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Publicado originalmente por InfoAmazônia
Se pudesse ser comparado a uma rodovia, o rio Madeira por certo seria uma via prioritária, uma artéria central, conectando dos pontos mais importantes da Amazônia: os sopés dos Andes e as planícies alagadas.
Dentre os afluentes do rio Amazonas, o Madeira, com seus 3380 km, é aquele que mais contribui com sedimentos vindos das altas montanhas. Isso o torna um corpo d´água rico em nutrientes, essenciais para a fertilidade das várzeas e para a pesca no Brasil e na Bolívia .
Na sub-bacia do Madeira, estão catalogadas cerca de 1 mil espécies de peixes, o que representa um terço de toda a ictiofauna encontrada na bacia amazônica. Os passageiros desta rodovia são potentes peixes migradores, capazes de dirigir milhares quilômetros em condições adversas – fortes corredeiras, água turva e muitos resquício de florestas arrastadas, submersas.
Mas as barragens de Santo Antônio e Jirau, os obstáculos criados pelo homem, parecem difíceis de transpor . Passada uma década do início da construção das usinas hidrelétricas do Madeira, em Rondônia, novas pesquisas científicas indicam que as espécies deste rio amazônico foram negativamente afetadas.
Vídeo – Um rio de mudanças (Parceria InfoAmazonia e Mongabay)
O que mostram os estudos
Publicadas ao longo de 2018, investigações demonstram tanto a redução na pesca como o perigoso isolamento de populações de espécies migratória, como os grandes bagres, considerados essenciais na economia e alimentação dos moradores do Madeira.
A dourada, (Brachyplatystoma rousseauxii), peixe que pode atingir 1,5 metro de comprimento e faz a mais longa migração de água doce já registrada – uma viagem de ida e volta de cerca de 11 mil km – serve como um excelente exemplo de mudanças ambientais e impactos de espécies. Pesquisas sobre o ciclo de vida de indivíduos capturados após a construção das barragens mostram que as migrações praticamente cessaram após o fechamento das comportas – e isso pode ter consequências terríveis para o bagre, incluindo a eventual extinção em algumas partes da bacia .
Em um estudo feito para sua tese de doutorado, Marília Hauser, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), investigou o que pode ser chamado de “caixa preta” da dourada. Hauser analisou os otólitos – os depósitos de carbonato de cálcio que se acumulam nas cavidades da orelha interna de todas as espécies de vertebrados ao longo da vida – a partir de 265 bagres capturados a montante e a jusante das barragens.
Quando os isótopos de estrôncio nos otólitos são comparados com uma análise microquímica dos elementos encontrados nos rios Madeira e Amazonas, é possível determinar o ciclo de vida de um peixe individual e mapear as viagens pelos rios.
A partir dessas análises, Hauser descobriu que 80% dos bagres encontrados no rio Madeira migraram todo o caminho rio acima para se reproduzir nas cabeceiras dos Andes antes da construção das usinas hidrelétricas. Agora, quase todos os peixes analisados estão confinados às partes do rio onde são encontrados. Há pouca evidência de migração.
Hauser mostra, em particular, que os otólitos nas populações de bagres a montante das barragens carecem de alguns dos elementos químicos encontrados nas secções média e baixa do rio Madeira. Os peixes com mais de cinco anos de idade não mostraram evidências de terem regressado rio acima após uma viagem a jusante, o que significa que nasceram e cresceram na parte alta da Madeira, nunca fazendo a viagem para o estuário do Amazonas, na costa atlântica. A estes ela denominou, “residentes forçados”.
“Estes resultados confirmaram de forma irrefutável os impactos dos barramentos tanto sobre o aporte dos adultos nas porções altas da bacia do rio Madeira, como na migração rio abaixo dos ovos e larvas”, lê-se na apresentação da tese aprovada em junho de 2018 na UNIR com o título “Migração dos grandes bagres pela perspectiva dos isótopos de estrôncio em otólitos” (clique para baixar).
Hauser explicou, em uma entrevista por telefone, que sua pesquisa dos elementos químicos presentes nos otólitos da dourada comprovaram que este peixes realizam o homing – o retorno, no momento da reprodução, às cabeceiras do mesmo rio onde nasceram.
