos preferidos. Você deu até um outro nome lá para o presidente. E eu gosto muito disso porque para mim a esquerda não consegue sonhar. Eu acho que o fechamento do horizonte nosso também está relacionado a gente não conseguir ter estratégias e táticas para conseguir elaborar aquele futuro que a gente quer. A gente sonha pouco. E eu queria saber se você conseguiria fazer algum exercício ficcional agora, pensando no ecossocialismo e tudo o que a gente fez no debate hoje. Não precisa ser elaborado como criar um presidente, nada parecido, mas acho que coisas que você gostaria muito de ver na prática acontecendo e para a gente poder sentir um pouco daquelas coisas que a gente luta tanto.
Então, assim, se a gente estivesse em um caminho de transição, por exemplo, se o Brasil realmente estivesse executando uma transição ecossocial hoje. A primeira coisa que veio na minha cabeça aqui, seria tarifa zero. O país inteiro, tarifa zero. O nosso cartãozinho aí para poder entrar no transporte público no Rio de Janeiro pode picar e a gente vai mandar, derreter e vai fazer vasinho de plantas com o cartãozinho. Então, você entra no transporte, você já não vai ter catraca. E aí, o que você faz com o trabalhador da catraca? Ele agora está ali para assegurar a acessibilidade dentro do ônibus. O trabalho dele ali é um trabalho de relação social. Com as pessoas. Para aquela pessoa que tem, às vezes, uma questão de mobilidade. Ou a pessoa que está carregando muitas sacolas. Está ali e está prestando apoio direto para o motorista do ônibus, que não está cumprindo a dupla função. Esse motorista de ônibus trabalha quatro dias por semana. O que ele faz nesse tempo que é gerado na vida dele? Ele pratica esporte. Ele vai para a academia. Então, a partir disso aí, ele está saindo daquele sedentarismo que a gente sabe que afeta muito a população brasileira.
Mas a academia que ele vai, não é Smart Fit. Não é. Nós temos investimento em academias públicas nesse país. Não vai ter Smart Fit no futuro, hein? Não vai ter. Vai acabar a Smart Fit. A gente pode criar outros nomes aí. Seja EcoFit ou sei lá o quê. Entendeu? O “gostoso pelo clima”, como um grande programa de incentivo à atividade de exercício físico nesse país.
E todos os equipamentos da academia vão ser produtores de energia. Porque a esteira que vai estar rolando lá vai estar gerando energia. O supino que você está fazendo vai estar conectado a um fio que vai gerar energia.
E aí, você vai criando ali um outro ambiente, que é um ambiente de uma convivência até mais saudável. Porque se você está popularizando esses ambientes, às vezes, ele fica menos excludente naquele marombismo que é muito danoso, dos coaches… Esse tipo de coisa. Então, você pode ter uma mudança ideológica a partir daquilo ali. E aí, você vai ter uma integração com a saúde preventiva nesse país.
Os nossos médicos de família e comunidade, os nossos enfermeiros de família e a comunidade vão ter mais acesso a esses dados, a essas informações, mostrando um ganho de saúde que vai gerar uma redução de gastos no SUS. Porque os problemas relacionados à diabetes ou à hipertensão são problemas que vão diminuir. Lógico, porque também a gente fez uma reforma agrária e popular. Então, a gente tem uma produção de alimentos que não são mais cheios de veneno. Então, isso vai facilitar muito o caminho. E lembra que eu falei da tarifa zero do transporte público? Se as pessoas estão circulando mais entre as cidades, porque agora elas têm esse acesso, elas podem comprar de feiras públicas. Elas não vão ficar tão dependentes dessas redes de supermercados corporativos. Elas vão ter um contato mais direto com o produtor. Isso significa que o produtor vai ser melhor remunerado também. Porque ele não está passando por esse terceiro, que é o caminho comercial da grande rede de supermercado.
E isso do hospital também é interessante. Diminui o recurso do SUS e diminui a fila. Ou seja, melhora o atendimento. E com as pessoas com mais atendimento e menor custo, o Estado vai poder garantir exames de maior complexidade para mais pessoas. Enfim, tá aí. Um pouquinho da amostra do que pode ser o futuro. Basta você se organizar, né? Lutar, batalhar por uma vida decente. Matheus Vasconcelos: Sabrina, dos debates de ecossocialismo, a coisa que eu mais sinto falta é o debate organizativo. Pra mim, a teoria é incontestável. A compreensão da realidade que o ecossocialismo apresenta, pra mim, não tem como bater. Mas eu acho que a parte mais fraca é organizativo. É como se fosse um que quer fazer ecossocialista. Como seria? Quem seriam esses grupos?
