Reportagens

As verdadeiras – e muitas – cores da Caatinga

Aniversário de 18 anos da Reserva Natural Serra das Almas, no sertão cearense, é comemorado com um convite para que todos se transformem em caatingueiros pela proteção do bioma

Duda Menegassi ·
17 de outubro de 2018 · 5 anos atrás
Vista da parte alta da Reserva Natural Serra das Almas. Foto: Duda Menegassi.

A Caatinga é uma floresta. Essa afirmação talvez surpreenda muitos leitores. Posso confessar sem falsa e pretensa sabedoria que me surpreendeu. No imaginário da maioria dos brasileiros o sertão se resume à imagem do solo seco e rachado e à figura do sertanejo sofredor. Mas a Caatinga também é verde e é considerada o semiárido mais biodiverso do mundo.

Minha jornada de descoberta do bioma – o único exclusivamente brasileiro – começou com um convite da Associação Caatinga, uma Organização Não-Governamental responsável, entre outras coisas, pela gestão da Reserva Natural Serra das Almas, no interior do Ceará. A oportunidade veio por ocasião do aniversário de maioridade da área protegida, que completou 18 anos no dia 15 de setembro, e foi celebrado com a 3ª edição do “Somos Todos Caatingueiros”, realizado pelo projeto No Clima da Caatinga, patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental e pelo Governo Federal. O evento contou com a participação de cerca de 30 pessoas.

O evento nasceu da necessidade de mostrar para os moradores das comunidades do entorno da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) qual era o verdadeiro trabalho e importância da área protegida. Ainda em Fortaleza, a equipe da ONG me explica que a criação da unidade de conservação levantou uma série de desconfianças e de mitos. “Não entendiam porque alguém iria gastar milhões para comprar uma propriedade no meio do nada, em pleno sertão, para não produzir nada, apenas conservar”, contam. Multiplicaram-se teorias sobre a real finalidade da área, desde que seria feita a extração de veneno de cobra ou de algum minério valioso, até a curiosa hipótese de que ali seria construído um centro de clonagem – a teoria curiosa explica-se porque na época estava em exibição a novela O Clone.

Um túnel de árvores já desfolhadas em uma das trilhas da reserva. Foto: Duda Menegassi.

18 anos depois, através de um intenso trabalho de educação ambiental, de aproximação e de diálogo com as comunidades do entorno, além da abertura da RPPN ao turismo, o cenário já é outro. Um exemplo real é o guarda-parque mais antigo da reserva, Marcos, morador de Crateús e ex-caçador que hoje é um dos principais defensores da Serra das Almas. “Ele caçava às vezes para comer, às vezes por esporte, e entrou na reserva em 2001, ainda na fase de estruturação, e foi entendendo o que estavam fazendo aqui e porque estavam cuidando dessa área. Hoje ele é um apaixonado. O relato dele é inspirador e prova que há como mudar o pensamento das pessoas.”, conta o coordenador de Conservação da RPPN, Gilson Miranda, que lembra que a caça ainda é um dos principais problemas enfrentados pela unidade e que o trabalho de conscientização é constante e contínuo.  “A educação ambiental é capaz de fazer as pessoas mudarem seus comportamentos e nós apostamos nisso”, conclui.

A estratégia de contratar pessoas que morem nos arredores da reserva é uma parte fundamental deste trabalho de conscientização dos moradores das 21 comunidades do entorno da Serra das Almas para fazer com que além de sertanejos, os moradores assumam a identidade de caatingueiros, de defensores do bioma. “Todos os funcionários da reserva são das comunidades vizinhas. Dessa forma, além de levar uma oportunidade de emprego e estimular o desenvolvimento local, também ajudamos a sensibilizar os moradores porque aquela pessoa poderá contar para as outras sobre o trabalho que desenvolvemos aqui”, explica o coordenador. Gilson acrescenta que eles também fazem a capacitação dos jovens locais como guias de ecoturismo para conduzirem os visitantes nas trilhas da reserva.

