Modelos criados por cientistas indicaram que determinados elementos da paisagem, como estradas em florestas e áreas de transição entre florestas e plantações, podem favorecer a dispersão ou o aumento de populações de animais que podem ser hospedeiros ou vetores de doenças, como os mosquitos que transmitem a febre amarela. Isso pode aumentar o risco de infecção nos humanos. Também foi identificada uma relação direta entre desmatamento e doenças como malária e leishmaniose.
Surtos de doenças zoonóticas, como dengue e hantavirose, dependem necessariamente da aproximação entre pessoas e animais, ou suas fezes e urina, capazes de armazenar ou transportar patógenos, como vírus. A multiplicação e deslocamento desses animais estão relacionados à presença de determinadas condições ambientais.
A transformação da paisagem e o aumento da ocorrência de zoonoses
A intensa utilização do ambiente terrestre pelos humanos resultou numa ampla transformação da paisagem. Florestas contínuas foram intercaladas por áreas agrícolas, pastagens, estradas, cidades e muitas vezes se transformaram em diminutos fragmentos de florestas. Essas alterações da paisagem modificam o regime de luz, calor, umidade, vento que possibilitam que outras espécies ocupem estas áreas alteradas.
Quando essa espécie é um vetor ou reservatório de um patógeno humano, isso resulta no aumento da quantidade e dispersão desse patógeno, o que eleva o risco de infecção da população humana do entorno.
Um exemplo é a malária, uma doença infecciosa transmitida pela picada da fêmea do mosquito-prego. Em uma entrevista para a infoamazonia em abril de 2022, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) Yanomami, Junior Hekurari, já denunciava a relação entre aumento de casos de malária entre os Yanomamis e as piscinas residuais deixadas pelo garimpo.
A hantavirose ou Síndrome Cardiopulmonar por Hantavírus (SCPH), é uma doença emergente muito letal que aumentou o número de ocorrências nas últimas décadas, totalizando 2.155 casos entre 1993 e 2020, dos quais 843 resultaram em óbito. Sua transmissão se dá pela inalação da forma aerolizada do vírus (forma ativa presente no ar), proveniente da urina, saliva e fezes de roedores infectados (reservatórios naturais do vírus), sendo mais comum entre pessoas que participam de atividades agrícolas.
“Percebemos que os roedores que transmitem [o hantavírus] têm uma dinâmica muito ligada à mudança do solo. Toda vez que há desmatamento, a abundância desses roedores aumenta muito na paisagem”, explica a bióloga Paula Prist, pesquisadora da área de conservação e saúde na EcoHealth Alliance (EUA), que estudou a relação entre o risco de hantavirose e os padrões de transformação da paisagem durante seu doutorado na USP (Universidade de São Paulo).
Aproximadamente, metade dos casos contabilizados de hantavirose ocorreram em municípios da Mata Atlântica. Esse bioma é o mais devastado do país, restam apenas 28% da sua vegetação nativa.
Seria a restauração de ecossistema capaz de controlar os surtos de zoonoses?
A pesquisa de Prist pode nos ajudar a elucidar esta questão. A pesquisadora elaborou um modelo computacional para comparar a abundância de duas espécies de roedores que são reservatórios naturais do hantavírus na Mata Atlântica. Ela gerou dois cenários considerando a área total do bioma. O primeiro no qual há a restauração de 6,2 milhões de hectares (que supriria o déficit de restauração em cumprimento do novo Código Florestal) e o segundo, mantendo-se o estado atual do bioma, ou seja, sem restaurações.
Com a restauração completa, o modelo indicou que haveria uma redução de quase 90% da abundância do rato-do-mato (Oligoryzomys nigripes) e cerca de 45% para do rato-comum (Necromys lasiurus).
Apesar de ser um modelo, os pesquisadores entendem que o resultado pode ser considerado um incentivo a mais para a restauração. A manutenção de ecossistemas florestais fornece diversos benefícios diretos e indiretos às pessoas, como a regulação dos fluxos de água e do clima e a absorção da poluição, o controle de animais relacionados às zoonoses pode ser mais um deles.