Quanto tempo eu tenho? Meu Deus. Militar é difícil, né? Militar é difícil demais. Lidar com gente, meu Deus do céu. Eu fico pensando nas próprias ansiedades que a gente já tem em relação à luta, como isso se multiplica tendo que dialogar. Porque uma questão muito importante para o ecossocialismo é que a gente não tem um molde organizativo do passado, que é assim que as decisões são tomadas, é assim que o meu partido é, porque o nosso partido é assim em todos os lugares. Não. O ecossocialismo, ele já se expõe a uma margem de erro maior, entendendo que, “a gente acha que isso aqui não funcionou, então a gente tem que inventar outras coisas”. Eu concordo que nós temos muito o que caminhar ainda em teoria organizativa também, não só de estratégia ampla, de horizonte, da utopia bonita que a gente apresenta pras pessoas.
E um grande desafio é fazer democracia socialista, ninguém aperfeiçoou isso ainda. Não tem ninguém no campo marxista que aperfeiçoou isso. A gente também está nessa batalha. E uma das coisas que eu acho que é muito importante, e eu tento destacar isso lá no final do Sintomas Mórbidos, quando eu estou falando de esquerda mosaico e tudo mais, é essa questão de um ecossistema de táticas. E no ecossistema de táticas a gente entende que o que eu estou fazendo aqui não necessariamente vai ser o que o outro está fazendo ali. A gente tem que lidar com os tratados que a gente tem, além das vantagens, as disposições, as eficiências, que são diversas. Então, não tem um único molde de atuação, a gente vai ter várias frentes.
Essas frentes não vão concordar em tudo, porque se a gente esperar isso acontecer, o mundo já acabou. Não vão concordar em tudo, mas a gente vai ter uma possibilidade de diálogo voltado para aquelas questões onde já existem sinergias. Então, identificar esses principais pilares e agir ao redor deles, eu acho que isso tem que ser a nossa questão mais ampla. E é isso que nos propõe, que não basta ter um partido, não basta ter um sindicato, não basta ter um coletivo do movimento estudantil ou um coletivo de juventude, não basta esse movimento social feminista aqui. Todos fazem parte desse plano de organização e eu tenho que ter um reconhecimento que para mim é chave para evitar adoecimentos e também perda de tempo, é que tem gente que tem talento para ser militante, tem gente que tem talento para ser militante sindical, tem gente que tem muito mais talento para ser militante territorial, que está ali ensinando o pessoal a fazer agrofloresta.
E a pessoa tem que ser valorizada por aquilo ali, ela não tem que ser imposta que se ela não faz parte de tal coisa, ela não é. Nos últimos anos virou um clubismo muito estranho, “você é só comunista, você é filiada a um partido comunista com o nome comunista no nome”. Parece uma coisa meio religiosa, não faz muito sentido. Eu quero entender, na verdade, onde os nossos talentos, onde as nossas funções fazem mais sentido e que tipo de plataforma eu consigo construir a partir disso. No Pacto Eco-Social, que é a organização latino-americana que eu sou membro, que eu sou militante, a gente tem capítulos em vários países e a gente entende que a galera que está na Argentina não vai funcionar exatamente que nem a galera que está na Colômbia, que nem a galera que está na Venezuela ou na Bolívia, ou no México, ou no Chile.
Tem várias diferenças, inclusive de posição geopolítica e tudo mais. Mas a gente tem uma unidade muito forte no combate ao colonialismo verde e à zona de sacrifício verde, uma unidade muito forte pela defasagem de combustíveis fósseis, uma unidade muito forte pela compreensão que, sem demarcação territorial para os povos indígenas, não tem como avançar em nenhuma dessas pautas. Uma compreensão muito forte de que nós precisamos, a partir de unir o povo do campo, da cidade e da floresta, não é botar todo mundo em uma sala só. É entender que essas lutas estão realmente interligadas, inclusive ao combate à periferização e urbanização forçada das pessoas. Então, tem que ter uma vida que seja desejável, que seja gostosa no campo também. Eu tenho aprendido muito com a galera da Teia dos Povos também, nesse debate sobre terra e território.