Crateús fica a 350 quilômetros da capital cearense, no limite do estado com o Piauí, e do centro do município ainda restam 50 quilômetros até à Sede da Reserva, na parte alta da serra, sendo os últimos 15 em estrada de terra. É uma longa jornada e quando chegamos na RPPN, já era noite e teria que esperar o dia seguinte para dar uma primeira espiadela na paisagem da Caatinga. Com o sol fora de cena, pude admirar as outras luzes que prevalecem na noite do sertão: as estrelas – e uma caprichosa lua em estado crescente.

Os cactos são personagens típicos da paisagem da Caatinga. Foto: Duda Menegassi.

A sede da reserva possui um alojamento que comporta até 44 pessoas e foi lá que passamos a noite, com a quietude da madrugada quebrada apenas pelo barulho do forte vento nordestino na folhagem.

No dia seguinte, com a benção solar, fui apresentada à Caatinga e toda sua imensidão. E nada melhor, pelo menos para mim, do que conhecê-la através de uma caminhada. Na área superior da reserva existem três opções de trilhas abertas aos turistas: a das arapucas, dos macacos e do lajeiro. Na parte baixa há outras duas trilhas. Por ano, a RPPN recebe uma média de mil visitantes, a maioria alunos de escolas e de universidades, e pesquisadores. A distância da capital e a concorrência com as praias do litoral cearense são os desafios para conseguir aumentar o número de turistas.

Como carioca estrangeira em terras nordestinas, eu fiz todo o circuito turístico da sede, que inclui as três trilhas e um tour no centro de visitantes. A Trilha das Arapucas, a maior delas, com 12 quilômetros de extensão (ida e volta) leva a dois mirantes que se debruçam no limite da serra, mais de 700 metros acima do resto da paisagem, na borda da depressão sertaneja. De lá é possível ter uma vista panorâmica de toda a região e da extensão da reserva, que possui mais de 6 mil hectares, e é a maior RPPN do Ceará. Pela sua extensão e relevância para conservação, a reserva foi reconhecida em 2005 pela UNESCO como Posto Avançado da Reserva da Biosfera, o primeiro na Caatinga.

Em setembro, a vegetação está no chamado período de transição, quando as árvores começam a perder as folhas, uma estratégia de sobrevivência para diminuir a dependência de água antes do auge da seca. O chão estava uma verdadeira aquarela de outono, coberto por folhas amarelas e avermelhadas.

O nome de mata branca foi dado pelos indígenas, primeiros habitantes da região, já que durante a estação seca a maioria das plantas se despe de folhagem e predomina a cor esbranquiçada dos troncos das árvores. Por isso, Caatinga, que em tupi se traduz para floresta branca. Com o início do período chuvoso, a partir de março, a floresta se pinta de verde junto com a rebrota das folhas.

Do mirante da Trilha das Arapucas é possível ter uma noção da extensão da RPPN. Foto: Duda Menegassi.

Mesmo em setembro, já com a predominância do tom sépia, algumas árvores perseveravam com suas folhagens verdes, com aparente indiferença ao forte calor. A floresta branca é, na verdade, como uma tela em branco que assume diversas cores ao longo do ano e é colorida diariamente pelos caprichos artísticos do sol, o verdadeiro rei do sertão.

Na área protegida, onde a cobertura vegetal está preservada, a própria seca parece não ser tão severa e as folhas ficam verdes por mais tempo. A nascente do riacho Melancias, por exemplo, que está dentro da RPPN, nunca secou – uma prova, como se precisássemos de mais uma, de que a conservação florestal está intimamente ligada à disponibilidade hídrica, mesmo, e talvez principalmente, no semiárido.