Uma pequena parte da amostra do pesquisador, 16%, chegou ao estuário amazônico, indicando que as larvas das douradas podem descer pelas turbinas das barragens. Mas não há indicação de que os peixes em maturação voltem para os seus territórios de origem. Para Hauser, os dados mostram conclusivamente que houve “uma mudança completa no padrão de migração”.
Um achado importante veio do exame de uma população de bagres capturados no reservatório da represa de Santo Antônio. Todos esses indivíduos rio acima eram adultos e residentes, o que poderia indicar que, mesmo que alguns peixes conseguissem migrar rio acima para o primeiro reservatório usando uma escada de peixe, eles não puderam continuar rio acima, passando pela segunda usina hidrelétrica, a barragem de Jirau.
Empresas negam o impacto
As barragens de Santo Antônio e Jirau geram juntas cerca de 7300 megawatts de eletricidade. Seu processo de licenciamento ambiental começou em 2006, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar da grande oposição e preocupação entre especialistas, acadêmicos e burocratas sobre o impacto potencial na retenção de pescado e sedimentos, os consórcios de construtores de barragens obtiveram autorização para ambos os projetos. A construção começou em 2008; ambas as usinas começaram a operar com capacidade máxima há cinco anos.
O consórcio Santo Antônio Energia mantém um programa de monitoramento de espécies de peixes dentro da área de influência da barragem. Este programa inclui a contagem de larvas que descem o rio e a captura de peixes individuais acima e abaixo da barragem. Segundo a bióloga Marcela Velludo, que coordena o monitoramento, os resultados não indicam a redução relatada na tese de Hauser.
Velludo disse que os relatórios técnicos foram regularmente enviados e aprovados pelo IBAMA, indicando que a metodologia e os resultados da empresa têm, pelo menos por enquanto, o endosso do governo federal.
Em uma série de entrevistas por telefone em fevereiro, Velludo disse que a tese, embora relevante para o conhecimento do ciclo de vida da dourada, foi incapaz de estabelecer uma relação causal entre as represas e os declínios registrados de bagres. Ela disse que as amostras de dados de Hauser não confirmaram que as migrações haviam sido interrompidas e que a presença de juvenis no estuário era um sinal de saúde da dourada. “A contagem de ictioplâncton, que é a presença de ovos de peixe, e a densidade de larvas por metro cúbico, não mostram variações”, disse Velludo.
A Energia Sustentável do Brasil , consórcio responsável pela usina hidrelétrica de Jirau, enviou uma nota de sua assessoria de imprensa informando que o monitoramento contínuo não registrou nenhuma alteração na qualidade e na quantidade do peixe da Madeira.
“Na Usina Hidrelétrica de Jirau há dois sistemas de transposição de peixes que permitem a passagem de espécies migratórias para além da barragem, mantendo o fluxo gênico para a manutenção da saúde das populações a montante”, afirmou. “Os sistemas são reconhecidos por especialistas como eficientes, os mais adequados para a UHE Jirau, e atendem as condições de licenciamento, evitando sérios impactos ecológicos na comunidade de peixes.”
A grande jornada
Até meados dos anos 2000, quem estava a cidade de Porto Velho podia visitar nas proximidades da capital de Rondônia as conhecidas cachoeiras de Teotônio. Ali, a atração era a pesca de grandes bagres, que no momento em que o rio começava a baixar, faziam a piracema. As fotos mostram exímios pescadores utilizando um píer improvisado, mais bem uma pinguela projetada sobre as corredeiras para sacar delas a espécie considerada mais nobre: a dourada
Pouco se sabia no passado sobre a impressionante migração feita pelo bagre amazônico, embora sua longa jornada a montante tenha garantido a subsistência de milhares de pescadores do Brasil à Bolívia por muitas décadas. Os cientistas só recentemente descobriram que o peixe realiza regularmente a mais longa migração de água doce na Terra, uma viagem de ida e volta de oito mil a 11 mil km das cabeceiras nos Andes até o estuário do Amazonas e vice-versa ao longo de seu período de vida de 12 a 15 anos. A perna a montante excede em si o recorde migratório de longa distância, uma vez detido pelo salmão que nadava pelo rio Yukon.
