Reportagens

Descaso com a escassez hídrica marca campanha eleitoral em São Paulo

Especialistas traçam panorama de políticas públicas voltadas às águas, após a pior crise de escassez hídrica em 91 anos, ocorrida em 2021

Débora Pinto ·
22 de setembro de 2022 · 2 anos atrás

A crise hídrica pautou o único questionamento direto sobre meio ambiente no debate, promovido pelo UOL, Folha de S.Paulo e TV Cultura, com os candidatos ao governo de São Paulo, na última quarta-feira (14/09). A jornalista Fabíola Cidral citou a maior seca no país  em 91 anos, ocorrida em 2021, e lembrou que o Sistema Cantareira, um dos responsáveis pelo abastecimento da mais populosa região metropolitana do país, na Grande São Paulo, opera, neste momento, com apenas 32% de sua capacidade. Mas, o tema não está presente nos discursos frequentes dos candidatos ao governo e ao legislativo paulista. 

Chama-se de crise hídrica a impossibilidade de manter o abastecimento de água das populações diante de fenômenos meteorológicos como o La Niña e o El Niño e os extremos de chuvas ou secas causados pelas mudanças climáticas. No caso do Brasil, que tem 65% de sua matriz elétrica gerada a partir de recursos hídricos, a escassez de energia é outra consequência da crise hídrica.

O candidato ao governo de São Paulo, Elvis Cezar do PDT foi sorteado para ser questionado sobre como o governo pode atuar para evitar a falta d’água e um racionamento como já ocorrido em anos anteriores, como 2014 e 2015. Cezar afirma, basicamente, que irá apoiar  a participação da sociedade civil nas decisões sobre a água e o aumento da eficiência da Sabesp para mitigar vazamentos, agir para a recuperação da mata ciliar no estado, além de levar adiante obras voltadas ao sistema São Lourenço. O tempo reservado à sua resposta foi de um minuto.

Já no debate seguinte, ocorrido no sábado (24/09), o meio ambiente não foi citado. Obras de infraestrutura, emprego, geração de renda e fome foram os assuntos que mobilizaram os candidatos presentes no encontro organizado por um pool de empresas de comunicação, e transmitido em TV aberta pelo SBT. 

“O pouco espaço reservado à temática hídrica nos discursos políticos em momentos como as eleições revela uma distorção de prioridades já que, onde não existe abastecimento adequado, não é possível nem o desenvolvimento de um sistema produtivo nem a oferta de qualidade de vida para a população”, explica Malu Ribeiro, Diretora de Políticas públicas da ong SOS Mata Atlântica. 

Segundo a especialista, a rede Observatório das Águas, que reúne 60 instituições científicas e ambientais, entregou às candidaturas ao executivo uma lista de propostas para a governança das águas. A principal solicitação é que o Brasil reconheça, ainda que tardiamente, que o acesso à água potável pelas populações é um direito fundamental assegurado na Constituição Federal. Um projeto de Emenda Constitucional sobre o tema, a PEC 6/21, foi aprovado em 22 de março de 2021 em celebração ao dia da água, mas encontra-se parado na Câmara dos Deputados Federais. 

Mudança de gestão

A Política Nacional de Recursos Hídricos foi criada em 1997, estabelecida pela lei 9433, a partir de intensa mobilização popular. Indica diretrizes que orientam a gestão das águas no país e prega a  integração com o meio ambiente, o uso do solo  e outras políticas públicas  como, por exemplo,  as habitacionais. A lei tornou-se o principal instrumento da Agência Nacional das Águas (ANA), criada em 2000, como parte integrante do Ministério do Meio Ambiente.

Esse contexto de gestão passou por um revés em 2018, quando o então presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória 844/2018, instituindo um marco para o saneamento básico e, dentre outras medidas, transferindo a ANA  do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Infraestrutura. 

Em 2020, sob o comando do atual presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL), instituiu-se a lei 1426/2020 e, com ela, a ANA passou a chamar-se oficialmente Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional.

“Essa escolha demonstra uma visão segmentada da gestão da água, que  fora de seu contexto ambiental é tratada como um serviço associado à infraestrutura, enfraquecendo consideravelmente  os princípios conquistados pela Política Nacional de Recursos Hídricos”, explica Malu Ribeiro. 