Eu estive lá no assentamento Terra Vista no começo do ano e foi uma aula mesmo de vivência para mim. Mas, por exemplo, eu não sou a pessoa que vou estar ali no assentamento porque a minha atuação está em outro lugar. E as pessoas precisam ser valorizadas pelos seus talentos. A Marta Harnecker, que é uma das pensadoras chilenas, que contribuiu muito no Chile, na Venezuela, na América Latina, para tornar o debate do marxismo algo palpável para a nossa realidade, ela trata muito disso. No “Ideias para a Luta”, que é um livretozinho – tratei dele no Tese de Onze, no Clube de Leitura também, no Fundamentos. Saiu pela expressão popular – ela fala isso: a gente quebra muito militante por aí porque a gente fica querendo impor um modelo específico de organização. Então, o que eu posso dizer para essa pergunta super difícil é o que não fazer. Vamos evitar, ao máximo, imposições de modelos que não se adequam à realidade das pessoas. Porque se a gente seguir quebrando militante, a gente vai seguir com uma lógica de cisão, a gente vai seguir tendo fragmentação, toda hora é um coletivo novo, vai ser um partido novo e as pessoas em treta no dia a dia e na internet. Esse consumo de energia só favorece os nossos inimigos. Então, vamos partir de uma perspectiva do cuidado. O tipo de organização ecossocialista que a gente tem que ter para um horizonte revolucionário é uma organização que não quebra pessoas. É uma organização que tem o cuidado como centro da nossa estratégia de mudança social.
Bom, você comentou agora da Marta Harnick. Eu queria te pedir algumas recomendações. O que o nosso ouvinte e a nossa ouvinte pode ler, pode ver de vídeo, pode escutar de podcast, de música? O que você está ouvindo? O que você está vendo?
Eu acho que uma leitura, que é o “Modo de Vida Imperial” do Ulrich Brandt e do Markus Wissen, é muito provocativa sobre essa questão do indivíduo e da estrutura. Como as nossas formas de pensar, de consumir, de agir são moldadas de uma forma estrutural. Então, tem provocações muito grandes e muito legais nesse livro. No Brasil, ele saiu pela editora Elefante.
Tem uma introdução muito legal também, Camila Moreno, que é outra militante climática que eu curto muito o trabalho dela. E eu gosto muito do livro “Terra e Território” da Teia dos Povos, do Joelson, do Erasto. Eu acho que esse vocês podem adquirir no site da Teia. Eu me pus a pensar sobre várias coisas interessantes sobre isso. Recomendo tudo o que a Marta já fez e já escreveu. Acho que é muito interessante. Próximo da gente aqui da América Latina, gosto muito do trabalho da Veronica Gago e da Maricela Svampa. A Vero Gago inclusive teve uma produção recente com a Silva Federici discutindo questões de gênero e dívida. Dívida, eu não sei o que eu cheguei a falar hoje, mas um componente muito forte de um debate de transição justa é o cancelamento da dívida, que é outra pauta econômica muito importante.
E eu acho que esse debate do endividamento das pessoas, eu acho que ele é válido até porque muito do que surgiu de proposta para lidar com o impacto no Rio Grande do Sul foi política de endividamento das pessoas impactadas. Eu achei um absurdo e completamente normalizado. E aí tem as próprias dívidas dos países nisso aí que vem falando que não é dívida, é financiamento. “Eu não vou pagar. E aí, quais são as suas consequências?” São consequências da dívida. Então, esse debate de justiça e dívida eu acho que é muito válido para a gente. Tem uma discussão legal que eu acho que incorpora muito dessa visão de totalidade de um outro pensador ecossocialista que é o André Asmal, que saiu sobre a Palestina, eu acho que está pela editora Elefante, que é traduzido para o português que fala sobre como a luta sobre a Palestina é uma luta que trata da totalidade das coisas que a gente tem para enfrentar. É muita coisa interessante que a gente tem produzido mais recentemente também.
Tem um livro do Eduardo Sá Barreto tratando sobre ecologia marxista de uma forma bastante acessível para quem tem pressa. Então, tem várias coisas e é isso. Eu estou escrevendo agora um livro que vai sair. Não vou dar a data ainda porque a vida está muito corrida, mas que é um livro autoral, mais cabeçudo, mas de linguagem acessível sobre a questão de transição com várias elaborações minhas, originais. E aí, eu tenho lido muita coisa para poder garantir que está tudo muito costuradinho.
Então, em termos de leitura, poderia passar horas falando aqui sobre eu gosto de leitura. De escuta, todo mundo sabe que eu ouço muito, muito, muito música em espanhol. Então, eu vou ser meio óbvia nisso, mas o último álbum do Residente que era do KG3 e eu vou no show do Residente esse ano, gente, estou focadíssima. Eu vou no show em Bogotá, na Colômbia. E esse último álbum do Residente me tocou muito profundamente. Tem uma música ali inspirada pela luta palestina. É belíssima e tem uma outra música assim, muito, muito poética sobre a questão de luto, ciclo, tempo. Eu gosto muito do trabalho do Residente, então fica a recomendação talvez meio óbvia, mas eu acho que vale muito a pena. E tem aquela música e vídeo bem famoso dele com o EBI, “This is not America”. Ele falando das lutas da América Latina. Então acho que fica a dica.
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