A dourada começa seu ciclo de vida onde os Andes se transformam em florestas. Peixes adultos desovam nos afluentes do alto rio Madeira. Os ovos eclodem e as larvas de bagre seguem rio abaixo com a corrente por 40 dias até chegarem ao estuário amazônico, onde a comida é abundante.
Lá eles permanecem até a maturidade, um período de três a quatro anos. Depois disso, eles começam a árdua jornada rio acima contra as correntes do rio e através das corredeiras, de volta às cabeceiras, onde o ciclo recomeça.
Impactos a montante
A ONG Faunagua, com sede em Cochabamba, na Bolívia, monitora um dos locais mais importantes para a desova da dourada, procurando a presença de peixes reprodutores nas cabeceiras do rio Ichilo, um afluente do rio Beni, que, perto da fronteira com o Brasil, junta-se ao Mamoré para se tornar o Madeira.
A Faunagua estuda um trecho do rio a cerca de 1.500 quilômetros a montante das duas megabarragens brasileiras. A organização coletou dados de 1998 a 2009 e, após uma pausa, retomou seus levantamentos de bagres em 2015. Esses dois conjuntos de dados fornecem uma base para comparação antes e depois da construção das barragens, afirma o pesquisador da ONG Paul Van Damme. Os últimos levantamentos revelam que as contagens recentes de dourada representam apenas 10% do que existia uma década antes das barragens.
Van Damme disse que esta evidência, juntamente com a pesquisa de Marília Hauser, indicam que a população de bagres na parte alta da Madeira despencou e pode eventualmente ser extinta. Como resultado dessas descobertas alarmantes, Van Damme, outros pesquisadores e organizações não- governamentais estão solicitando que a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) aumente o status de conservação de B. rousseaxii na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas de Extinção de vulnerável a criticamente ameaçada.
Mas a ação para salvar a dourada parece improvável no curto prazo. Van Damme, que participou da comissão bilateral que discutiu os impactos das barragens de Santo Antônio e Jirau entre 2006 e 2008, diz que a questão simplesmente não está mais na agenda dos governos brasileiro ou boliviano.
Ele diz que está ainda mais preocupado com o que o declínio da dourada diz sobre o que está acontecendo sob a superfície turva do rio Madeira e seus afluentes. A dourada “é apenas uma espécie que podemos monitorar, mas há muitas outras sobre as quais não sabemos o que está acontecendo, o que não podemos mostrar”.
Há esperança, mas a ação é necessária agora
Além dos estudos sobre a dourada, outras pesquisas argumentam que os pescadores do Madeira estão passando por dificuldades. As capturas de peixes registradas em Humaitá, uma cidade a 200 quilômetros a jusante das represas hidrelétricas, mostram uma queda de 39% na captura mensal média entre janeiro de 2002 e setembro de 2017.
Nesse caso, os pesquisadores liderados por Rangel Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais, não olharam apenas para os declínios da dourada. Várias espécies de importância comercial, incluindo pacu, branquinha e jaraqui , entre outras, também foram avaliadas. Em um artigo publicado na revista Fisheries Management and Ecology , a equipe de pesquisa identificou mudanças no fluxo da Madeira devido às barragens como uma das principais razões para o declínio da pesca.
“O rio se tornou imprevísivel e por isso o pescador opta por não sair pois quando mais cheio rio menos produtiva é a pesca”, diz Santos.
No momento em que foram projetadas as usinas hidrelétricas, um parecer de técnicos do próprio governo brasileiro questionou a viabilidade dos empreendimentos exatamente pela falta de informações sobre o impacto nas douradas e outras espécies migradoras. Como solução, os consórcios construtores propuseram o uso de tecnologias comuns nas hidrelétricas de países temperados: as escadas de peixe.
No caso da barragem de Santo Antônio, eles instalaram um canal que tenta emular o fluxo das antigas corredeiras. Velludo, bióloga da Santo Antônio Energia, disse que essa foi a primeira vez que essa tecnologia foi aplicada na Amazônia. O canal tem 15 metros de comprimento, 10 metros de largura e três metros de profundidade.
Para a pesquisadora e professora Carolina Doria, que coordena diversos doutorandos na Universidade Federal de Rondônia, já está claro que os mecanismos de mitigação dos impactos não funcionaram e que as mudanças no Madeira são drásticas. Além do trabalho de Hauser, ela orientou a pesquisadora Maria Alice Leite Lima, que em sua tese em 2017, registou a queda de 74,4% no desembarques da dourada em portos pesqueiros do Madeira.
