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‘Com um garimpeiro para cada indígena’, mineração ilegal adoece população e meio ambiente na TI Yanomami

Lula visitou o território tomado pela fome e sem atendimento à saúde, e exonerou servidores que negaram crise em 2022. Promessas de Bolsonaro para legalizar a mineração em terras indígenas levou mais de 25 mil garimpeiros para a região

Débora Pinto ·
24 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás

Após visita oficial de presidente e ministros ao território indígena Yanomami, em Roraima, no sábado (21), o Governo Federal publicou no Diário Oficial da União a exoneração de 54 servidores que atuavam em órgãos e instâncias relacionadas à saúde e à assistência aos povos indígenas do país.

Foram 38 exonerações e cinco dispensas que atingem 22 coordenadores regionais, 15 coordenadores setoriais e seis diretores, assessores e secretários vinculados diretamente à presidência. Também foram dispensados 13 militares, o coordenador do distrito sanitário Leste de Roraima, o corregedor Aurisan Souza de Santana, e o diretor do Museu do Índio, Giovani Souza Filho. 

Em abril de 2022, a Fundação Nacional do Índio negou que existiam crimes sendo cometidos contra crianças e povos indígenas na TI Yanomami. Mas, levantamento feito no mesmo ano pelo The Intercept Brasil mostrou que os indígenas registraram 21 pedidos de ajuda públicos ao Governo Federal, Ministério Público Federal, Funai e Exército. 

No sábado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) esteve à frente da comitiva formada pelos ministros Flávio Dino (Justiça), Sílvio Almeida (Direitos Humanos), Nísia Trindade (Saúde) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas), que visitaram Roraima em prol das causas humanitárias urgentes na TIY.

Mais do que um ato simbólico, a visita foi para anunciar um trabalho de contenção de crise para o território, ameaçado pela invasão de mais de 25 mil garimpeiros ilegais, que chegaram à região atraídos pelos anúncios de Jair Bolsonaro em legalizar a mineração em Terras Indígenas – a proposta de Lei (PL 191/2020), de autoria do Poder Executivo Federal.

Após a visita, o Ministério da Saúde decretou Estado de Emergência por conta das condições verificadas no território. São 99 crianças mortas, a maioria com menos de três anos, por relação direta ao garimpo, denunciou relatório do Ministério dos Povos Indígenas. Dados da pasta estimam que outras 570 crianças morreram devido à contaminação por mercúrio. 

Nos últimos dias, mais de mil atendimentos emergenciais ao povo indígena Yanomami foram feitos. O balanço foi apresentado pelo secretário nacional de Saúde Indígena, Ricardo Weibe Tapeba, na manhã desta terça-feira (24/1). Uma força-tarefa federal atua na região, após decreto da Presidência da República do dia 20, instituindo o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária no território Yanomami, e portaria do Ministério da Saúde, declarando emergência em Saúde Pública diante da necessidade de ação imediata frente à crise humanitária enfrentada em Roraima.

Garimpo contaminou rios na TIY

Uma pesquisa divulgada em recomendação do Ministério Público Federal de Roraima, em novembro de 2021, mostrou que a água consumida pelos indígenas não atende aos padrões de potabilidade preconizados pela Portaria MS 2.914/2011, apresentando turbidez e cor aparente diretamente relacionados com os elevados índices de coliformes e Escherichia coli, além de altíssimos níveis de contaminação crônica por mercúrio, que atinge ainda a fauna aquática.

A recomendação foi entregue ao Ministério da Saúde, ao Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus), à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei Yanomami), por conta da crítica situação de saúde na TI. Apesar de ter recebido mais de R$ 190 milhões para assistência à saúde nos últimos dois anos, o território indígena registrou, de acordo com o órgão, piora acelerada dos indicadores de saúde.

O presidente da República visitou o estado de Roraima para acompanhar a situação da saúde na terra indígena Yanomami. Foto: Ricardo Stuckert/PR.

Ainda segundo o levantamento, a desnutrição atinge 52% das crianças de todo o território Yanomami. Nas comunidades mais isoladas, até 80% das crianças estão abaixo do peso, o que leva a TI a atingir índices muito superiores à média brasileira e piores do que em regiões como o Sul da Ásia e a África Subsaariana, onde se encontram os países com mais incidência de desnutrição infantil no mundo.

Já segundo o relatório produzido pelo ISA, a malária explodiu em zonas de forte atuação garimpeira, como nas regiões do Uraricoera, Palimiu e Waikás. No Palimiu, em 2020, houve mais de 1.800 casos. O documento ressalta que a população total do Palimiu, no mesmo ano, era de pouco mais de 900 pessoas – e que muitas delas foram, portanto, infectadas pela doença mais de uma vez. 

Joênia Wapichana, presidenta da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), também esteve presente junto à comitiva. A situação mais retratada na TIY por ocasião da presença do presidente foi o estado de subnutrição em que se encontra parte da população, justamente a parcela que tem menos acesso ao atendimento médico e que vive em áreas consideradas mais isoladas. 

Com quase 9,6 milhões de hectares, muitas áreas da TI só podem ser percorridas por meio de aviões, mas grande parte das pistas aéreas do território indígena seguem sob o controle dos garimpeiros.  