Em junho de 2021, com a seca que levou à drástica queda do índice nos reservatórios  na região Sudeste do país, Bolsonaro criou a Medida Provisória de número 1.055/2021, chamada de “MP da crise hídrica”. Com ela foi instaurada  a Câmara de Regras Operacionais Excepcionais para Usinas Hidrelétricas (Care).  

Com formato interministerial e sob comando do Ministério das Minas e Energia, retirou  da ANA e do Ibama o poder de regular os níveis dos reservatórios, em um forte aceno ao setor elétrico. A MP foi prorrogada até novembro de 2021, quando perdeu a validade, não chegando a ser votada nem pela Câmara nem pelo Senado.  

Outra herança do governo Bolsonaro nociva às águas é o Projeto de Lei 2510/19, que alterou o Código Florestal e transferiu para os municípios a competência para definir o tamanho das Áreas de Proteção Permanente (APPs) nas margens de rios em áreas urbanas. Sancionado com vetos, o PL foi transformado em Lei Ordinária nº 14.285/2021, no final de dezembro de 2021.

“Esse retrocesso na legislação potencializam a escassez hídrica  na medida em que favorecem o desmatamento, anistia quem desmatou  e desobriga  a restauração florestal nas bacias”, completa Malu Ribeiro, que cita como exemplo a bacia do São Francisco –  importante não apenas para o semi árido nordestino mas, também, para o Sudeste, região mais populosa do país. São Paulo, Minas Gerais, além de Paraná e Mato Grosso do Sul foram os estados que mais sofreram com a seca recorde de 2021.

No estado de São Paulo, em 2019, o então governador, João Dória, operou o desmonte semelhante, destituindo a Secretaria do Meio Ambiente e fundindo-a a outras pastas ligadas à infraestrutura e ao saneamento, o que resultou na criação da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura. 

A pasta passou a abarcar entidades como a Cesp (Companhia Energética de São Paulo) e a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), antes vinculada à extinta Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos. A APqC (Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo) repudiou a medida.

“Caso um novo presidente seja eleito, é urgente atuar para que a ANA retorne ao Ministério do Meio Ambiente em seu formato original, além de garantir à agência a competência de em momentos de crise hídrica ser a responsável pela regulação dos reservatórios”, completa Malu, que também defende que seja restabelecida a Secretaria do Meio Ambiente no estado de São Paulo.

Soluções baseadas na natureza

Para Shigueo Watanabe, físico e pesquisador do Instituto Talanoa, a bacia do São Francisco é um exemplo da necessidade de um  modelo integrado de gestão, com diálogo permanente entre o governo federal, estados e municípios. 

Ainda que seja de competência federal a ação direta sobre a vazão de reservatórios,  é necessário, de acordo com o especialista, criar estratégias locais capazes de favorecer as bacias. De acordo com Watanabe, essas conversações são buscadas há mais de uma década no que se refere especificamente à bacia do São Francisco, mas perderam considerável força desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder.  Os Comitês de Bacias, outra frente de participação civil para a gestão da água, também foram enfraquecidas no período.

Em 2021,   as bacias do rio Grande e do rio Parnaíba foram extremamente atingidas, o que não levou a uma grande crise de abastecimento na Região Metropolitana de São Paulo, mas atingiu de forma significativa o Oeste do estado.

Nascentes do rio Parnaíba. Foto: arquivo ((o))eco.

Já a bacia do Cantareira, que neste momento apresenta números alarmantes, impacta diretamente o abastecimento de água potável na área metropolitana da capital paulista. Em 2015, os  reservatórios do sistema Cantareira chegaram a contar com apenas 6% de sua capacidade.

“Precisamos voltar a falar com mais ênfase das políticas públicas sobre o uso da terra, que influenciam diretamente na capacidade de captação de água nessas bacias. Também, ter ações mais efetivas de proteção aos mananciais, o que costuma estar sempre no papel, no discurso, mas não nas ações práticas dos governos”, destaca Watanabe. 