Qualquer restauração ecossistêmica controla a emergência de zoonoses?
O modelo para a hantavirose também mostrou que, apesar da diminuição da abundância de roedores, poderia haver um pequeno aumento da abundância do rato-do-mato nas áreas agrícolas. “Isso ocorre quando novos pequenos fragmentos florestais são formados em áreas agrícolas e quando pequenas áreas agrícolas são cercadas por grandes áreas florestais, aumentando a heterogeneidade da paisagem”, explica Prist e colaboradores em seu artigo. Em outro trabalho, também utilizando modelagem, Prist e seus colaboradores identificaram que as estradas que cortam florestas e as áreas de borda de florestas em contato com áreas agrícolas contribuem para a dispersão dos mosquitos do gênero Haemagogus e Sabethes, que transmitem o vírus da febre amarela. Por outro lado, o núcleo de florestas com grandes áreas tendem a barrar essa dispersão.
Os pesquisadores entendem que a modelagem pode contribuir para a escolha e planejamento de como e onde restaurar. Considerando apenas essas zoonoses, seria mais interessante restaurações que aumentassem os fragmentos já existentes de floresta, ao invés de criar diversos fragmentos dispersos em uma matriz agrícola.
“Mesmo nas condições nas quais há o aumento da abundância de espécies que controlam aquelas que transmitem doenças, há uma defasagem de tempo até que esse serviço ecossistêmico [controle das espécies transmissoras] seja realmente restaurado”, ressalta Prist.
Nesse caso, ou nos casos em que melhores escolhas não são possíveis, a pesquisadora destaca que medidas preventivas e educativas que diminuam os riscos de contaminação – como uso de repelente, no caso de mosquitos, ou de máscara, no caso do hantavírus – e o contato das pessoas com os animais, como o controle de roedores nas áreas agrícolas.
Entretanto, os pesquisadores alertam que as pesquisas ainda precisam avançar muito. Em um recente levantamento bibliográfico feito por Prist e Raquel de Carvalho, pós-doutoranda do projeto Biota Síntese, não foi encontrado nenhum estudo que investigue a relação entre restauração e dispersão de zoonoses em países tropicais.
Outros fatores que interferem no risco de zoonoses
Um estudo de pesquisadores da Fiocruz e de outras instituições brasileiras e portuguesas investigou a relação de vulnerabilidades socioambientais com o risco de epidemias de zoonoses. De acordo com as análises, os números médios de casos identificados de zoonoses tendem a ser maiores em regiões com maior perda de vegetação nativa e menores em regiões com maior cobertura de vegetação. Atividades que coloquem as pessoas em contato com animais que podem carregar patógenos, como a caça, também podem aumentar o risco de contágio, inclusive de doenças ainda desconhecidas.
Os pesquisadores também defendem a importância de uma política transversal que olhe a saúde considerando aspectos ambientais e sociais, essa visão está relacionada à ideia de saúde única (one health), que considera uma abordagem unificada para a saúde humana, animal e ambiental.
Conflitos de escolhas: dependendo da paisagem formada, diferentes objetivos são privilegiados
O uso de restauração para solucionar problemas socioambientais está em conciliar ou priorizar objetivos. “Quando houver um aumento do conhecimento sobre como os diferentes grupos, organismos e doenças respondem [ao desenho da paisagem], conseguiremos definir melhor as questões de conservação”, explica Carvalho. Diferentes desenhos da paisagem podem privilegiar diferentes organismos.
Paisagens com fragmentos florestais espalhados em áreas agrícolas, que aumentam o risco de zoonoses, podem ser importantes na dispersão de polinizadores, como abelhas e outros insetos, importantes para o cultivo de diversos alimentos. Essas paisagens também contribuem para prevenir doenças respiratórias e cardiovasculares, uma vez que a vegetação absorve a poluição presente no ambiente, assim, quanto mais espalhada melhor.
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