A visita presidencial deu visibilidade ao território e ao estado de saúde que acomete parte da população de aproximadamente 30 mil indígenas, e também explicitou a urgência da retirada dos garimpeiros de dentro da TI – ocupada por pelo menos 25 mil pessoas que atuam com a mineração ilegalmente. Há falta de ação do estado, desde 2016, fez com que a região chegasse a quase um garimpeiro por indígena. 

O garimpo é um problema que ronda a vida dos Yanomami desde a década de 1980. A nova invasão atingiu níveis inéditos de crescimento de 3.350%, entre 2016 e 2020, aponta pesquisa do MapBiomas. Relatório da instituição indica que a área total destruída pelo garimpo na terra indígena Yanomami passou de 1.200 hectares, em outubro de 2018, para 3.272 hectares, em dezembro de 2021. A exploração se acentuou principalmente após o segundo semestre de 2020. Governo Bolsonaro enviou proposta para autorizar mineração em Terras Indígenas para o Congresso em fevereiro de 2020.

Localizada na faixa de fronteira com a Venezuela, a TI Yanomami também guarda a Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare, de 8,2 milhões de hectares. Juntas, essas regiões formam o maior território indígena coberto por floresta de todo o mundo. Na região também vivem grupos isolados do povo Yanomami, os ‘Moxihatetea’.

Davi Kopenawa, xamã, presidente da Hutukara Associação Yanomami e principal liderança indígena da TI, reafirmou a importância das políticas para a retirada dos garimpeiros e a deterioração do território. “Em primeiro lugar, ele vai precisar tirar os invasores, o garimpo ilegal, Se não tirar, a doença continua, assim como a destruição e a poluição”, afirmou Davi. 

Kopenanwa também fez parte da Comitiva que acompanhou Lula até a Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casa-Y) na capital Boa Vista. O presidente Lula, porém, não apresentou nenhum plano de ação mais direto, comprometendo-se inicialmente a criar comitê de crise voltado especificamente para tratar das questões referentes aos Yanomami.

Segundo a Survival International, na década de 1980, o povo Yanomami sofreu um genocídio semelhante. A região foi invadida por 40 mil garimpeiros, e 20% dos indígenas morreram. Doenças para as quais os povos não tinham imunidade foram uma das principais causas. A demarcação da TI, em 25 de maio de 1992, ajudou a desmobilizar o garimpo à época. 

Jair Bolsonaro, omissão e apoio à mineração

As questões humanitárias na região da maior Terra Indígena do país são históricas, com ações violentas e epidemias dizimando comunidades desde um forçado convívio com um número crescente de invasores.  

Os anos sob a gestão de Jair Bolsonaro representam um aumento significativo tanto na quantidade de áreas garimpadas quanto nos impactos ambientais, como consequência do abandono do território e de suas populações por parte do Estado. De acordo com o relatório “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo“, publicado pelo ISA, os anos sob Bolsonaro foram apontados como os piores desde que a TI foi demarcada.

Ainda de acordo com o documento, a presença do garimpo na TIY é causa de violações sistemáticas de direitos humanos das comunidades que ali vivem. O estudo também indica que, além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território Yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, além do recrudescimento da violência.

De acordo com dados do Mapbiomas divulgados pelo estudo, a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, entre 2020 e 2021, o garimpo ilegal avançou 46% na Terra Indígena Yanomami (TIY). Entre 2019 e 2020, já havia sido registrado um salto de 30%.

Estrutura de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Foto: Acervo Funai.

O número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16.000 pessoas, 56% da população indigena total. Existem mais de 350 comunidades indígenas na TI, uma população que soma aproximadamente 29 mil pessoas.

A falta de acesso a tratamento de saúde foi resultado da inércia do próprio Governo Federal nos últimos seis anos. A Terra Indígena tem 37 polos-base, 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) e uma Casa de Saúde Indígena (Casai Yanomami). Porém, por conta da dimensão de seu território, 98% desses centros de saúde são acessíveis exclusivamente por via aérea. Em 2020, o MPF já havia expedido recomendação para que a Sesai garantisse esse tipo de transporte para as equipes de saúde. Mas, desde 2019 não houve licitação para a prestação do serviço de transporte aéreo.

Desintrusão da TIY é um dos desafios de Lula

O fato do presidente não indicar um plano objetivo em relação à retirada completa dos garimpeiros da TI Yanomami, cumprindo uma de suas principais promessas de campanha na área ambiental, deixa clara a dificuldade de lidar com um contexto como o do garimpo na Amazônia. Durante a campanha e depois de eleito, como durante sua participação em atividades ligadas à COP-27 (Convenção das Nações Unidas para o Clima), no último mês de novembro, Lula fez questão de reafirmar que combateria o garimpo em terras indígenas.

Localmente, o governador reeleito de Roraima, Antônio Denarium, tem afinidade com a agenda antiambiental do ex-presidente Jair Bolsonaro e tem buscado institucionalizar, através de Projetos de Lei e apoio a propostas de correligionários, o avanço do garimpo sem a devida proteção aos territórios indígenas e demais áreas protegidas no estado. 

Porém, diante do estado de emergência para a saúde dos Yanomami, há também a expectativa de que o conjunto de Ministérios envolvidos na resolução da questão apresente propostas para os primeiros passos para o fim do garimpo ilegal na TYI.

  • Débora Pinto

    Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual

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