Essa é uma das coisas que a equipe da ONG tenta mostrar aos moradores para conscientizá-los sobre a relação de floresta, água e clima. “Nós tentamos plantar nas pessoas o pensamento de proteção para fazê-los entender que é necessário proteger para garantir. As pessoas conseguem ver essa diferença quando conhecem nossa reserva, nosso riacho que nunca secou, o microclima da reserva que mesmo no auge da seca não fica tão quente. As pessoas veem isso e estão aprendendo. Porque nós temos cisternas para armazenar água, mas o maior sistema de armazenamento de água que nós temos é a floresta”, ressalta Gilson.

Durante a caminhada, aonde alguns poderiam ver apenas troncos desnudos, frágeis e expostos, eu via uma floresta de resistência, que se adaptou à rigidez do semiárido. Raízes profundas, folhas pequenas ou transformadas em espinhos e caules fotossintetizantes são algumas das soluções encontradas pela flora para resistir à seca. Uma perseverança mimética à figura do sertanejo, o personagem principal da Caatinga. “A Caatinga é tudo. A gente nasceu aqui e a nossa vida é ela”, pontua Gleison, guarda-parque e morador da região.

O uso de perneiras é obrigatório no passeio na reserva. Foto: Duda Menegassi.

No entorno da reserva existem 21 comunidades, sendo dois assentamentos do INCRA e duas aldeias indígenas, das etnias Potiguara e Tabajara. De acordo com o coordenador da área protegida, o apoio dos vizinhos é essencial. “Uma RPPN não possui zona de amortecimento, como existe nas unidades de conservação da esfera pública, então a nossa zona de amortecimento será construída a partir da relação que nós tivermos com os vizinhos”, pontua. Uma vitória na parceria com a vizinhança foi a delimitação das áreas de Reserva Legal (que na Caatinga está estipulada em 20% da propriedade) dos assentamentos rurais na fronteira com a RPPN, o que adiciona uma camada contínua de floresta e consequentemente de proteção à reserva.

Como o nome diz, a missão do “Somos Todos Caatingueiros” é despertar nas pessoas a paixão pelo bioma e inspirar todos a se engajarem pela sua proteção. O coordenador geral da Associação Caatinga, Daniel Fernandes, reforça que o evento é uma oportunidade de conscientizar e multiplicar a mensagem pela preservação da Caatinga Brasil afora, “contamos com suas vozes ativas para repercutir ainda mais a nossa causa”.

Além de conhecer as paisagens encantadoras e surpreendentes da reserva, eu pude mergulhar também nos sabores locais, com um jantar especial organizado para o evento onde os ingredientes principais eram os cactos. O projeto da Gastrotinga, criado pelo chef Timóteo Domingos, é uma cozinha baseada em receitas que utilizam elementos típicos do bioma, inclusive e principalmente, as cactáceas, como a palma (Opuntia cochenillifera) e o xique-xique (Pilocereus gounellei).

Paladar, visão, audição, olfato, tato… com todos os sentidos entregues aos sabores, cores, sons, cheiros e texturas da Caatinga, foi impossível não sair de lá encantada e, inequivocamente, caatingueira. Ser caatingueiro nada mais é do que lutar pela proteção da natureza nativa e tão nossa, brasileira de raiz e de espírito guerreiro, que resiste à seca e faz da chuva primavera. Que sejamos todos caatingueiros!

PS: Clique na galeria para ir passando as fotos.

O bioma

A Caatinga ocupa cerca de 11% do território nacional e está concentrada principalmente nos estados do nordeste. De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente, o bioma já perdeu aproximadamente metade da sua cobertura original, um número que pode crescer facilmente pela baixa quantidade de unidades de conservação de proteção integral na Caatinga – que equivalem a menos de 2% do total da área do bioma.

Considerado o semiárido mais rico do mundo, o bioma abriga 178 espécies de mamíferos, 591 de aves, 177 de répteis, 79 de anfíbios e 241 de peixes. Entre as espécies mais simbólicas da Caatinga está o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), ameaçado de extinção e endêmico do Brasil, onde ocorre majoritariamente nos ambientes da Caatinga.

 

*A repórter viajou a convite da Associação Caatinga

 

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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