Geralmente do tamanho de um palito de fósforo, o krill sustenta alguns dos maiores animais do planeta, de baleias-azuis a jubartes, além de ajudar a levar carbono para o fundo do mar. Contudo, esse elo da vida marinha virou insumo para cápsulas de óleo, ração de salmões e até pets.
Ancorado no apetite dessas indústrias, esta temporada bateu um recorde sombrio: até junho, foram capturadas mais de 518 mil toneladas do animal na Antártica, ou 84% do limite fixado pela CCAMLR, sigla em Inglês da Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos. Essa corrida forçou o fechamento antecipado da pesca e expôs a fragilidade do controle internacional.
Diante da exploração desenfreada e, ainda pior, concentrada em poucas áreas da Península Antártica, um cardume de cientistas soou um potente alarme e pediu uma moratória mundial da pesca do diminuto crustáceo. Sem isso, há risco de um colapso ecológico.
“Estamos tirando o krill da boca de pinguins, focas e baleias para transformá-lo num negócio de luxo”, critica o chileno Maximiliano Bello, especialista em políticas oceânicas na Blue Marine Foundation. “Não se trata de uma necessidade humana, mas de uma escolha equivocada”.
Ele atua há quase 30 anos com conservação, sendo responsável por iniciativas que ajudaram a estabelecer mais de 2 milhões de km² de áreas marinhas protegidas, uma superfície similar à soma das áreas dos estados do Amazonas, Tocantins e Acre.
Hoje, a maior parte do krill pescado vira ração para salmões no Chile, consumidos inclusive no Brasil. Além disso, abastece as indústrias de comida para pets e de suplementos alimentares. No mercado brasileiro, cápsulas de óleo de krill custam entre R$ 150 e R$ 400, apurou ((o))eco.
“Uma moratória na captura de krill, até que se entenda melhor os impactos, é importante, é o princípio da precaução”, reforça Milton Marcondes, veterinário e diretor de Pesquisas no Instituto Baleia Jubarte (IBJ).

Recuperação de baleias em risco
O krill é capturado sobretudo por navios com bandeiras de países como Noruega, China, Rússia e Coreia do Sul. Sem os incentivos desses governos para combustível e logística, muitas dessas viagens seriam inviáveis, pois cruzam grande parte do planeta.
Bello lembra que esse padrão repete a trajetória de colapsos pesqueiros anteriores, como das anchovetas e das sardinhas, especialmente no Peru e no Chile, mas em vários outros países mundiais. “Estamos sempre correndo atrás do próximo recurso a ser exaurido”.
O problema é que a sobrepesca não ocorre em mar aberto, mas em áreas concentradas da Península Antártica, onde pinguins, lobos-marinhos e baleias competem diretamente com as redes industriais.
“As jubartes do hemisfério sul se alimentam basicamente de krill. Sem ele, elas não acumulam a gordura necessária para migrar até o Brasil e se reproduzir”, reforça Marcondes.
Essa necessidade acendeu um alerta entre pesquisadores sobre os riscos da sobrepesca do krill à recuperação histórica das jubartes na costa brasileira. Os últimos censos contaram cerca de 25 mil animais, número próximo aos registros de antes das destrutivas caçadas.

Contudo, a escassez de krill já afeta a mortalidade de filhotes e jovens. “Temos visto anos com menos nascimentos e até abortos espontâneos em fêmeas”, lamenta Marcondes. “Quando diminui a oferta de krill, os animais ficam desnutridos, mais vulneráveis a doenças e a taxa de fertilidade cai”, explica.
O cenário é agravado pela morte de baleias em redes para captura de krill. “Os bichos sofrem muito até morrerem afogados”, descreve o pesquisador. Baleias são mamíferos que respiram pondo para fora d’água seus espiráculos, espécies de narinas.
Outra dor de cabeça são os mais de 1.500 encalhes de jubartes no Brasil, desde 2002. A tendência de alta nos incidentes é ligada ao aumento da população, mas as mortalidades de 2010, 2017-18 e 2021 foram atípicas. “Muito provavelmente estão relacionados com variações na disponibilidade de krill”, ressalta Marcondes.
O impacto também é econômico: só em 2023, a observação de baleias movimentou até R$ 15 milhões na Bahia. “Sem alimento na Antártica, as baleias não chegam ao Brasil. Sem baleias, perdemos biodiversidade e também economias”, avisa Marcondes.