Para ele, muito mais do que investimento em obras, o enfrentamento à crise hídrica precisa ser pautado em investimento na proteção do meio ambiente, a infra estrutura natural, como evidencia o estudo Infraestrutura natural para água no sistema Cantareira, São Paulo, publicado em 2018, pela organização World Resources Institute (WRI). Especificamente para o sistema Cantareira, o especialista destaca a necessidade ações de adensamento florestal no Vale do Paraíba.

Malu Ribeiro lembra a situação da bacia Piracicaba-Capivari-Jundiaí, que também abastece o sistema Cantareira e deveria receber valores de conversão das multas  ambientais para financiamento de ações de preservação florestal nos municípios irrigados por esta  –  o que, de acordo com ela,  simplesmente não acontece.

Desperdício

Nas grandes cidades, as estruturas físicas de condução da água para abastecimento também precisam ser tratadas com maior seriedade, para que desperdícios do recurso sejam evitados. 

De acordo com o relatório “Perdas de água potável (2022, ano base 2020): desafios para disponibilidade hídrica e avanço para da eficiência do saneamento básico no Brasil”, realizado pelo Instituto Trata, o valor em porcentagem da água tratada perdida nos sistemas de distribuição no Brasil representa um volume equivalente a 7,8 mil piscinas olímpicas de água desperdiçada diariamente ou mais de sete vezes o volume do Sistema Cantareira. 

Considerando apenas os 60% deste volume, que são de perdas físicas (vazamentos), é uma quantidade suficiente para abastecer mais de 66 milhões de brasileiros em um ano, equivalente a um pouco mais de 30% da população brasileira em 2020.

Da mesma forma, a tendência urbanística de expansão dos centros urbanos, incluindo aí os programas de habitação popular, tendem a buscar terras mais baratas e distantes dos centros, exigindo a ampliação de redes de distribuição e, não raro, ocupando áreas de mananciais. 

Nesse sentido, racionalizar a ocupação das áreas centrais onde já existe estrutura construída seria um passo importante de integração entre políticas de saneamento, infraestrutura e habitação em prol da manutenção dos ciclos ecológicos. 

Da mesma maneira, o tratamento adequado do esgoto e o investimento em uma economia circular seriam capazes de diminuir a poluição das águas, seja por dejetos que além de poluir são responsáveis pela emissão de gás metano, seja pelo controle da presença de materiais como os plásticos e microplásticos nas águas.

Uso setorial

A agricultura irrigada é responsável por 60% da demanda hídrica no país . O segundo maior uso da retirada é o abastecimento urbano, com 25% do total em 2020, segundo dados  da ANA. Este uso ocorre de forma concentrada exatamente em aglomerados urbanos, acarretando crescente pressão sobre os mananciais e sistemas produtores de água, aumentando a complexidade e a interdependência de soluções de abastecimento. 

Sistema de irrigação em grande escala no Cerrado. Foto: Flávia Milhorance

Já o setor industrial é o que mais consome energia elétrica, responsável por mais de 35% da demanda. O Sudeste é a região de maior participação no consumo de energia elétrica do país e representou 48,5% do total em 2021, de acordo com o Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2022 , produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME). 

Os setores produtivos, segundo os especialistas ouvidos por ((o))eco, precisam contar com maior atenção no que se refere a taxações em casos de desperdício e responsabilizações diretas pelos danos ambientais que possam causar, além de compromissos para a racionalização do consumo e planos de médio e longo prazo para a melhoria de suas tecnologias, visando a melhor utilização da água. Especificamente na agricultura, outro ponto de atenção é o uso de agrotóxicos, que são agentes altamente danosos aos recursos hídricos. 

Ainda de acordo com a ANA, cerca de 93 trilhões de litros de água são retirados anualmente de fontes superficiais e subterrâneas para atender aos diversos usos consuntivos múltiplos e setoriais.

Fica claro, portanto, que tratar as políticas públicas para a crise hídrica, especialmente na região Sudeste, requer ações tão múltiplas quanto os usos da água – ainda que um recurso tão importante não seja bandeira de campanha de nenhum candidato majoritário nas eleições para o governo do estado de São Paulo em 2022.

  • Débora Pinto

    Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual

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