Velludo contestou este achado, dizendo que a pesquisa de Lima considerou apenas a biomassa, ou o peso total das capturas de peixe no período observado. Ela apontou que a inundação recorde no Madeira em 2014 teria forçado os pescadores a gastar menos tempo e dinheiro pescando nos anos seguintes. Em outras palavras, suas capturas eram menores porque pescavam menos, não necessariamente porque havia menos peixes no rio.
No entanto, isso levanta outra questão: a extensão da inundação foi exacerbada pela presença das barragens? Não há uma resposta clara ainda.
Doria criticou os consórcios de energia hidrelétrica por interromperem seus acordos com a universidade que permitiram o monitoramento independente das espécies migratórias. As empresas também estão em desacordo com os pescadores, que são frequentemente presos por entrarem nas áreas proibidas perto das represas em busca de peixes que não conseguem mais encontrar. “As empresas simplesmente não querem ouvir”, disse Doria em entrevista por telefone.
Fabrice Duponchelle, pesquisador do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento da França, que há anos colabora com pesquisadores na Amazônia, está preparando um artigo com Marília Hauser e Carolina Doria defendendo evidências de que a migração da dourada foi prejudicada represas. Como Doria, ele pede mudanças imediatas no sistema de transposição de Santo Antônio e novos diálogos com o gerenciamento da barragem de Jirau. Este último, ele diz, precisa agir não está funcionando como esperado. Em Jirau, existe um mecanismo para controlar o acesso do peixe ao sistema de transposição. Isto é feito para separar e controlar populações de espécies predadoras .
Mas como poderiam os pescadores do Madeira e os entusiasmados pela migração épica da dourada encontrar esperança? Bem, aparentemente, naquelas pepitas de pedra dentro da cabeça do peixe . Os otólitos que Hauser analisou mostraram que 16% da dourada capturada no estuário do rio Amazonas nasceram após a construção das represas. Isso, disse Duponchelle, apresenta um vislumbre de luz para o futuro: “De alguma forma eles passaram, então ainda há esperança”.
Estudos citados
Hauser, Marilia. Migração de bagres grandes na perspectiva dos isótopos de estrôncio em otólitos. ” (2018) Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Tese de Doutorado
RE Santos , RM Pinto ‐ Coelho , R. Fonseca , NR Simões , F. B. Zanchi, “The decline of fisheries on the Madeira River, Brazil: The high cost of the hydroelectric dams in the Amazon Basin”, Fisheries Management and Ecology, Volume25, Issue5, October 2018 Pages 380-391. DOI: 10.1111/fme.12305
Ronaldo B. Barthem, Michael Goulding, Rosseval G. Leite, Carlos Cañas, Bruce Forsberg, Eduardo Venticinque, Paulo Petry, Mauro L. de B. Ribeiro, Junior Chuctaya & Armando Mercado, “Goliath catfish spawning in the far western Amazon confirmed by the distribution of mature adults, drifting larvae and migrating juveniles”, Nature, Scientific Reports volume 7, Article number: 41784 (2017)
*Reportagem publicada originalmente por InfoAmazônia, em parceria com o Mongabay.
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Engraçado, essa bióloga da usina pode estar certa e TODOS os demais pesquisadores errados? Cômico. Tenho pena dessas pessoas que deviam cuidar da natureza se "vendem" por tão pouco… Velludo, você escolheu a profissão errada.
Pois é, hoje convenientemente se "esqueceu" que o Icmbio da Marina foi a resposta dela pro patrão que tava bravo com os bagres e queria lascar com o Ibama…Tem que acabar com esse malfadado órgão mesmo!
Lambança do Lula e Dilma, feito nas "coxa", espero que o Bolsonaro utilize este fato como aprendizado, para não repetir o erro.
Culpa do Bolsonaro. Esse governo tá acabando com o meio ambiente…
Eliseu ,vá estudar e conhecer o assunto ! Quem patrocinou e ganhou muito dinheiro com essas usinas foram o Lula e a Dilma ! Não escreva mentiras aqui num site sério !