Crise do clima somada à sobrepesca
O aquecimento global reduz a formação de gelo marinho, essencial para fixar as larvas do krill e as microalgas que ele come. “O ambiente está mudando muito mais rápido do que a evolução consegue acompanhar, o que pode causar mortalidade em massa”, alerta o professor Ronaldo Christofoletti, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Além disso, o krill transfere energia das microalgas para baleias, focas e pinguins. Se esse elo se romper, o ecossistema todo colapsa. Ele também ajuda a regular o clima ao levar carbono às profundezas do oceano, por meio das fezes e migrações diárias. Logo, sua superexploração ameaça reforçar a crise do clima.
“A Antártica é um radiador do planeta. Desequilibrá-la significa intensificar enchentes, secas e crises que já atingem nossa população”, destaca Eduardo Secchi, Professor de Oceanografia da FURG (Universidade Federal do Rio Grande) e parte da rede do INPO (Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas).

Política entravada na Antártica
Enquanto a ciência pede urgência para proteger ambientes e recursos da Antártica, a política internacional segue travada.
A Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos (CCAMLR) foi criada para regular a pesca, monitorar impactos ambientais e definir áreas protegidas. Mas suas decisões costumam emperrar avanços porque exigem consenso entre países, onde há conflitos entre interesses econômicos e conservação.
Há quase dez anos ela não aprova nenhuma nova área marinha protegida no continente gelado. Ano passado, China, Rússia e Estados Unidos bloquearam a criação de uma reserva do tamanho da Califórnia, proposta que também previa melhor redistribuir a pesca do krill.
Assim, mesmo com limites anuais de captura já estabelecidos, a falta de acordo político dificulta medidas mais robustas de conservação no oceano Antártico. “As decisões não podem relativizar a ciência. Se ela diz que devemos parar de pescar, isso deveria ser vinculante”, cobra Bello.
Christofoletti compara os impactos à pandemia: “A poluição, a pesca excessiva e a falta de conservação são as comorbidades. Reduzindo essas pressões, os animais resistem melhor às mudanças climáticas”. Para ele, assim como na medicina, “os fatores ambientais não atuam isolados”.

A inação internacional e os riscos de colapso também geraram campanhas como a Our Antarctica, que une de cientistas a figuras públicas como a renomada bióloga marinha Sylvia Earle e o ator britânico Benedict Cumberbatch, mais conhecido por papéis como Sherlock Holmes (série da BBC) e Doutor Estranho (Marvel).
O movimento engrossou o coro planetário pela suspensão imediata da pesca de krill e a criação da Área Marinha Protegida da Península Antártica, tudo alinhado com a meta global de proteger 30% dos oceanos, até 2030, definida junto à Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas.
O Brasil aparece no centro desse debate. Além de ser um dos maiores consumidores mundiais de salmão, mantém presença científica na região por meio do Programa Antártico Brasileiro (Proantar).
Para Bello, o país tem a chance de assumir protagonismo. “O Brasil, como sede da COP 30 [do Clima, em Belém (PA)], pode articular a criação de novas áreas marinhas protegidas, unindo sua liderança em biodiversidade amazônica à agenda oceânica”.
Entre o apetite industrial e a paralisia política, o futuro da Antártica parece seguir em aberto. Proteger o krill significa garantir baleias e outros animais, a saúde de ecossistemas e o equilíbrio do clima. A moratória global não é um capricho ambientalista, mas uma urgência coletiva.
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